Os dois não podiam ser mais diferentes: enquanto dom Pedro preferia andar com amigos de origem simples, Leopoldina era muito refinada, tinha sólida formação científica (era craque em mineralogia) e havia sido amiga do poeta alemão Johann W. Goethe e do compositor austríaco Franz Schubert.
Como a irmã de Leopoldina tornara-se esposa de Napoleão, dom Pedro se tornou concunhado do homem que obrigou sua família a fugir de Portugal. Apesar das diferenças, Leopoldina ficou de queixo caído no primeiro encontro com o noivo. Eis o que ela escreveu numa carta sobre a primeira refeição a dois entre eles: “Conduziu-me ao salão de jantar, puxou a cadeira e, enquanto comíamos, piscou-me o olho e enlaçou a perna dele na minha debaixo da mesa”.
Apesar do casamento, a paz da família real no Rio estava com os dias contados. Desde 1815, com a derrocada de Napoleão, a desculpa que a corte tinha usado para se mudar para o Brasil não se sustentava mais. Dom João (agora João VI, graças à morte de sua mãe, Maria I) não só se recusava a voltar como havia transformado a ex-colônia em reino unido a Portugal, sacramentando o Brasil como sede do império português. A capital carioca havia deixado de ser uma vila acanhada de uns 40 mil habitantes para virar uma metrópole de mais de 100 mil.
Quem não estava achando essa história nada engraçada eram os portugueses. Eles haviam perdido o domínio político sobre o Brasil, viviam uma crise econômica (gerada, em parte, pelo fim do monopólio comercial sobre a colônia) e estavam submetidos a uma humilhante ocupação militar inglesa.
Adicione a esse caldo uma pitada das ideias da Revolução Francesa, que ainda repercutiam em toda a Europa, e o resultado foi a chamada Revolução Constitucionalista do Porto, em 1820. Os revolucionários convocaram eleições e exigiram uma Constituição para Portugal, limitando os poderes absolutos do rei. Para isso, determinavam que o soberano voltasse.
Dom João VI não sabia se ia, se ficava ou se mandava dom Pedro. Tudo indica que ele temia o interesse do filho pelas ideias liberais e que, uma vez em Lisboa, ele fosse aclamado rei pelos revolucionários. O herdeiro, por sua vez, ressentia-se da desconfiança do pai. Em meio à crise, dom Pedro acabou se tornando porta-voz das reivindicações constitucionais junto ao pai, convencendo-o a jurar lealdade à Constituição.
Quando dom João VI decidiu retornar, em março de 1821, dom Pedro tornou-se príncipe regente do Brasil. Pouco antes da partida do pai, ele tomou sua primeira medida antipopular: mandou reprimir com baionetas tumultos causados por protestos contra medidas impostas por Portugal. Pelo menos três pessoas morreram no episódio.
Independência
Em Portugal, dom João VI tornou-se uma figura decorativa. Quem governava, de fato, era a Assembleia – e suas medidas atingiam em cheio o orgulho brasileiro. “O projeto dos portugueses mais exaltados parecia ser a redução do Brasil ao estado colonial, numa situação política e econômica mais desvantajosa que a de antes da vinda do rei”, diz Isabel Lustosa, autora da biografiaDom Pedro I.
A partir de então, Portugal decidiu que cada província do Brasil teria um governo autônomo que responderia diretamente a Lisboa, enfraquecendo o poder do príncipe regente. Para piorar, Lisboa enviou tropas ao Brasil que deviam submissão direta ao governo português.
Dom Pedro estava dividido. De um lado, era inclinado a manter-se fiel a Portugal. Do outro, era atraído pelos panfletos e boatos que anunciavam que seria aclamado rei ou imperador do Brasil, caso rompesse com Lisboa. Um decreto luso exigindo que o príncipe voltasse à Europa, onde deveria viajar por vários países para “terminar sua educação”, fez com que ele enfrentasse diretamente as ordens da corte e decidisse permanecer no Brasil. Foi o Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822. Estava aberto o caminho para a independência.
Na tarde do dia 7 de setembro, ao voltar de uma viagem à capital paulista para apaziguar disputas políticas, a comitiva de dom Pedro foi alcançada na colina do Ipiranga pelo serviço de correio da corte. As notícias não eram nada boas: a Assembleia portuguesa exigia a demissão de todos os ministros nomeados por dom Pedro e ameaçava fazer uma devassa em todos os atos do príncipe.
Segundo um dos membros da comitiva, o padre Belchior (o mesmo que narrou que dom Pedro estava sofrendo uma disenteria “que o obrigava o tempo todo a apear-se para prover”), dom Pedro pisoteou as cartas vindas de Portugal, arrancou do chapéu o laço com as cores lusitanas e teria dito as famosas palavras: “Laços fora, soldados. Viva a independência, a liberdade e a separação do Brasil”, declarando que o lema do país seria Independência ou Morte.
Em 12 de outubro, dom Pedro I é aclamado imperador e defensor perpétuo do Brasil. Mas, diferentemente do que muita gente imagina, a independência do país não foi feita apenas com o grito no Ipiranga. Ao cortar os laços com Portugal, o Brasil, na prática, declarou guerra à ex-metrópole. Sangue foi derramado em diversas regiões – em algumas províncias, como na Bahia, a independência só seria conquistada quase um ano depois.
Constituinte
Após a independência, prevalecia o consenso de que o Brasil precisava de uma Constituição própria. Apesar de defender princípios liberais, dom Pedro temia que o poder da Assembleia Constituinte eleita em 1823 ameaçasse seu governo, o que poderia também levar à fragmentação do Império. Após se sentir desafiado pelos parlamentares oposicionistas, ele dissolveu a Assembleia em novembro e, em março de 1824, outorgou uma Constituição elaborada por um conselho de dez membros que ele mesmo indicara.
