Registro feito em 1964 mostra tanques no Rio de Janeiro - Arquivo Nacional
Ditadura militar brasileira

Como os clubes de futebol lidaram com a ditadura militar

"Não é um clube que é democrático ou ditatorial. É o seu dirigente”, diz Mauro Beting ao site Aventuras na História

Fabio Previdelli Publicado em 27/11/2022, às 07h00 - Atualizado em 16/11/2023, às 15h17

Na noite entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964, os militares deram um Golpe de Estado e depuseram o então presidente João Goulart. Por 21 anos, portanto, até 1985, o Brasil viveu um regime autoritário, cruel e que perseguia opositores e quem se manifestasse contra o governo. 

Embora o golpe tenha sido dado a partir de manifestações populares, enviesadas pela propaganda anticomunista estabelecida pelo embaixador norte-americano Lincoln Gordon, logo a sociedade passou a entender as mudanças que estavam vivendo — não muito animadoras, por sinal. 

Como forma de controlar a situação, o regime usou do futebol para acalmar os ânimos. O fracasso na Copa do Mundo em 1966 e a implementação do AI-5, em dezembro de 1968, foram varridas para debaixo do tapete depois que Emílio Garrastazu Médici assumiu o poder, em outubro de 1969. 

Pelé abraçando Jairzinho após título da Copa de 1970/ Crédito: Divulgação/ Fifa

 

Sempre muito ligado o esporte, Médici usou a Copa de 1970 como meio de demonstrar a força dos militares — principalmente após barrarem o técnico comunista João Saldanha. Já em 1971, a criação do Campeonato Brasileiro passou a alimentar muito mais o uso do esporte na política. Mas como os clubes lidaram com isso? 

Militarismo Esporte Clube

Sendo um reflexo da sociedade, o futebol foi conivente com o regime. Não era para menos, a expansão do Brasileirão afetava positivamente os clubes. Além das construções de estádios enormes — muitos dos quais se tornaram elefantes brancos vale destacar —, cada vez mais a competição recebia times de várias partes do país. 

Em 1979, para se ter ideia, o torneio foi composto por 94 times. “Onde a ARENA vai mal, mais um time no nacional. Onde a ARENA vai bem, mais um time vai bem”, era a máxima que se dizia na época sobre o modus-operandi da Aliança Renovadora Nacional, partido político da situação. 

Apesar de propensão a se ‘aliar’ ao regime, o jornalista Mauro Beting, em entrevista exclusiva à equipe do site do Aventuras na História, em parceria com o portal SportBuzz, aponta que é muito delicado classificar um clube como em prol da democracia ou do autoritarismo. 

Não é um clube que é democrático ou ditatorial. É o seu dirigente”, disse. 

Apesar da associação quase que instantânea que fazemos do Corinthians com a histórica Democracia Corinthiana, Mauro recorda que, no início do regime, a posição política dos dirigentes de Parque São Jorge eram totalmente diferentes. 

“O Corinthians teve, de 1961 até 1971, Wadih Helu como presidente. Depois teve um, quase democrático, aliás, era uma pessoa que eu adorava: que era Vicente Matheus. Mas, enfim, quem era Wadih Helu?”, indaga o jornalista.

Wadih Helu, a partir de 1966, foi eleito, pela primeira vez, Deputado Estadual pelo ARENA — e seria eleito até 2002. Foi um discurso do Wadih Helu, aparteado pelo José Maria Marin, em 1975, que levaria a prisão do Vlado, o Vladimir Herzog, à execução dele no DOI-CODI”, explica. 

Vladimir Herzog, jornalista morto na ditadura militar / Crédito: Divulgação / Instituto Vladimir Herzog

 

Mauro explica que, antes disso, aliás, Helu já se mostrava fiel à ditadura. “No dia 15 de abril de 1964, quando é eleito, pelo Congresso, daquele jeito, o presidente Castelo Branco, no dia seguinte, o Wadih Helu publicou, como presidente, no caso do Corinthians — ou seja, o Corinthians assina um texto—,  dando vivas à Revolução de 64 e à posse do primeiro presidente”. 

Então, assim, o clube, de São Paulo, que oficialmente mais apoiou publicamente foi o Corinthians, em 64, por conta de Wadih Helu”, aponta.

