Aberto por mais de mil anos, caminho entre o Oriente e o Ocidente uniu dois mundos incomunicáveis
Isabelle Somma Publicado em 01/10/2018, às 07h00
No meio da noite, dois monges e sua pequena comitiva entraram pelo portão leste de Constantinopla. A visão da portentosa capital do Império Romano do Oriente deixou todos aliviados. Afinal, depois de quase seis anos de viagem, mais de 15 mil quilômetros percorridos entre desertos, montanhas e rios desconhecidos, eles haviam cumprido sua missão. Traziam a encomenda que o imperador Justiniano em pessoa lhes havia feito.
Enroladas em cordas finas de linho, as varas ocas de bambu não pareciam pedido digno de um imperador. Mas, dentro delas, estava um dos segredos industriais mais bem guardados do mundo antigo: casulos intactos de uma espécie de borboleta, a fina matéria-prima do tecido mais cobiçado de todos os tempos – a seda.
Os monges espiões de Justiniano foram apenas mais dois entre milhões de aventureiros, comerciantes, peregrinos, soldados, reis, sacerdotes ou simples nômades sem rumo que percorreram a pé, ou em lombo de animais, o mais conhecido caminho entre o Oriente e Ocidente, a chamada Rota da Seda. O termo foi empregado pela primeira vez pelo arqueólogo alemão Ferdinand Von Richthofen, no século 19, e denomina o conjunto de caminhos que liga a costa do mar Mediterrâneo, na atual Síria, a Xiang, na China, atravessando 7 mil quilômetros entre os territórios dos atuais Iraque, Irã, Turcomenistão, Uzbequistão, Afeganistão e Paquistão.
O percurso coincide com o caminho natural que corta a Ásia longitudinalmente, margeando altas cadeias de montanhas, desertos e mares. De acordo com vestígios arqueológicos, foi o caminho das migrações pré-históricas, por onde o homem africano caminhou para a Ásia e chegou à Oceania, sempre em busca de melhores condições de caça e clima ameno. Em sentido contrário, foi a rota das migrações dos indo-europeus, as levas de homens que vieram da Ásia para dar origem aos povos semitas – como árabes e judeus – e à maioria das etnias europeias.
“As primeiras referências aos caminhos que posteriormente seriam chamados de Rota da Seda surgiram na Pérsia, no século 8 a.C.”, diz o historiador e arqueólogo Frantz Grenet, da École Normale Supérieure de Paris, França. Diferentemente dos gregos e babilônios, cuja força era representada nas cidades-estados, os persas se mantiveram nômades ou seminômades. Suas caravanas cruzavam os acidentados terrenos da região entre as montanhas do atual Afeganistão e os desertos do Irã. “A maior parte desses caminhos era conhecida há séculos pelos povos de origem persa: os sogdianos, que habitavam o atual Uzbequistão, os partas, arianos e bactrianos, do atual Afeganistão, e os aracosianos, que viviam onde hoje é o Paquistão”, afirma Grenet. Muito antes de o Império Persa existir, esses povos migratórios já comercializavam seda com chineses e vendiam seus tecidos a romanos e cartagineses em Damasco e Antioquia, na Síria. “Os caminhos abertos por essas caravanas deram origem à Rota da Seda”, diz o arqueólogo francês.
A unificação e a expansão do Império Persa, primeiro sob o poder de Ciro, depois com Dario, no século 6 a.C., deram aos persas o controle sobre um território que ia das montanhas da Grécia ao vale do rio Indo, na Índia, passando pela Turquia e Mesopotâmia. As caravanas vindas do Oeste traziam ouro, marfim e peles de animais da costa africana, cavalos e camelos da Babilônia, vinhos e ferro da Turquia.
Da China vinham a seda, perfumes e ervas aromáticas, além do almíscar tibetano. Nem a conquista do Império por Alexandre, o Grande, em 330 a.C., interromperia o que havia se tornado a avenida central do mundo. Quando Alexandre morreu, era possível trafegar do Egito ao Afeganistão, da Índia à Grécia, falando uma só língua: a do comércio.
Para além da Pérsia, no entanto, nem Alexandre, o Grande, ousou ir. As montanhas do Himalaia constituíam uma barreira às caravanas persas, assim como os povos guerreiros do deserto de Gobi. Do outro lado, no entanto, outro grande Império já construíra sua própria rede viária. Na China, as primeiras referências a uma rota comercial com povos do Oeste indicam que, no século 2 a.C., o diplomata Zhang Qian, por ordem do imperador da dinastia Han, liderou uma expedição para fazer uma aliança com um povo indo-europeu.
