De irregularidades a atos equivocados, incêndio em boate de Santa Maria deixou 242 pessoas mortas há uma década
Fabio Previdelli Publicado em 01/02/2023, às 20h00
A madrugada de 27 de janeiro de 2013 ficará marcada para sempre na história do Brasil por conta da tragédia da Boate Kiss. Localizada na cidade gaúcha de Santa Maria, a casa noturna operava bem acima de seu limite de lotação máxima quando o fogo começou.
Os artefatos pirotécnicos acendidos durante a apresentação da banda ‘Gurizada Fandangueira’ acabou atingindo o teto do espaço, que em questão de minutos liberou gases que matou grande parte das vítimas.
Além disso, seguranças da casa impediram que as pessoas que estavam na Kiss deixassem o local rapidamente. A falta de sinalização da boate também contribuiu para que muitas vítimas se aglomeraram no banheiro pensando que o espaço seria uma saída de emergência.
Um mês após a tragédia, o então presidente Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-RS), Luiz Alcides Capoani, foi enfático ao afirmar que o incêndio se deu devido a uma “sucessão de erros primários”.
Através de um relatório do Crea-RS, do laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP), do inquérito da Polícia Civil e de denúncias do Ministério Público (MP) à Justiça, mais de uma dezena desses ‘erros primários’ podem ser constatados:
Gravações de vídeo feitas por testemunhas, depoimentos dados por sobreviventes e a perícia dos órgãos de autoridade apontaram que o incêndio começou por conta de faíscas feitas por um objeto pirotécnico. A Boate Kiss, porém, não tinha autorização para a realização deste tipo de evento — que eram comuns na casa noturna, apontou a polícia.
Um dos pontos mostrados em ‘Todo Dia a Mesma Noite’, minissérie da Netflix que resgata o incêndio na Boate Kiss, é que os fogos de artifício usados durante a apresentação da banda eram exclusivos para ambientes externos.
De fato, isso aconteceu. Segundo o G1, dois dias antes do incêndio, o produtor da banda ‘Gurizada Fandangueira’, Luciano Bonilha Leão, pagou apenas R$2,50 pelo produto — enquanto um recomendado para uso interno custava cerca de R$50.
Outro ponto por trás do incêndio, conforme recorda matéria da equipe do site do Aventuras, diz respeito ao revestimento acústico do local. A espuma presente no palco da Boate Kiss não continha tratamento antichamas.
A composição do material, de poliuretano, causou a emissão de gases tóxicos semelhantes aos usados pelos nazistas nas câmaras de gás da Segunda Guerra Mundial.
Como mostrado na produção da Netflix, uma adaptação do livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, com o início do incêndio, o vocalista da banda e seguranças da boate tentaram usar um extintor de incêndio para conter o fogo.
O mesmo, porém, era inoperante. Além disso, Elissandro Spohr, um dos sócios da Kiss, não gostava que o equipamento de segurança ficasse nas paredes da boate por atrapalhar a estética do local.
Durante o incêndio, como já dito, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos tentou conter o fogo com um extintor. Porém, em nenhum momento o músico alertou as pessoas, pelo microfone, sobre o início do fogo. O MP concluiu que ele e o produtor “revelaram total indiferença com a segurança e a vida das pessoas, assumindo o risco de matá-las”.
Segundo o Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI), a capacidade máxima de público que a Boate Kiss poderia receber era de 691 pessoas — importante ressaltar que há uma enorme controversa levantada pelo inquérito da polícia que aponta que tanto os bombeiros quanto a prefeitura não sabiam dessa informação; e que o documento com esse cálculo só foi introduzido na documentação da Kiss depois do incêndio.
De qualquer forma, estima-se que mais de mil pessoas estiveram presentes no local naquela noite.
Como mostrado em uma simulação virtual, a Boate Kiss era um verdadeiro labirinto. Para entrar ou deixar o espaço, havia apenas uma saída para a rua. Além disso, o relatório do Crea-RS ressaltou que a porta tinha o tamanho insuficiente para permitir a saída rápida das pessoas.
