A singularidade do Holocausto e o que o torna único: um genocídio que marcou a história com profundos impactos morais e humanos
Matheus Alexandre* Publicado em 31/10/2024, às 19h00
Uma das formas contemporâneas de distorção do Holocausto — ou de negacionismo soft, utilizando o termo da historiadora Deborah Lipstadt — está presente em discursos que afirmam que o Holocausto não teria passado de uma replicação das ações da colonização "contra brancos em território europeu" e que, por esse motivo, teria causado tanto choque. Segundo essa perspectiva, não haveria nada de singular na história do Holocausto. O fator determinante e provocador de incômodo nas sociedades seria a vitimização de brancos. Essa visão, no entanto, é equivocada e apaga um elemento fundamental do genocídio nazista contra os judeus: o antissemitismo moderno.
Inventado na Europa do século 19, o antissemitismo surge em um contexto de emergência do movimento eugenista, que buscava hierarquizar as populações a partir de classificação raciais. Nesse novo quadro intelectual e político, os judeus, mesmo aqueles de pele clara, foram racializados e, consequentemente, subalternizados. Judeus eram os "semitas".
Essa forma de racismo, que mais tarde se tornou um dos pilares da ideologia nazista, consolidou-se, entre o final do século 19 e o início do século 20, como um verdadeiro movimento político em alguns países da Europa ocidental. Exemplos disso incluem a fundação da Liga Antissemita na Alemanha, o antissemitismo como agenda do Partido Social Cristão em Viena, e o movimento Ação Francesa na França, fundado na esteira do Caso Dreyfus.
Negar o contexto racial em que os judeus europeus viviam naquele período e o caráter racial constitutivo do Holocausto revela um profundo desconhecimento dos fatos históricos, se não desonestidade intelectual. Além disso, essa abordagem desconsidera os diversos aspectos que fizeram do Holocausto um evento único na história humana. Diante disso, cabe perguntar: em que consiste a singularidade do Holocausto?
A ideologia racial nazista e a centralidade do antissemitismo
A ideologia racial nazista buscava explicar o mundo e seu funcionamento com base em uma hierarquia entre as raças. Nesse contexto, a chamada "raça ariana" era vista como superior, responsável pelos avanços da humanidade e com o direito natural de governar o mundo. Outras raças, como os eslavos, eram classificadas como inferiores, enquanto os judeus eram considerados uma "anti-raça".
Mais do que inimigos nacionais ou uma raça subjugada, os judeus eram retratados como parasitas em forma humana, inerentemente malignos e destrutivos. A propaganda nazista e o livro 'Mein Kampf', de Adolf Hitler, desempenharam papéis centrais na disseminação dessa visão, apresentando os judeus ora como micróbios, ora como uma entidade superpoderosa, capaz de controlar tudo e destruir as conquistas da "raça ariana".
Além disso, o antissemitismo servia como elo entre elementos aparentemente contraditórios da ideologia nazista, como o anticomunismo, o antiliberalismo, a oposição à democracia moderna e as tendências anticristãs. Todas essas posições convergiam na luta contra os judeus, vistos como os responsáveis pela ideia de igualdade fundamental que, posteriormente, se manifestou na civilização ocidental e em conceitos secularistas e universais, como a democracia, o liberalismo e o socialismo. Nesse sentido, o genocídio nazista tinha como propósito não apenas eliminar fisicamente os judeus, mas também erradicar sua "presença espiritual", visando destruir tudo o que fosse considerado "judaico".
Burocratização e planejamento do genocídio
O regime nazista construiu uma estrutura administrativa que contava com lideranças políticas e administrativas que organizavam, executavam e otimizavam o processo de extermínio dos judeus. A implementação da "Solução Final da Questão Judaica" — plano para exterminar todos os judeus da Europa — foi formulado na secreta Conferência de Wannsee, em janeiro de 1942. Nessa ocasião, os oficiais nazistas apresentaram uma tabela detalhando o número de judeus em cada país europeu, com o objetivo de localizá-los e exterminá-los. Não há registro, na história, de outro genocídio que tenha operado de forma tão sistemática, mapeando cada local onde houvesse um único judeu.
O Holocausto foi executado por meio de uma divisão meticulosa de tarefas: a SS, organização paramilitar nazista, administrava os campos de concentração e extermínio; o Ministério dos Transportes coordenava a logística dos trens que deportavam milhões de prisioneiros; enquanto o aparato policial e militar era responsável por capturar e prender judeus nos territórios ocupados, muitas vezes delegando essa função às forças colaboracionistas dos países ocupados.