Outro exemplo disso remete ao ano de 1974, quando o Corinthians ganha o primeiro turno do campeonato paulista. Neste mesmo período, acontecia a eleição para senador, quando eleito Oreste Quércia (MDB) derrotou Carvalho Pinto (ARENA). “Há um programa da ARENA na televisão, no dia seguinte ou na mesma noite, para comemorar a vitória do Corinthians e aproveitar e fazer campanha pelo Carvalho Pinto”, recorda Beting

“Então, assim, Corinthians e ARENA ali juntinhos como, quatro anos depois, por intermédio do governador Paulo Egydio Martins, grande corintiano; do prefeito Olavo Setúbal, grande corintiano, e ambos biônicos; e o presidente da República, Ernesto Geisel, foi dada a área de Itaquera”, conta.

“E no discurso de agradecimento, quando Ernesto Geisel vai ao Corinthians, aos nove meses antes de João Baptista Figueiredo ir ao aniversário do Corinthians, em 1979, e ganhar a camisa do capitão do Corinthians, o Doutor Sócrates, uma camisa autografada pelo último general da ditadura; o Geisel, voltando a 1978, novembro de 1978, quando ele tá lá, o Vicente Matheus lê um texto, que não foi escrito por ele, por óbvio, falando dos ideais da Revolução de 64, isso em 78. O Corinthians é ditatorial? Não, mas os seus dirigentes eram”, justifica.

A Lazio da Barra Funda?

Indo ao lado verde-branco de uma das maiores rivalidade do futebol mundial, Mauro Beting também se recorda da alcunha que o Palmeiras, seu clube de coração, recebeu por suas origens italianas e por suas acusações de uma ligação ao fascismo de Benito Mussolini: a ‘Lazio da Pompeia’, referência ao local onde o clube social paulista fica instalado e também ao time que torcia Il Duce

O líder fascista Benito Mussolini sendo saudado/ Crédito: Domínio Público

 

“Depois vem o Palmeiras, que é um absurdo, a Lazio não tem nada a ver com isso, que é a Lazio da Pompeia, o Palmeiras. Claro que o Palmeiras tinha fascista no seu clube, tinha totalitários. Amantes de autocracias no Palmeiras, no Palestra Itália em 1942”, argumenta.  

Entretanto, da mesma forma, Beting aponta que também foram totalitários, autoritários e ignorantes com o clube quando “fizeram a palestrofobia” e obrigaram o alviverde a mudar de nome. “Porque Palestra é uma ‘palavra italiana’ que, na verdade, era grega. E obrigaram o Palestra Itália, em 1942, a mudar de nome. A virar Palmeiras". 

A Democracia Cortinthiana e os Porcomunas

Ressaltando um texto que já escreveu em seu blog, que pode ser lido na íntegra clicando aqui, Mauro Beting aponta que é ‘normal’ uma torcida ser mais enviesada para um lado político ou para o outro, afinal, muitas delas ultrapassam o âmbito de seu estado e possuem adeptos por todo o Brasil — ou em outros países do globo. 

Até mesmo dentro de uma mesma entidade esportiva, essa mudança de posicionamento político pode ocorrer com o passar dos anos. “Inclusive, a Gaviões da Fiel surge em 1969 como oposição da torcida à Wadih Helu e à continuação dele, a ditadura dele, digamos assim, continuísmo dele como presidente do Corinthians”, diz. 

“Pega o caso do Corinthians aqui, da Democracia Corinthiana, quando o Waldemar Pires assume a presidência do Corinthians, em 1981, e sobretudo indica, como diretor de futebol, Adilson Monteiro Alves. Com grandes corintianos, como Washington Olivetto, Juca Kfouri, Flávio Gikova conseguiram arquitetar e bolar a Democracia Corinthiana, que vai muito além dos muros do Parque São Jorge”, ressalta. 

É um movimento fundamental não só pro futebol, que se sustentava por uma equipe bicampeã paulista. A Democracia Corinthiana é fundamental, vai muito além desse processo de redemocratização do Brasil.” 

O mesmo pode ser aplicado ao Palmeiras, também usado de exemplo por Mauro. “Mas o clube inteiro do Palmeiras era fascista? Não. E ao mesmo tempo, hoje, você tem os porcomunas, uma quantidade barulhenta de palmeirenses ligados à esquerda”, conclui.

O jornalista Mauro Beting foi uma das fontes entrevistadas pela equipe do Aventuras na História, em parceria com o portal SportBuzz, em uma série especial de podcasts que ligam a História do Brasil e do futebol. A entrevista na íntegra já está disponível. Ouça abaixo!

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