A saída da boate também era dificultado por inúmeros obstáculos, apontou o inquérito policial. Para se ter ideia, a perícia do IGP constatou que em três locais diferentes havia os chamados guarda-corpos, sendo um deles bem em frente à porta para deixar a área interna da Kiss.
O Crea-RS apontou que se as passagens estivessem desobstruídas, o número de vítimas poderia ser bem menor.
Testemunhas que estiveram na Boate Kiss naquela noite relataram que os seguranças da casa noturna chegaram a impedir que as pessoas deixassem o local. A equipe ainda afirmou que só poderiam sair da boate quem tivesse pago a comanda.
Para o Corpo de Bombeiros conceder o alvará para o funcionamento da boate, a equipe de funcionários do local deveriam passar por um treinamento para lidar com o público em 'emergências'.
Tal treinamento jamais foi dado, mesmo assim, a Kiss estava operando. “Essa falta de preparo foi um componente importante que agravou as deficiências do sistema de evacuação”, apontou o Crea-RS.
Com o incêndio, as luzes da boate se apagaram. Segundo relata o G1, a Kiss não contava com placas sinalizadoras de emergência e tampouco luzes que indicassem a saída. Apenas dois dos cinco ambientes da casa noturna tinham algum tipo de sinalização.
Sem janelas, a boate também não contava com um sistema de exaustão operante. Desta forma, a fumaça tóxica se concentrou dentro da Kiss. “A concentração e toxicidade da fumaça gerada foram decisivas para o surgimento de tantas vítimas fatais”, salientou o relatório do Crea-RS.
Complementando o ponto acima, a Kiss não seguia as normas de incêndio da ABNT, segundo a legislação vigente na época de Santa Maria e do Estado. Peritos do IGP também constataram que a casa noturna não tinha sprinklers (chuveiros automáticos) e tampouco um sistema de automático de dispersão de fumaça e gases quentes.
Em depoimento à polícia, aponta o G1, funcionários da Kiss apontaram que os sócios da boate sempre faziam reformas no local. Porém, elas aconteciam sem autorização de engenheiros ou órgãos de segurança. Numa delas, aliás, as espumas de poliuretano foram colocadas. Os bombeiros jamais foram acionados para vistoriar a casa após essas alterações.
Nos anos que antecederam o incêndio, a Kiss funcionou por diversas vezes sem os devidos alvarás necessários. Por conta disso, as investigações apontaram que a boate foi multada em seis ocasiões diferentes.
Todavia, jamais foi impedida de funcionar. Quatro servidores públicos foram indiciados por homicídio culposo por negligência, mas o MP arquivou os casos.
Para que a Boate Kiss conseguisse o alvará de localização, em 2009, os solicitantes precisariam apresentar uma “consulta popular” assinada por moradores de um raio de até 100 metros do espaço.
Muitos vistos, porém, foram feitos por pessoas além desse limite ou sequer que existiam. Desta forma, o MP indiciou 34 pessoas por falsidade ideológica — o que incluía os sócios da casa noturna.
Durante o socorro às vítimas do incêndio, bombeiros tiveram dificuldade de ajudar pela falta de máscaras de oxigênio. Os socorristas também informaram que apenas seis ou oito respiradores autônomos estavam disponíveis de um total de 21.
O inquérito da polícia conclui que caso todos os equipamentos fossem usados, os bombeiros “teriam mais condições de entrarem no interior da boate tomada pela fumaça e de lá retirarem mais sobreviventes”.
Com o desespero para salvar os frequentadores da Kiss, civis se dispuseram a ajudar a equipe de resgate. Segundo o G1, porém, um relatório da polícia apontou que pelo menos cinco dessas pessoas morreram ao entrar na boate novamente. Os bombeiros ainda teriam “estimulado” e “fornecido equipamento” para os civis.
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