Escala do genocídio
Como já destacado, os nazistas tinham como objetivo a eliminação total dos judeus da Europa. O plano de extermínio, no entanto, não se limitava à Alemanha, mas abrangia todas as áreas sob domínio nazista, incluindo regiões do norte da África durante o regime colaboracionista da França de Vichy. Em apenas dezoito meses, entre 1942 e 1943, um milhão e meio de pessoas foram assassinadas nos campos de extermínio de Treblinka, Belzec e Sobibor. Entre fevereiro de 1942 e novembro de 1944, quase um milhão de judeus europeus foram mortos em Auschwitz, o maior campo de concentração e extermínio nazista. Ao todo, o Holocausto vitimou cerca de seis milhões de judeus entre 1941 e 1945, o que representou mais de 50% do judaísmo europeu e aproximadamente 40% da população judaica mundial. Antes da Segunda Guerra Mundial, a população judaica mundial era de aproximadamente 16,6 milhões; hoje, 79 anos depois, ainda é de 15,7 milhões, refletindo o impacto devastador dessa tragédia.
Das balas à industrialização do genocídio
O Holocausto não começou com as câmaras de gás. Na primeira fase do genocídio, a partir de 1941, especialmente em territórios soviéticos ocupados, o método predominante era o fuzilamento em massa e o enterro em valas comuns. Judeus eram levados a bosques, despidos e então fuzilados, tendo seus corpos posteriormente queimados em valas. Esse método, no entanto, logo se revelou "ineficiente". Além da falibilidade que permitia alguns poucos sobreviventes, os soldados que realizavam as execuções recebiam grandes quantidades de álcool para lidar com o trauma das matanças. Foi nesse contexto que surgiram os campos de extermínio, marcando o início da industrialização da morte.
O genocídio perpetrado em campos de extermínio como Auschwitz-Birkenau, Treblinka, Sobibor e outros seguiu uma lógica de eficiência industrial, com uma divisão rigorosa de funções projetada para otimizar o processo de extermínio. Esse sistema incluía procedimentos específicos de triagem dos prisioneiros, separação, raspagem de cabelo, numeração e, finalmente, a execução em câmaras de gás, seguida pela cremação dos corpos. Os prisioneiros eram tratados como peças em uma linha de produção mecanizada e racionalizada e, por vezes, o processo que levava as vítimas da plataforma de desembarque aos crematórios durava poucas horas.
Paralelamente a essa industrialização da morte, diversas indústrias do mercado alemão estabeleceram-se nas proximidades dos campos para explorar a mão de obra escravizada dos prisioneiros, como a IG Farben (atualmente Bayer), Daimler-Benz (atualmente Mercedes-Benz), Siemens, Volkswagen, entre outras.
O emprego das tecnologias mais avançadas da época foi fundamental para tornar o genocídio mais rápido, eficiente e barato. Esse processo incluiu a construção de ferrovias que conectavam toda a Europa aos campos, com rotas e cronogramas específicos, o uso do gás Zyklon B nas câmaras de gás, produzido pela IG Farben, e a construção de crematórios de alta capacidade para lidar com o grande número de corpos.
Comparar ou equipar? O risco da distorção
A negação da singularidade histórica do Holocausto propõe, ainda que indiretamente, a sua equiparação a outros processos de violência, anteriores ou posteriores. Como demonstrado ao longo deste texto, o genocídio judaico promovido pelos nazistas apresenta peculiaridades que não podem ser obscurecidas. Contudo, isso não impede que o Holocausto seja utilizado como ferramenta pedagógica para compreender e educar sobre os mecanismos de desumanização presentes em outras formas de violência contemporânea, inclusive no Brasil. Ao adotar essa abordagem, é crucial manter a clareza sobre a natureza singular do Holocausto, evitando distorções que ampliem indevidamente outros eventos ou minimizem a gravidade desse genocídio. Somente assim, será possível honrar a memória das vítimas e reforçar um compromisso consciente contra todas as formas de intolerância e desumanização.
Biografia do autor
Matheus Alexandre, sociólogo, pesquisador sobre antissemitismo contemporâneo na Universidade Federal do Ceará e professor da StandWithUs Brasil.
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