Neto de Luís XIV, ele se tornou rei na Espanha, mas teve seu governo marcado por seus frequentes delírios
Odair Chiconelli - Coluna Publicado em 19/08/2020, às 16h00 - Atualizado em 11/02/2022, às 11h00
Até o final do século 15, a Espanha ainda não existia como um Estado unitário, estando dividida em vários pequenos estados independentes; dentre eles, Castela, o maior, e Aragão, que compreendia vários reinos semiautônomos, como a Catalunha e Valência.
Em 1481, essas duas coroas passaram a ser governadas conjuntamente por Isabel de Castela e Fernando de Aragão, os reis católicos que haviam se casado em 1469, em passo significativo para a unificação integral do país — o que só viria a ocorrer em 1512, com a anexação do Reino de Navarra.
Tratava-se, entretanto, de uma união de coroas e não de reinos, que tinham tradições, instituições e línguas diferentes. Em Aragão, por exemplo, o rei jurava observar os “fueros”, ou seja, as leis e os privilégios da nobreza rural e da aristocracia urbana, que permaneceram intactos mesmo após a união com Castela.
Com a morte de Fernando, em 1516, as coroas de Castela e Aragão foram passadas para seu neto, Carlos I, soberano dos Países Baixos e herdeiro de possessões na Áustria e na Alemanha, que também viria a se tornar o imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Era o início da dinastia Habsburgo na Espanha.
Carlos II, o último rei espanhol dessa dinastia, morreu em 1700, sem deixar herdeiros, mas apontou um sucessor: Felipe, Duque d’Anjou, neto de Luís XIV da França, que se tornou Felipe V da Espanha, o primeiro rei da dinastia Bourbon. Naquele momento, um adolescente francês, nascido no Palácio de Versalhes, que não falava nem o castelhano de Castela, nem o catalão de Aragão, obrigando a corte espanhola a falar o francês durante o seu reinado.
Em 1701, temendo a hegemonia francesa com a ascensão de um rei Bourbon na Espanha, a Áustria, a Inglaterra, a República Holandesa e outros Estados europeus declararam guerra à Espanha. Internamente, enquanto Castela apoiava o novo monarca Bourbon, a maior parte de Aragão, a Catalunha e Valência apoiavam o arquiduque austríaco Carlos, o pretendente Habsburgo ao trono.
A Guerra da Sucessão Espanhola terminou em 1714 com a expulsão dos austríacos de Barcelona e a assinatura do Tratado de Utrecht. Felipe V foi confirmado como o novo rei Bourbon da Espanha, mas teve de renunciar aos direitos de sucessão ao trono da França. A Espanha perdeu seus territórios na Itália (alguns reconquistados anos depois) e nos Países Baixos, bem como teve de ceder o Porto de Gibraltar (até hoje britânico) e a Ilha de Minorca (retomada em 1782) à Grã-Bretanha.
Durante a guerra, o novo rei Bourbon aboliu os “fueros” de Aragão e Valência. A mesma medida seria implementada na Catalunha e em Maiorca, após a guerra. Seu objetivo era a unificação legislativa e constitucional do país sob o modelo político e administrativo de Castela. (As exceções foram o Reino de Navarra e o resto da região Basca, que mantiveram seus regimes semiautônomos).
Felipe V modernizou o Estado espanhol, promoveu uma reforma fiscal, construiu e reparou canais, reorganizou as Forças Armadas e reconstruiu a Marinha, que havia sido destruída e saqueada pela Inglaterra durante a guerra. Seguindo padrões de desenvolvimento do século 18, investiu na criação de fábricas estatais e reestruturou o comércio com as colônias nas Américas.
O homem atrás do monarca, entretanto, padecia do que os médicos de sua época chamavam de “melancolia”, hoje conhecida como “transtorno afetivo bipolar”, condição que herdara da família da sua mãe. A primeira crise teria ocorrido em 1717, quando foram reportados sintomas de histeria, beirando a loucura. A partir de 1730, reunia-se com seus ministros entre 2 e 5 horas da manhã; após o desjejum, dormia até o meio dia, quando acordava para o almoço. À tarde, assistia à missa, recebia visitantes, ouvia leituras ou simplesmente contemplava a paisagem pela janela.
Em momentos de crise, mordia seus braços e mãos, gritando e cantando. Em seus frequentes delírios, acreditava que não podia andar porque seus pés tinham tamanhos diferentes, ou imaginava ter se transformado em uma rã, comportando-se como tal para a perplexidade de todos no palácio. Às vezes, passava até 15 dias em sua cama sem se levantar nem mesmo para satisfazer necessidades fisiológicas.
“O rei está permanentemente triste. Diz acreditar que vai morrer, que sua cabeça está vazia e que ela vai cair. Não que tenha medo da morte, pois absolutamente não a teme, mas esta é uma obsessão involuntária da qual não consegue se desvencilhar. Prefere permanecer em seus aposentos e ver somente as pessoas com as quais está acostumado. A todo momento, me manda buscar o padre Daubenton ou o seu médico, dizendo que isso lhe traz alívio,” escreveu o marquês de Louville, amigo e confidente de Felipe V, em carta ao conselheiro Torcy.
Apesar do seu transtorno mental, Felipe V se casou duas vezes, teve dez filhos e nunca aceitou, como católico fervoroso, a possibilidade de manter relações com outras mulheres fora do casamento. O primeiro rei estrangeiro da Espanha governou o país por 45 anos e passou para a história como um reformador do Estado, bem como o último rei espanhol a liderar pessoalmente suas tropas em campos de batalha.
No verão de 1746, Felipe V sofreu um AVC e morreu aos 63 anos. Quando tentaram lhe tirar as roupas, que se negara a trocar havia muito tempo por medo de que outras limpas pudessem envenená-lo, notaram que sua pele se desprendia junto com elas. A solução foi mumificá-lo, algo sem precedentes na história da Espanha.
Sua filha Mariana Vitória se casou com o Infante José, que viria a tornar-se o rei José I de Portugal. Dessa união nasceu a futura Maria I, princesa do Brasil, que também passou a manifestar transtornos mentais após a morte do seu marido e primogênito.
Em 1816, seu segundo filho lhe sucedeu como João VI; seis anos mais tarde, seu neto Pedro proclamaria a independência da colônia, dando real sentido ao título que a então Infanta Maria recebera aos 16 anos, e postumamente transformando Felipe V em rei-trisavô do Brasil.
O Colunista Odair Chiconelli é professor de língua inglesa e pesquisador de história.
*O canal Coluna não reflete, necessariamente, a opinião da Aventuras na História.
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