Em 15 de março de 44 a.C. morria o homem mais poderoso do mundo romano, que adotara medidas populistas e concentradoras de poder. Para proteger a república, os senadores o mataram, sem saber que aniquilariam sua própria classe
Reinaldo José Lopes Publicado em 15/03/2018, às 07h00 - Atualizado às 12h19
Três escravos se esgueiraram para dentro do Senado vazio e correram em direção ao corpo ensanguentado, caído perto da estátua de Pompeu. Mais tarde, os ferimentos seriam contados: 23 golpes de adaga. Os assassinos de Caio Júlio César não estavam mais ali. Planejaram transformar a morte num grande ato de propaganda política, mas não contavam com o medo e a revolta do povo comum de Roma, quase todo formado por adeptos do ditador. Os responsáveis pelo atentado, portanto, tiveram de se esconder, entrincheirados na colina do Capitólio.
Matar César tinha sido ridiculamente fácil; assassinar o que ele significava para Roma era bem mais complicado. A morte do homem mais poderoso do Império Romano teve pouco a ver com as cenas criadas por poetas como William Shakespeare, mas tem todos os elementos de uma grande tragédia, com cenas de intriga, maquiavelismo, traição e, a julgar pelo que dizem os escritores da Antiguidade, até avisos proféticos que foram ignorados. O famigerado Bruto pode não ter sido filho de César, como reza a lenda, mas ele e seus comparsas tinham em comum a decisão de eliminar o homem que tinha sido seu benfeitor. E os efeitos colaterais do plano foram ainda piores: anos de guerra civil, um império que quase se esfacelou e o fim das ambições políticas para a classe representada pelos assassinos. Se a personalidade e os instintos políticos de César fossem ligeiramente diferentes, ele jamais teria tombado no Senado. Afinal, a tradição das longas guerras civis que tinham assolado Roma ao longo dos séculos 2 a.C. e 1 a.C. era clara: se quiser governar tranquilo, não deixe seus inimigos vivos.
Essa foi a regra durante as décadas de conflito entre Optimates, a facção que defendia a supremacia dos aristocratas romanos, e Populares, os quais, como o nome diz, queriam fazer concessões ao povo romano (embora seus líderes fossem homens da nobreza). César era um expoente dos Populares, o que levou o aristocrático Senado a tentar eliminá-lo logo depois que ele retornou da Gália (atual França), depois de oito anos de batalhas, como general vitorioso no ano 49 a.C. Não deu muito certo, para dizer o mínimo. As forças senatoriais, lideradas por Pompeu Magno, ex-aliado de César, foram esmagadas em batalhas na Espanha e na Grécia.
Com as legiões de todo o Império sob seu comando, César podia fazer o que quisesse, mas preferiu deixar de lado as guerras civis e perdoar a todos que se rendessem sem luta. "A chamada clementia [ancestral de clemência em português] se tornou a marca política de César, e uma grande arma de propaganda", afirma o historiador Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Em muitos casos, a clementia de César envolvia até a promoção de antigos inimigos. Dois dos mais mimados pelo novo senhor de Roma foram os líderes da conspiração que acabaria por matá-lo: Caio Cássio Longino e Marcos Júnio Bruto, sendo que ambos haviam recebido cargos e honrarias.
Oficialmente, Roma era uma república, mas na prática o poder absoluto estava nas mãos de César. Em épocas de crise, Roma tinha sido governada pelos chamados ditadores, que ganhavam poderes amplos durante um período de no máximo seis meses; em 45 a.C., o Senado deu ao general o título de senador vitalício, um ano depois de conferir o cargo a ele por dez anos. Com essas manobras, sem falar de outras honras dadas a ele pelo Senado, como o título de Pater Patriae (Pai da Pátria), parecia que César tinha amansado de vez os Optimates e trazido os antigos inimigos para o seu lado. Mas a situação real era bem mais complicada.
A propaganda política dos conspiradores tentou pintar o atentado contra César não como homicídio, mas como tiranicídio - um ato destinado a restaurar as "antigas liberdades" da Roma republicana destronando um déspota. Outros historiadores, como o americano Michael Parenti, em seu livro O Assassinato de Júlio César, argumentam que a decisão de eliminar o general foi só mais um round na velha briga entre Optimates e Populares. Afinal, César tomou medidas que desagradaram a antiga aristocracia, como a distribuição de terras para veteranos de guerra e a concessão de cidadania romana a povos das províncias do Império.
