Dos 381 dias em que esteve no conflito, Waldemar passou 142 dias detido em campo de prisioneiros de guerra na Alemanha nazista
Publicado em 28/11/2024, às 20h00 - Atualizado em 29/11/2024, às 17h25
Já na reta final da Segunda Guerra Mundial, mais de 25 mil brasileiros embarcaram para a Itália junto da Força Expedicionária Brasileira (FEB) em apoio aos combatentes Aliados. Os primeiros pracinhas desembarcaram no porto de Nápoles na manhã de 16 de julho de 1944.
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O cabo Waldemar Reinaldo Cerezoli, em seu diário, registrou os momentos que passou na viagem dentro do navio americano General Mann, que transportou o primeiro grupo da FEB para a Europa. A bordo estavam 5,8 mil homens.
"Dia 15 de julho.
Faz três sábados que estamos enfiados nesse navio. Segundo dizem, chegaremos amanhã. As últimas notícias que temos são de que vamos para a Itália e que desceremos no porto de Nápoles. Penso que jamais voltaremos para o Brasil...
Tenho sonhado muito com minha família. Uma coisa com que ainda não me acostumei é comer só duas vezes ao dia.
Vamos ficar bem perto do inimigo, mas o que podemos esperar, a não ser isso? Talvez, em breve, iremos combater. Por fim, às 4h recebemos a notícia que tanto esperávamos: chegaremos amanhã cedo. Enfim, vou sair desse terrível porão, mas só Deus sabe o que nos espera lá fora", escreveu o combatente.
O grupo havia deixado o porto do Rio de Janeiro em 29 de junho, sem mais informações sobre para onde estavam indo ao certo e tampouco sobre quando iriam chegar. A única certeza é que cada um carregava consigo uma placa de reconhecimento militar — essencial para identificá-los em caso de morte.
Apesar de temer por sua vida, Cerezoli foi um dos sobreviventes. Mas sua situação não foi fácil. Ao longo de 381 dias fora de sua terra natal, ele passou boa parte do tempo, 142 dias, como prisioneiro em um campo de concentração da Alemanha nazista.
O cabo Waldemar anotou sua jornada ao longa de 98 páginas. O diário foi preservado por sua família, mesmo após sua morte, em 1975. Os manuscritos foram resgatados por Cristina Pellegrino Feres, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER), da Universidade de São Paulo (USP), e fazem parte do livro 'A dupla face da guerra: A FEB pelo olhar de um prisioneiro' (ed. Intermeios), lançado no ano passado.
Importante ressaltar que, os registros em escrita eram proibidos pelo Ministério da Defesa. Portanto, os diários mantidos pelos pracinhas foram contra as recomendações oficiais da época; sendo muito essenciais para a compreensão do período e até mesmo como uma forma de ajuda psicológica e mental para quem enfrentou esse período.
Embora as publicações de registros desta origem não sejam tão raras assim, as escritas de Waldemar são praticamente únicas, visto que existem poucos testemunhos de brasileiros capturados pelos alemães — dos mais de 25 mil enviados, apenas 35 deles passaram pelos campos, aponta a BBC Brasil.
Cerezoli foi sorteado para entrar no Exército em 1941, época em que vivia na cidade paulista de Ribeirão Pires — que era um distrito de Santo André. Em sua certidão, Waldemar é descrito como um soldado com resistência física e que se destaca por sua força de vontade e disciplina.
Quando foi selecionado, ele tinha apenas 24 anos, deixando sua vida como funcionário dos Correios para viver o dia a dia do front de batalha. Seus registros dão conta do período de 29 de janeiro, quando embarcou no Rio, até 30 de outubro de 1944, quando foi preso.
As dificuldades relatadas por Cerezoli dão conta ainda durante a vigem de navio, quando ele narra que os combatentes dormiam em porões cheios de ratos, além de enfrentarem o calor e a falta de comida.
