Um dos egos mais inflados da história da arte, El Greco chegou a provocar Michelangelo e levou uma vida de altos e baixos
Mariana Sgarioni Publicado em 22/05/2023, às 19h03 - Atualizado em 24/08/2023, às 16h07
“Aqui jaz o grego de quem a natureza aprendeu a arte”. O epitáfio não poderia ser mais apropriado para descrever a vida de alguém que se achava acima do bem e do mal. Se houve uma certeza que Domenikos Theotokopulos sempre manteve em sua vida foi a de sua incrível genialidade – mesmo quando o chamavam de louco e incompetente ou divulgavam que suas figuras deformadas não eram seu estilo, mas fruto de uma doença na visão, o astigmatismo.
Tanto confiava em si próprio que poucos teriam a coragem que ele teve, nos anos 1570, ao apreciar pela primeira vez a Capela Sistina: “Michelangelo pode ser uma excelente pessoa, mas nada entende de pintura. Se jogarem fora toda essa obra, eu poderei refazê-la com mais honestidade e decência”, teria falado. Pronto. Causou tanta antipatia no meio artístico que foi enxotado de Roma, onde triunfava a pompa cardinalícia, e ficou tido como pintor maldito durante quase 300 anos.
Suas formas e cores não naturais foram tão criticadas que chegaram a ser consideradas piadas de péssimo gosto. O nome só começou a ser lembrado com relevância a quase 350 anos de sua morte, quando artistas e críticos modernos passaram a defender que não deveria se aplicar os mesmos padrões de “correção” a todas as obras de arte.
Picasso foi um desses artistas e, em grande medida, responsável por chamar a atenção para importância da obra de El Greco, chamando-o até mesmo de “o primeiro cubista”. “El Greco viveu numa época em que o normal era reproduzir a realidade, como se o quadro fosse transparente: uma janela para se olhar através”, afirmou Rodrigo Naves, autor do livro O Mundo Turvo, sobre a obra de El Greco.
“Mas ele usava a pincelada para estruturar o quadro, ousando turvar essa transparência.” Pode parecer complicado, mas isso significa simplesmente que ele pintava coisas que ninguém via. Nem ele mesmo. Uma temeridade no século 16. Domenikos partiu de Creta, em 1560, com 19 anos em direção de Veneza.
Ali, foi aprendiz no ateliê do mestre renascentista Ticiano e conheceu Tintoretto, outro dos grandes artistas da época. Permaneceu na cidade pouco mais que meia década, quando seguiu para Roma, chegando ao lar dos papas com uma carta de recomendação de Ticiano. Sobre a proteção do cardeal Alessandro Farnese conseguiu algumas encomendas da corte romana e assinou suas primeiras obras como Dominico Greco.
Tudo parecia ir muito bem até que a polêmica declaração sobre a obra do mestre dos mestres Michelangelo desviasse seu caminho do estrelato. Dominico passou de jovem promessa a maldito quase imediatamente. Assim, ele partiu para a Espanha. Sua ideia era se instalar em Toledo, onde estava em construção o mosteiro de Escorial (ou seja: boas oportunidades de trabalho para artistas italianos).
Mas antes, passou por Madri, onde reinava Felipe II, líder espanhol da Contrarreforma – o movimento da Igreja Católica para barrar o avanço do protestantismo na Europa, que gerou iniciativas tão ambíguas quanto universidades e tribunais de Inquisição. Assim, conhecido por presidir cenas de torturas e ter ordenado a morte de seu próprio filho, Felipe também era famoso por patrocinar a arte.
Domenikos, então Dominico, resolveu assumir o codinome El Greco e ganhou a simpatia de membros da corte. O próprio rei lhe pediu que pintasse 'O Martírio de São Maurício' para ocupar um lugar nobre na basílica do Escorial. “Felipe queria algo sangrento, borbulhando cenas de horror. Um martírio”, afirmou o curador Keith Chrstiansen.