Ele ainda aumentou o número de membros do Senado de 600 para 900, incluindo até alguns moradores da Gália na conta, o que certamente ameaçava a supremacia dos nobres romanos. No entanto, para Isabelle Pafford, doutora em História Antiga e Arqueologia do Mediterrâneo pela Universidade da Califórnia em Berkeley, a motivação dos conspirados pode ter sido bem mais simples. "Creio que as razões da conspiração eram mais pessoais que políticas, porque os responsáveis nem chegaram a ter um plano sobre o que fazer depois. Eles estavam pensando na sua própria carreira, não na república ou na estabilidade política dela", diz Isabelle. Trocando em miúdos: Bruto, Cássio e companhia perceberam que estavam destinados a ser, no máximo, joguetes bem pagos de César - e não gostaram nem um pouco da ideia.
Segundo o historiador italiano Luciano Canfora, autor de Júlio César - O Ditador Democrático, a ideia de eliminar o ditador já estava circulando desde 45 a.C. - no início entre antigos oficiais do próprio César, descontentes com o fato de não terem sido promovidos como desejavam. Membro do círculo de César havia tempo, apesar do seu passado entre os Optimates, Cássio conseguiu se aproximar dessa facção descontente e começou a articular um plano que, no fim das contas, agregaria cerca de 60 senadores, todos membros da velha elite. "Uma estratégia que examinaram foi aguardar as eleições consulares, durante as quais César ficaria em pé na ponte de madeira usada pelos eleitores a caminho da votação", escreve Michael Parenti. "Alguns conspiradores o empurrariam sobre o parapeito, enquanto outros estariam esperando embaixo, com as adagas desembainhadas."
O plano não foi adiante por ser considerado muito arriscado, e os conspiradores decidiram que o melhor caminho era atacar durante uma cerimônia mais reservada. Antes disso, porém, Cássio queria conseguir o apoio de uma figura considerada chave: seu cunhado, Marcos Bruto. Eles andavam brigados - numa crise de ciumeira, o primeiro tentou impedir que o segundo assumisse um cargo cobiçado pouco tempo antes -, "mas Cássio sabia exatamente como convencer Bruto a agir", diz Luciano Canfora. Acontece que um dos ancestrais do senador, Lúcio Júnio Bruto, era famoso nas lendas romanas por ter expulsado da cidade seu último rei, Tarquínio, em 509 a.C.
O significado simbólico era óbvio: o descendente do homem que acabou com a monarquia em Roma estava "destinado" a eliminar o "tirano" e "rei ilegítimo" Júlio César. Em segredo, Cássio espalhou grafites e panfletos pela cidade, com frases como "Bruto, estás dormindo?" ou "Tu não és realmente Bruto", na tentativa de mexer com os brios do cunhado e envolvê-lo nessa mística. "Dos outros pretores [cargo ocupado por Bruto] esperam-se privilégios, espetáculos, mas de ti a abolição da tirania", disse Cássio, segundo o historiador grego Plutarco. E Bruto mordeu a isca.
Embora tivesse lutado ao lado de Pompeu e contra César, Bruto foi perdoado e recebeu do vencedor o governo da Gália Cisalpina (atual norte da Itália) e uma importante posição entre os sacerdotes de Roma. A generosidade exuberante do ditador talvez se deva a uma mãozinha de Servília, mãe de Bruto, amante de César e, segundo alguns escritores antigos, grande amor da vida do general. Mas daí a propor que Bruto era, na verdade, o filho bastardo de César vai uma distância considerável. "Isso é improvável, de acordo com a maioria dos especialistas, por causa da data de nascimento de Bruto", diz Isabelle. Quando seu futuro assassino veio ao mundo, César tinha apenas 15 anos. "A relação entre os dois era próxima, mas nada anormal dentro da sociedade romana", afirma ela.
A data marcada para o ataque dos conspiradores era a dos Idos de Março de 44 a.C. (título dado ao dia 15 do mês de março). O combinado era aproveitar a presença de César no Senado para a cartada decisiva. Segundo os autores que abordaram o caso na Antiguidade, não faltaram avisos e sinais dos deuses para o ditador. Primeiro foi um jantar na casa de um amigo na noite anterior ao atentado. Após a comida, a conversa acabou se voltando para qual seria a melhor maneira de morrer ("inesperada e rápida", teria dito César). Depois foi o pesadelo de Calpúrnia, mulher do general, que sonhou que o marido era assassinado em seus braços e implorou para que ele não fosse ao Senado. César também sonhou que voava e apertava a mão do deus Júpiter. César quase cedeu a Calpúrnia, mas um dos traidores, Décimo Bruto (parente distante do outro Bruto), conseguiu convencer o ditador a ir até o Senado mesmo assim.