“A rota de Qian partia de Xian, antiga capital do Império Chinês, e rumava em direção noroeste pelo deserto de Gobi e pelos altiplanos da Mongólia”, conta a historiadora Laura Newby, da Universidade de Oxford, Inglaterra. Para ela, o encontro das expedições chinesas com as caravanas das antigas rotas persas abriu o que hoje chamamos de Rota da Seda.
Baseados em documentos encontrados em Xian, arqueólogos concluíram que o povo encontrado pelos chineses eram os sogdianos, que haviam dominado o lado oriental da Rota. Eles eram tão influentes que, na época, sua língua era equivalente ao que o inglês representa hoje. “Ao superar bactrianos e indianos no século 3 eles passaram a controlar os dois lados da corrente, com postos na Crimeia e no Sudeste Asiático e colônias no norte da China”, diz o arqueólogo Frantz Grenet. Segundo ele, nessa época era raro alguém fazer o trajeto inteiro da rota, mesmo dispondo de montaria. “O mais comum era as caravanas se especializarem num determinado trecho e comercializarem entre si. Ao final de cada trecho, nasciam entrepostos para descansar, alimentar os animais e, é claro, comercializar mercadorias. Com o tempo, alguns desses locais acabaram se transformando em grandes cidades, como Bukhara e Samarcanda.”
O apogeu sogdiano coincidiu com o declínio da ponta ocidental da Rota. Entre o século 3 e 4, o fluxo de caravanas foi muitas vezes interrompido por falta de segurança. “O período mais perigoso foi provavelmente no século 4, quando as estradas foram bloqueadas pela migração dos hunos em direção ao oeste”, diz o arqueólogo francês.
Enquanto os bárbaros partiam para invadir a Europa e o Império Romano, o lado oriental recebia um novo tipo de frequentador: monges budistas. Os relatos que três deles – Faxian, Songyun e Xuanzang – fizeram das peregrinações entre os séculos 5 e 7 ficaram famosos e hoje são parte do ideário daquela religião. Nesse período, o poder dos budistas fazia com que as viagens dos monges envolvessem, além de questões espirituais, diplomacia e política.
A hegemonia sogdiana no comércio e a budista na religião terminou no final do século 8, quando árabes tomaram a Ásia Central. A ascensão do Império Abássida (750-1258) mudou a capital muçulmana de Damasco para Bagdá, e fez desta cidade parada obrigatória para as caravanas do Oriente – causando um desvio e tanto no traçado original. O Islã passou a ser a religião dominante na Rota. Os mercadores árabes e persas (que se converteram à nova fé) sobressaíram. A produção de tapetes de lã e a habilidade dos persas com negócios puseram as cidades de Nishapur e Isfahan entre os principais pontos da Rota.
Com a metade persa se tornando muçulmana, a parte chinesa da estrada estava prestes a cair sob controle mongol. No século 12, Gêngis Khan conquistou toda a Ásia Central, o norte da China e o planalto tibetano. Para comerciantes e peregrinos, paradoxalmente, foi um dos períodos mais seguros para transitar pela rota: bastava pagar.
O líder construiu postos de guarda e mantinha tropas para patrulhar o caminho. “Se o viajante não era um inimigo de Khan, podia percorrer as estradas que o exército controlava”, diz a historiadora Merle Goldman, da Universidade de Boston, nos Estados Unidos. A segurança na Rota não era extensiva às cidades instaladas às margens dela. As tropas mongóis destruíram Bukhara e saquearam Samarcanda em 1220. Bagdá foi arrasada em 1258.
No extremo oeste da Rota, no entanto, o século 13 trouxe boas novidades. A Europa se reabria ao comércio, prejudicado durante séculos pela estrutura feudal e ausência de estradas. Ao contrário do que ocorreu na Europa Central, as cidades-estados italianas se mantiveram em constante intercâmbio cultural e comercial com a África e o Oriente próximo, dominados desde o século 7 pelos muçulmanos.
Da Itália, vem o mais famoso viajante da Rota da Seda: o veneziano Marco Pólo, que teria repetido, entre 1275 e 1295, a viagem que seu pai e tio já haviam feito anos antes. Segundo seus relatos, ele foi de navio até Constantinopla, seguiu para o mar Cáspio e partiu para a Pérsia. Na última parte de sua epopeia, Pólo teria ido até a China, e lá convivido com a corte do imperador Kublai Khan, neto de Gêngis. Sobre essa última escala, há controvérsia entre os historiadores.
