Desde os 12 anos de idade, a francesa foi violentada pelo, até então, namorado de sua mãe. "Todo mundo sabia"
Fabio Previdelli Publicado em 29/06/2021, às 13h00
Na noite da última sexta-feira, 25, a francesa Valérie Bacot saiu aplaudida depois de seu julgamento no tribunal de Chalon-sur-Saône, na França. Em 2016, Bacot assumiu ter atirado em Daniel Polette, com qual teve quatro filhos.
Porém, a relação dos dois estava longe de ser saudável, afinal, segundo afirma Valérie, o homem a estuprava desde que ela tinha cerca de 12 anos de idade, ou seja, há quase duas décadas.
Apesar de ter sido condenada a quatro anos de prisão, ela não voltará mais para a cadeia, já que três anos da sentença foram suspensos e ela já havia passado um ano em cárcere.
"Gostaria de agradecer ao tribunal e a todo o apoio que recebi. Agora é a hora de uma nova luta por todas as outras mulheres e por todos os maus-tratos", declarou aos jornalistas que acompanhavam o julgamento do lado de fora do tribunal.
Bacot disse ainda que “não estava aliviada, mas sim esvaziada mental e fisicamente.
Quando os abusos começaram, segundo ela explica em seu livro "Tout Le Monde Savait" (ou "Todo mundo sabia", em tradução livre), Daniel era namorado de sua mãe. Quando ele a estuprou pela primeira vez, Valérie tinha por volta de 12 anos — e Polette 37.
Pouco depois, aos 17, ela engravidou pela primeira vez. "Eu simplesmente queria me proteger. Proteger minha vida, a vida de meus filhos. Aos meus olhos, nada mais importava", explica em sua autobiografia sobre o motivo que a levou a cometer o crime, algo pela qual ela disse que deveria ser punida.
"Eu não sou apenas uma vítima. Eu o matei; é normal que eu seja punida. Mas se minha sentença for pesada, isso significará para mim que ele tinha o direito de se comportar da maneira como se comportou comigo", completa, afirmando que Polette causou um “inferno” em sua vida desde que a molestou pela primeira vez até quando ela o matou a tiros.
No livro, Valérie também diz que todos sabiam da agressividade de Daniel, que era parceiro de sua mãe, Joëlle Aubague. Porém, na última quarta-feira, 23, a matriarca se defendeu no tribunal a afirmou que "tudo aconteceu pelas suas costas", como aponta matéria do Le Monde.
De acordo com o que a advogada de Bacot, Nathalie Tomasini, informou à CNN, Daniel Polette chegou a ser preso em 1995 por dois anos e meio, por ter agredido sexualmente uma menor de idade — Valérie tinha 15 anos na época.
Apesar do ato repugnante, Bacot explica em seu livro que sua mãe a levou para visitá-lo durante esse período. O caso também foi amplamente divulgado pela mídia francesa na época, diz a CNN.
"Trazer sua própria filha para a prisão, para ver o homem que a estuprou? Esta mulher não entende nada!", declarou Mireille Polette, irmã de Daniel, em pronunciamento no tribunal na última quarta-feira, 23, de acordo com apuração do Le Monde.
Joëlle, no entanto, também rebateu essa acusação, dizendo que sua filha "queria ir, ela estava crescida, não foi forçada". Além disso, para surpresa do tribunal, ela ainda disse que "dessa forma, ela também foi capaz de completar suas horas de condução acompanhada".
Depois de cumprir a pena, Polette voltou normalmente para o convívio da família. Bacot afirma que, dessa maneira, os abusos continuaram. “Ninguém parecia achar bizarro que Daniel voltasse a morar conosco como se nada tivesse acontecido. Todos sabiam, mas ninguém disse nada", afirma em sua autobiografia.
Após engravidar aos 17 anos, Valérie teve que se instalar em um apartamento com Daniel, aponta documentos judiciais. Dessa forma, descreve que os anos que se seguiram foram marcados por episódios de “violência diária”.
Como se o abuso não fosse cruel o suficiente, a mulher relata que o ‘marido’, que era caminhoneiro, a obrigou a se prostituir na parte de trás de sua van. “O medo congelou meu cérebro”, diz em seu livro sobre como lidou como fato.
“Daniel me possui completamente, sou um objeto que pertence a ele, ele pode fazer o que quiser comigo”, diz. "Um dia ele vai me matar, está escrito. Eu sei disso desde que eu era criança, desde que minha mãe abriu as portas diante dele”, completa.
Segundo a CNN, documentos do tribunal apontam que um psiquiatra nomeado pelo tribunal francês constatou que Valérie, ainda hoje, apresenta sinais de estresse pós-traumático grave, assim como outras características que mulheres que sofreram relacionamentos abusivos possuem.
De acordo com seus advogados, o caso de Bacot é marcado não só pelo fato de uma jovem ter sua vida “destruída e devastada”, mas também, e sobretudo, “pela indiferença e pela omertà da sociedade".
Um exemplo disso, foi que a mulher tentou buscar ajuda da polícia, pedindo ao filho e ao namorado da filha para que denunciassem Daniel — já que, por ser constantemente vigiada, ela mesmo não conseguiria fazer isso.
Porém, segundo diz em seu livro, a denúncia foi recusada por duas vezes, já que as autoridades alegaram que o caso não era de sua jurisdição, informando que Bacot deveria procurar ajuda pessoalmente.
“Depois disso, decidimos não fazer nada, desistir da luta. De qualquer forma, ninguém está pronto para ouvir. Para nós, não há saída — tudo está perdido”, relata em sua autobiografia.
O caso gerou uma enorme repercussão na França, principalmente na parte judiciária, que não possui leis específicas sobre casos de mulheres que matam seus maridos por conta de atos agressivos e abusivos.
"Legalmente, a ideia de legítima [autodefesa] não se aplica aqui, porque a ameaça deve ser simultânea [ao ataque] e a resposta deve ser proporcional", explica a jurista Catherine Perelmutter.
"No entanto, as circunstâncias são tais que seu julgamento foi alterado, ela não estava em seu estado normal. Isso poderia ser levado em consideração... tudo o que ela passou pode ser levado em consideração", completa.
Segundo o psiquiatra que analisou o caso de Valérie Bacot agiu "com a certeza absoluta de que apenas esta ação permitiria que ela protegesse seus filhos". Para sua advogada, por ela estar em um estado de "julgamento alterado", pode-se dizer que Valérie não tinha outra escolha.
"Embora Bacot possa ser condenada legalmente, as instituições não podem condená-la moralmente", diz a historiadora da mídia Claire Sécail. "O que ela fez tornou-se quase insignificante em comparação com o que passou, o que, aos olhos da opinião pública, a torna a verdadeira vítima”.
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