Após o desembarque na Itália, a situação não melhorou muito, com os pracinhas dormindo sobre o capim, vivendo de comidas enlatadas e celebrando quando alguém encontrava tomates — que eram usados para preparar sopas dentro de algum capacete.
Durante o conflito, o Exército Brasileiro sofreu 443 baixas fatais, sendo 364 em combate. Muitas mortes ocorreram antes mesmo da chegada ao front, por conta de acidentes, como descrito por Waldemar em 4 de setembro.
"Hoje, morreram mais dois colegas: um afogado e outro com a explosão de uma mina. Ainda não entramos em combate e já morreram vários colegas".
Uma semana depois, o pracinha registra a primeira vez que encontrou com os alemães. Nesse caso, com os restos mortais de nove soldados nazistas. "Tive a impressão de que é bem triste morrer em combate. Hoje encontrei esses corpos, talvez amanhã encontrem o meu".
A guerra se tornou mais brutal em 24 de setembro, quando Waldemar registrou a morte de um cabo que estava próximo a ele e de outros quatro combatentes que se feriram. "Nunca vi a morte tão de perto".
Em outra entrada, no mesmo dia, conta que seu regimento trouxe três prisioneiros alemães, que estavam praticamente nus. "Estavam loucos de fome e sede. Nosso capitão deu a eles umas latinhas em conserva e eu dei um pouco de água que tinha no cantil".
A situação das tropas brasileiras era igualmente precária: "Estou sujo como um porco, faz cinco dias que nem tiro a botina. Banho há 15 dias que não vejo, mas, infelizmente, a guerra é assim".
O dia 30 de outubro marca o ápice dos relatos de Cerezoli, quando aconteceu a última batalha antes dele ser capturado, na região da Toscana. No diário, anotou como ele e um amigo, o soldado Eliseu de Oliveira, foram cercados pelos alemães e tiveram que buscar ajuda sob o fogo cruzado.
Vi perfeitamente uma granada entrar pela janela e cobri o rosto com o braço esperando a explosão. Senti uma pancada na cabeça e desacordei por alguns segundos. Depois, vi meu braço ferido e senti sangue escorrer pela perna esquerda. Quis andar, mas não pude".
Waldemar e Eliseu se renderam logo depois, quando combatentes alemães os encurralaram e apontaram metralhadoras contra suas cabeças. Depois desse momento, os registros foram feitos, provavelmente, somente após sua libertação.
Mesmo assim, o combatente resgatou o que sofreu. Como seu atendimento, logo em seguida, por enfermeiros italianos. "Tiraram-me o estilhaço da perna e outro da cabeça, mas tudo sem anestesia; punham-me gaze na boca para sufocar os gritos".
No dia 5 de dezembro, Waldemar foi colocado em um trem de carga com vagões de aço lacrado. Estava sendo enviado para o maior campo de prisioneiros de guerra da Alemanha nazista, na cidade de Moosburg, na Baviera, o Stalag VII-A.
Cristina Feres acredita que Waldemar não foi autorizado a levar seu diário consigo, o que explica os registros de cinco meses de prisão serem resumidos em poucas linhas.
"No outro dia, às 9h, vieram uns pães pretos, mas alguns avançaram como loucos nos pães e quem foi educado não comeu nada. À tarde fomos identificados e recebi uma chapa com o número 142292, a qual era obrigado a levar pendurada no pescoço. (...) A comida constituía somente em batata. Dormia-se no pedregulho. A primeira refeição vinha às 3h ou 4h da tarde, e muitos dias não vinha; então, comíamos neve para enganar o estômago. Já andava eu barbudo, sujo, cheio de muquirana e bichos de toda espécie".
Um dos últimos registros dá conta da libertação do grupo, que passou três meses de regalias viajando pela França. "Ninguém avalia nossa alegria. Jamais tive um dia tão feliz! Os tanques comandados pelo general Patton invadiram o campo e já não éramos mais prisioneiros, trocamos de lugar com os alemães".