Capa da Constituição de 1824 / Crédito: Reprodução
“Por muito tempo, essa medida autoritária terminou ofuscando o reconhecimento do avanço do texto constitucional imposto por dom Pedro”, diz a historiadora Lucia Bastos Neves, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A nova Constituição incluía direitos pouco comuns para a época, como a liberdade de crença e culto concedida a adeptos de religiões não-cristãs.
Por outro lado, garantia ao imperador poderes excepcionais. Além de ser o chefe do Executivo, ele detinha também o chamado Poder Moderador, com o qual podia resolver impasses entre os demais poderes com mão de ferro e dissolver o Congresso quando quisesse.
A decisão causou revolta. Lideradas por Pernambuco, várias províncias do Nordeste se rebelaram contra o que consideraram um ato de tirania, formando a chamada Confederação do Equador. A repressão foi implacável e vários chefes rebeldes, entre eles Frei Caneca, foram executados. A revolta foi seguida por outra, no extremo sul do Império: a província da Cisplatina (atual Uruguai), anexada por dom João VI, rebelou-se com ajuda da Argentina. A guerra acabou em 1828, com o reconhecimento do Uruguai como país independente.
Outros desastres, dessa vez na vida doméstica, foram minando a popularidade do soberano. O principal deles foi o triste fim de seu casamento com dona Leopoldina. Dom Pedro chegou muito perto de assumir em público seu romance com Domitila de Castro, a marquesa de Santos, com quem teve vários filhos reconhecidos. O pior, porém, é que transformou a amante em dama de honra da imperatriz. Dona Leopoldina sofreu uma série de crises depressivas. Acabou morrendo em dezembro de 1826.
Com a morte de dom João VI no mesmo ano, o imperador se viu envolvido na sucessão do trono português. Acabou designando sua filha adolescente, dona Maria da Glória, como rainha de Portugal, combinando o casamento dela com o tio, dom Miguel, nomeado regente. Tiro pela culatra: Miguel assumiu o poder como rei absoluto de Portugal e mandou o irmão às favas.
Por aqui, as hostilidades entre brasileiros e portugueses fizeram com que dom Pedro percebesse que os nativos sempre o veriam com desconfiança por seus laços congênitos com Portugal. A imprensa atacava dom Pedro violentamente, o povo protestava nas ruas. Como seu filho, Pedro, havia nascido no Brasil, o imperador deu sua última cartada para que o Brasil não se esfacelasse, abdicando do trono em nome de uma criança de 5 anos de idade (que, coroado em 1841, seria o último imperador do Brasil).
Pedro IV
Para nós, brasileiros, a história de dom Pedro costuma terminar por aqui, com seu retorno à Europa. Mas foi ao partir para o exílio, em 1831, então já casado com dona Amélia, uma princesa alemã, que ele viveu uma espécie de renascimento e se tornou um ícone da liberdade na Europa. Havia vários motivos para que dom Pedro fosse encarado dessa maneira.
O primeiro deles era sua defesa da volta de um governo constitucional às terras lusas, governada então despoticamente por seu irmão Miguel. “Naquela época, não era comum que um monarca se empenhasse em garantir direitos constitucionais”, diz Braz Brancato. Segundo o historiador, isso fazia com que ele fosse visto com desconfiança por seus pares da Santa Aliança, grupo de monarquias conservadoras cristãs que incluía Rússia, Áustria e Prússia (hoje na Alemanha).
Dom Pedro IV de Portugal / Crédito: Wikimedia Commons
Ao se instalar em Paris com parte da família, dom Pedro tornou-se uma das personalidades mais populares da capital francesa, sendo recebido com deferência nos elegantes bailes da corte. A França vivia uma onda liberal marcada pela ascensão do rei constitucional Luís Filipe e dom Pedro chegou a morar em um castelo real, onde recebia exilados de Portugal e de outros países que sofriam sob a mão de monarcas despóticos.
Nesse período, ele buscou apoio militar para invadir Portugal e destituir seu irmão, fazendo de sua filha a rainha de Portugal. Apesar do apoio verbal, nenhum dos reinos europeus quis se envolver oficialmente com a briga. Foi só com empréstimos pessoais (para pagar mercenários) e certo número de voluntários portugueses e franceses que dom Pedro partiu para sua derradeira aventura. Liderando um exército de 7 mil homens, ele foi para Portugal, onde teria que enfrentar dezenas de milhares de soldados comandados por dom Miguel.
O fim de um guerreiro
Incansável e se arriscando pessoalmente nas batalhas, ele inspirou seus soldados de tal maneira que o que parecia impossível aconteceu: em 20 de setembro de 1834, Portugal passava às mãos da nova rainha, dona Maria II. “Ela e seu filho, Pedro V, iriam inaugurar a fase moderna e constitucional da monarquia portuguesa”, diz Isabel Vargues.
Morte de D. Pedro I no Palácio Nacional de Queluz / Crédito: Wikimedia Commons
O ex-imperador do Brasil não viveu muito para acompanhar o governo da filha. A guerra acabara também com sua saúde, e ele morreu provavelmente de tuberculose no dia 24 de setembro de 1834. No mesmo quarto decorado pelas cenas de dom Quixote onde ele nascera, 36 anos antes, quando o Brasil não passava de uma colônia portuguesa do outro lado do Atlântico.
Saiba mais
D. Pedro I, Isabel Lustosa, Companhia das Letras, 2006
Dicionário do Brasil Imperial, Ronaldo Vainfas, Objetiva, 2002