Outro viajante famoso foi Ibn Battuta (1304-1369), do atual Marrocos. O árabe percorreu mais de 120 mil quilômetros, parte deles em trechos da Rota da Seda. Os relatos de suas aventuras estão narrados no livro Rihlah (“Viagens”). Nessa época, as guerras promovidas nos Estados mongóis por Tamerlão, um dos sucessores de Khan, frequentemente bloqueavam as estradas e o comércio. Isso foi um empurrão e tanto para que as ascendentes nações europeias se lançassem à aventura de contornar a África em busca de uma rota alternativa até o Extremo Oriente – o que os portugueses conseguiram no século 15. Muito mais baratas e rápidas, as viagens por mar colocaram fim à epopeia milenar de uma estrada que começou com pastores nômades e viu passar uma multidão.
Os povos, os personagense o trajeto da Rota da Seda
Durante muitos séculos, o império cristão controlou portos importantes como o de Antioquia, que escoava as mercadorias vindas do Oriente para a Europa, e Trebizonda, de onde partiam os barcos que cruzavam o mar Negro, encurtando o caminho de quem vinha da Europa ou se encaminhava para lá.
O pai e o tio de Pólo viajaram pela Rota até Pequim e teriam voltado à Europa para buscar 100 sábios ocidentais. Na volta, Marco se juntou à dupla e, juntos, teriam refeito boa parte do caminho.
Representante do rei Henrique III de Castela e Leão, navegou pelos mares Mediterrâneo e Negro até Trebizonda, onde iniciou uma rota terrestre. No fim, conheceu Tamerlão, um sucessor de Gêngis Khan.
O árabe foi um dos maiores mochileiros de seu tempo. Partiu do atual Marrocos e passou por locais como Egito, Iraque, Turquia, Rússia, Índia e China. Usou a rota principal e caminhos alternativos.
A região do Khorasan, no nordeste do atual Irã, era de onde partiam grandes caravanas de comerciantes que faziam o intercâmbio entre a China e a Europa. Os mercados da região eram disputados e, no século 13, a região também passou a ser conhecida pela qualidade de seus tapetes.
O líder dos mongóis utilizou a Rota para dominar a maior extensão de terra que um homem já governou. Seu exército garantia a segurança de aliados e de embaixadores que visitavam suas terras.
Fizeram descobertas valiosas, como a seda e o papel, mas poucos viajantes saíam da China para vender produtos. Geralmente eram os exércitos das dinastias chinesas que usavam as estradas, além de monges budistas. Em época de guerra, esses caminhos ficavam interrompidos e o comércio era dificultado.
Durante séculos, os sogdianos, da Transoxiana, dominaram o comércio na Rota. Seus mercados eram os mais procurados e a língua franca era a deles. As invasões mongóis mergulharam a região em decadência: Bukhara foi completamente destruída e Samarcanda perdeu grande parte dos artesãos.
Ao morrer, com 65 anos, o monge budista chinês tinha percorrido boa parte da Ásia Central e da Índia. Divulgou o budismo, coletou escritos religiosos e escreveu, em seda, um diário de viagem.
Tecidos e especiarias eram os atrativos da Índia. Pelas estradas secundárias, os comerciantes indianos atravessavam as montanhas até os mercados da Ásia Central para vender suas mercadorias. O percurso para a Índia também era frequentado por monges e peregrinos budistas vindos da China.
A preciosa mercadoria chinesa surgiu em 2000 a.C. e foi levada para a Europa já no século 4 a.C., a pedido de homens como Júlio César.
A origem foi na China, no século 2. Mas quem dominou as técnicas de fabricação foram os persas convertidos ao Islã. No século 8, auge da Rota, eles o distribuíram pela Ásia Central e Iraque.
O budismo surgiu na Índia e, a partir do século 4, usou a Rota para ir ao Tibete e à China. Já o islamismo deixou a Arábia e seguiu os caminhos das caravanas para chegar à Pérsia, ir até a Índia e conquistar a Ásia Central.
Os chineses conheciam a pólvora há tempos, mas foram os venezianos que primeiro venderam na Rota mosquetões espanhóis e ingleses que chegaram à China no século 14.
Doenças como varíola, sarampo e sífilis andavam junto com os viajantes. Na Mongólia, o sarampo matou milhares no século 11. A peste negra que dizimou a Europa no século 13, teve origem na China.
Surgiu na China e foi levada à Europa em grandes quantidades só a partir do século 13.
A especiaria mais cobiçada ia da Índia para a Ásia Central e, mais tarde, Europa.
Life along the Silk Road, Susan Whitfiled, 2001
The Silk Road: two thousand years in the heart of Asia, Frances Wood, 2003
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