Eis que El Greco fez uma obra que mostrava pessoas serenas, sem traços de alarme ou de medo. Contrariado, Felipe II pagou o trabalho, colocou-o num espaço bem escondido e encomendou outra tela com o mesmo tema para outro artista. Em 1577, depois do episódio, não se sabe se por ordem do rei ou por iniciativa própria, partiu para Toledo, de onde nunca mais sairia até sua morte.
Com o único dinheiro que lhe restara, alugou nada menos do que o palacete do conde de Villena, o mais belo e suntuoso da cidade. Mas, assim que chegou, foi chamado pela Inquisição. Segundo o historiador, quando foi perguntado sobre quem era e o que fazia em Toledo, teria respondido: “Não sou obrigado a lhes dizer por que estou aqui”. Mas o talento de El Greco triunfou em Toledo.
Sua primeira encomenda foi um conjunto de pinturas para a igreja de São Domingos. O desenho dos altares foi feito no estilo do arquiteto veneziano Palladio. O quadro principal, A Assunção da Virgem , marca um novo período na vida do artista: a influência de Michelangelo – quem diria! – começa a aparecer nos seus desenhos de figuras humanas. Somando-se a isso algumas técnicas venezianas, ele inaugura um estilo próprio e novo, com diferentes intensidades das cores e contrastes.
“Nessa fase, desenvolveu até o máximo as potencialidades de sua arte. As influências de Tintoretto e Michelangelo foram aliadas ao seu estilo intrigante e absolutamente pessoal: o resultado são figuras alongadas em forma de chama, geralmente pintadas em cores frias, lúgubres e azuladas, expressando um intenso sentimento religioso”, aponta Chrstiansen.
Seu prestígio cresceu ano após ano, até que precisou contratar ajudantes para dar conta de tanta encomenda. Segundo Francisco Calvo Serraller, autor de O Enterro do Conde de Orgaz (livro homônimo de uma das mais célebres telas de El Greco, pintada entre 1586 e 1588), El Greco enriqueceu e era capaz de pagar pequenas fortunas para músicos animarem seus jantares todas as noites.
No auge da fama, nada assustava o artista. Nem mesmo a Inquisição. Quando pintou Espólio, em 1579, para a catedral de Toledo, El Greco foi novamente chamado a depor. Tudo porque não colocou a coroa de espinhos na cabeça de Jesus. Mas ele renegou a intervenção em sua obra: “Dizia que os inquisidores só poderiam dar palpites se pagassem por ela”, contou.
E parece que eles gostaram da ideia. Entre os diversos retratos que El Greco produziu nos anos seguintes figuram vários cardeais inquisidores. Diferentemente das cenas bíblicas e imagens de santos e apóstolos, nos retratos ele era fiel à realidade. Foi assim que pintou sua esposa Jeronima de las Cuevas, com quem viveu em Toledo.
Mãe de seu único filho, Jorge Manuel, o rosto da mulher era presença obsessiva nas obras de El Greco, figurando de trágicas madonnas a piedosas madalenas. Levando uma vida suntuosa – sua casa tinha 24 quartos –, quem podia imaginar que El Greco passasse por dificuldades financeiras? Gastando sempre mais do que ganhava, se envolveu em inúmeros processos por perdas e danos e, após a morte de Jeronima, seus problemas se acentuaram, incluindo na saúde. Esse período, os últimos 15 anos de sua vida, foi um dos mais profícuos para sua criação.
Quanto mais doente estava, mais acentuava-se a característica verticalidade de suas figuras e os ritmos das linhas baseadas na elipse, na pirâmide, na espiral. Mas a crítica o considerava louco. Morreu, em 1614, literalmente na miséria – mas ninguém desconfiava.
No seu palacete, havia apenas oito cadeiras, uma mesa, uma escrivaninha e dois cofres com dois lençóis e sete toalhas. Nos armários, três camisas. Ele não sacudiu o mundo da arte, não deixou discípulos ou herança. E seu ousado talento foi esquecido poucos anos depois de sua morte.
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