De acordo com Plutarco, o erudito grego Artemidoro de Cnido, que frequentava a casa de Bruto, teria tentado alertar César da conspiração por meio de um bilhete, já bem perto do Senado, mas César deixou para ler a mensagem depois da audiência. Os historiadores antigos concordam a respeito dos detalhes essenciais do ataque. Os assassinos esperaram que César se aproximasse de sua cadeira e o rodearam, supostamente para apoiar uma petição feita por Tílio Cimbro, que queria trazer seu irmão de volta do exílio.
César pediu que ele esperasse um pouco e Cimbro puxou a barra da toga do ditador - o sinal para o ataque. César teria dito "Ora, isso é uma violência", enquanto outro senador, Casca, dava o primeiro golpe de adaga. César reagiu pela primeira e única vez, gritando "Casca, seu canalha, o que está fazendo?" e acertando o atacante com um pedaço de metal pontudo, usado para escrever. A essa altura os golpes se multiplicavam. De acordo com o historiador romano Suetônio, "quando, porém, percebeu que de todos os lados lhe vinham em cima com punhais em riste, envolveu a cabeça com a toga e com a mão esquerda puxou a extremidade dela até os pés para tombar decorosamente [sem mostrar os genitais]".
Resta ainda um enigma, que deixava até alguns historiadores antigos céticos: a suposta frase "Tu também, meu filho?", dita quando César viu Bruto entre os assassinos. Primeiro, ela teria sido pronunciada em grego, língua na qual ela é ambígua. Kai su, têknon também pode querer dizer "você também, menino/moleque". "Minha impressão é que, ao colocar a frase em grego, os escritores antigos querem dar a impressão de que César está citando alguma tragédia. Ou seja, estão colocando palavras na boca dele, num contexto literário. Ia ser muito difícil ouvi-lo no meio daquela confusão toda", afirma Isabella, que se diz cética a respeito de todos os detalhes do episódio.
Reza a lenda que, depois da morte do ditador, Bruto tentou fazer um discurso para os Liberatores (como os assassinos se denominavam), mas eles e os demais senadores acabaram fugindo da cena do crime. Com a fria reação popular ao fim de César, os Liberatores se viram num dilema e acabaram se sentando à mesa de negociação com Antônio. Afinal, se César tinha mesmo sido um tirano, nenhuma de suas decisões era válida - inclusive as nomeações de vários dos assassinos para cargos importantes e rentáveis. As conversas acabaram terminando no que parecia uma monumental pizza: César não seria oficialmente declarado tirano, e portanto poderia receber funerais dignos, e os Liberatores não seriam declarados assassinos, mantendo assim o cargo e a posição social.
Plano digno de outro Senado que todos conhecemos, sem dúvida, se não fosse pela malandragem e pelo poder oratório de Antônio. Nos funerais, ele exibiu uma imagem de cera, em que se viam os ferimentos sofridos por César, e fez um elogio fúnebre com tamanha paixão que o povo de Roma, revoltado, jurou vingança contra os Liberatores. Mesmo anistiados, Cássio e Bruto decidiram fugir para as províncias romanas do Oriente. Lá, a dupla de conspiradores reuniu soldados para tentar conquistar todo o Império Romano, mas era mais fácil matar César que imitá-lo.
Uma aliança entre Marco Antônio, Marco Emílio Lépido (outro general de César) e o herdeiro e sobrinho neto do ditador, Otaviano, esmagou as forças de Bruto e Cássio em Filipos, na Macedônia. A dupla cometeu suicídio (ou, para ser mais exato, Bruto se matou e Cássio mandou que um de seus ex-escravos o matasse). Ainda não era o fim das grandes guerras civis romanas - nas décadas seguintes, Otaviano derrotaria Antônio e viraria Augusto, o primeiro imperador. Mas, sem dúvida alguma, era o fim das chances de poder para sujeitos como Cássio, Bruto, Casca e os demais senadores, que se diziam Liberatores
O Ditador Democrático, Luciano Canfora, 2002
O Assassinato de Júlio César, Michael Parenti, 2005
Rubicão, Tom Holland, 2006
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