Desde a Antiguidade, os Jogos Olímpicos não só reuniam os melhores esportistas de diferentes regiões, como também são jogos geopolíticos
Ricardo Lobato* Publicado em 28/07/2024, às 12h00
Ao voltarmos alguns milênios na História em busca da relação entre os Jogos Olímpicos e a geopolítica, mais precisamente à Grécia do ano 776 a.C., vemos que a própria origem das Olimpíadas é centrada na guerra e na disputa de poder entre as diversas Cidades-Estado gregas. Mais que um momento de homenagem aos deuses, especialmente a Zeus, o Rei do Olimpo, os Jogos eram uma forma de fazer com que as Cidades decretassem trégua nos combates — uma vez que viviam em constante beligerância.
As modalidades variavam bastante das atuais — uma ou outra, como as provas de corrida, permanecem, no entanto, o objetivo do “espírito olímpico” já era o mesmo: fazer com que a rivalidade do campo de batalha fosse transferida para as arenas onde os esportes eram disputados. Ganhar uma prova trazia enorme poder e prestígio não apenas para o atleta, mas principalmente para a Cidade-Estado representada por ele. As clássicas rivais Atenas e Esparta, por exemplo, tinham nos Jogos uma forma de mostrar qual seria o melhor sistema: o academicismo dos pais da democracia ou a disciplina marcial castrense?
Conseguem ver a semelhança com o que ocorre nas Olimpíadas modernas? Pois bem, mesmo depois da dominação romana da Grécia, os Jogos continuaram e foram até ampliados, uma vez que os novos mestres, com sua “natureza conquistadora”, queriam provar nas pistas, tanto quanto no campo de batalha, sua disciplina e superioridade. Foi só com o imperador Teodósio I, em 393, que os mesmos foram extintos. Convertido ao cristianismo, o “César” proibiu tudo aquilo que via como “festa pagã” — lembram que a homenagem a Zeus, Júpiter para os romanos, estava por trás de toda a festa?
Foi só mais de um milênio depois, em 1896, que os Jogos foram resgatados pelo barão francês Pierre de Coubertin. Apaixonado pela educação e pelo ensino, e vendo o potencial do esporte em unir os povos, ele se aproveitou do crescimento do interesse pela Antiguidade Clássica — no mundo colonial da virada do século 19 para o 20, a arqueologia era popular — para promover a criação das Olimpíadas modernas.
A ideia pode até ter sofrido resistência, mas foi abraçada e os Jogos voltaram. Apesar da célebre frase de Coubertin, “O importante não é vencer, mas competir, e com dignidade”, as coisas não saíram exatamente assim. É indiscutível o potencial de despertar o melhor das pessoas que uma Olimpíada possui, mas, desde que foram recriadas, vemos como “o outro lado da competição” se manifesta na humanidade.
Diversos países têm se utilizado dos jogos para promover sua filosofia ou sistema político. Os primeiros da era moderna viram uma rivalidade entre os EUA e as nações europeias. O mundo multipolar de então opunha as velhas potências imperiais do Velho Mundo a uma nascente do novo continente. Ao contrário da Antiguidade, os Jogos não foram suficientes para impedir a escalada das rivalidades e, assim, a Olimpíada de 1916 nunca aconteceu, justamente devido à eclosão da Primeira Guerra Mundial dois anos antes.
Nas décadas de 1920 e 1930, com a expansão dos “totalitarismos”, como bem disse a filósofa Hannah Arendt, capitalistas e imperialistas viram fascistas e comunistas chegarem à disputa. Não à toa, em 1936, apenas três anos depois da ascensão de Hitler ao poder, a Alemanha Nazista sediou os Jogos de Verão. Essa edição teve cenas memoráveis, como a vitória do corredor afrodescendente norte-americano, Jesse Owens, sobre os “arianos” germânicos, nas provas de atletismo. Ainda assim, com a Alemanha se sagrando a vencedora com o maior número de medalhas, o Führer teve sua vitória.
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Ademais, os faraônicos projetos da arquitetura nazi, como o próprio estádio de Berlim — de pé até hoje —, passaram a mensagem para o público do que estava por vir. Justamente por essa sede de poder nazista, as edições de 1940 e 1944 foram canceladas, uma vez que a Segunda Guerra estourou em 1939. Já a de 1948, a primeira do pós-guerra, foi sediada em Londres, pois a Inglaterra, um dos países mais afetados pelo conflito, queria mostrar que ainda estava de pé.
Os Jogos de 1952 a 1988 foram marcados pela Guerra Fria, com EUA e União Soviética disputando a supremacia no quadro de medalhas. Além disso, houve também os boicotes de um ao outro — norte-americanos não foram a Moscou em 1980 e soviéticos retaliaram não comparecendo a Los Angeles em 1984.
As Olimpíadas da Guerra Fria foram também palco da luta anti-imperialista e antirracista. De cubanos a atletas negros erguendo o punho em sinal de protesto na hora do hino, a dimensão geopolítica de tais Jogos precisa ser lembrada. Para mais, a de 1972, em Munique, que devia ser a “Olimpíada de reconciliação para a Alemanha”, foi marcada pelo terrorismo e pela rivalidade árabe-israelense.
A paz voltou mesmo a reinar apenas em Barcelona, em 1992, a primeira depois do fim da Guerra Fria e da extinção da URSS. E assim foi até a de 2008, na China, uma mostra de que o gigante asiático estava de pé novamente e voltava para competir entre os grandes. De lá para cá já tivemos Londres (2012), onde os ingleses buscaram se mostrar uma “potência renovada”, depois do fim de seu império; Rio (2016), a primeira do Sul Global; e Tóquio (2020-2021), adiada por conta da pandemia.
Em Paris deste ano, com a primeira edição pós-Covid-19 e em meio a dois conflitos armados de grande impacto, a geopolítica estará novamente presente. Com o nascente mundo multipolar, vamos ver o “jogo das nações” nas quadras, pistas e piscinas. Que vença o melhor.
*Ricardo Lobato é sociólogo e mestre em economia, oficial da reserva do exército brasileiro e consultor-chefe de política e estratégia da Equilibrium — consultoria, assessoria e pesquisa @equilibrium_cap
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