Quando Shirley Chisholm foi eleita a um cargo federal nos EUA, em 1968, apenas nove dos 435 membros da câmara eram afro-americanos: oito homens e ela
"Existem pessoas em nosso país que não olham para a direita ou para a esquerda, simplesmente olham para frente", afirmou o ex-presidente dos Estados UnidosBarack Obama, em 2015, durante a tradicional cerimônia de entrega da Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta distinção concedida aos cidadãos estadunidenses.
Na ocasião, Obama, primeiro presidente negro a conquistar a Casa Branca, fazia uma homenagem póstuma a Shirley Chisholm (1924- 2005), ex-congressista, educadora, ativista e uma das maiores defensoras dos direitos civis e da igualdade de gênero e raça da história norte-americana. "Quando lhe perguntaram como queria ser lembrada, ela respondeu: 'Gostaria que dissessem que eu tinha coragem'", continuou Obama, referindo-se a Shirley, cujo centenário de nascimento é celebrado este ano.
Coragem é o que não faltou a ela em sua longa trajetória pessoal, profissional e política. Um dos grandes episódios de sua carreira foi o fato de ter sido a primeira mulher negra a postular a candidatura à presidência dos Estados Unidos por um dos dois maiores partidos do país, o Partido Democrata, em 1972.
Na ocasião, acabou perdendo a indicação para o senador George McGovern, mas as primárias partidárias foram um marco não apenas para os democratas, mas para a história política norte-americana em um contexto de Guerra Fria, em que Estados Unidos e União Soviética disputavam a hegemonia mundial.
"Shirley Chisholm se destacou por seu pioneirismo em diversas áreas. Foi a primeira mulher negra eleita para o Congresso americano. Ao desafiar o sistema com sua postulação para candidata à Presidência, lançou luz sobre os debates acerca do papel conferido às mulheres na sociedade norte-americana", diz a historiadora Bruna Gomes dos Reis, mestranda do programa de pós-graduação em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Sua coragem e ousadia foram rapidamente reconhecidas, sendo listada pela revista Gallup como uma das dez mulheres mais influentes do ano de 1974".
Filha de imigrantes da Guiana Britânica e de Barbados, Shirley St. Hill nasceu em 30 de novembro de 1924 no Brooklyn, em Nova York. Aos 5 anos, foi enviada para morar com a avó materna, Emaline Seale, em Barbados, enquanto os seus pais, Ruby Seale e Christopher St. Hill, lutavam para melhorar as condições de vida da família no Brooklyn, em meio à Grande Depressão. A estada de cinco anos no Caribe rendeu-lhe as melhores recordações. "A vovó me deu força, dignidade e amor. Aprendi desde cedo que eu era alguém", disse Shirley, anos depois.
De volta ao Brooklyn, a garota determinada concluiu o ensino fundamental e médio até entrar para o Brooklyn College, onde se bacharelou em artes, em 1946. Nesse período, recebeu forte influência do pai, que trabalhava como operário de fábrica e era seguidor devoto de Marcus Garvey — ativista jamaicano considerado referência do movimento pan-africano, que defendia a união entre todos os africanos e seus descendentes, independentes de onde estivessem, na primeira metade do século 20.
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Após obter o mestrado em educação na Columbia Teacher’s College, em 1951, a jovem Shirley, já casada com Conrad Chisholm, dedicou sua carreira à educação infantil, atuando como professora e diretora de creches em Brownsville e baixo Manhattan. Ao mesmo tempo em que trabalhava em instituições de ensino, passou a atuar em vários grupos comunitários e políticos, logo se destacando pela defesa intransigente pela igualdade e direitos dos cidadãos em geral, em especial mulheres e negros.
Tanta dedicação ao serviço comunitário e movimentos sociais a levou a concorrer, com sucesso, a uma vaga na Assembleia do Estado de Nova York, em 1964, onde foi eleita para representar o seu distrito, o Brooklyn, por quatro anos. Em 1968, ocorreu um dos grandes marcos de sua carreira: foi a primeira afro-americana eleita pelo voto para o Congresso dos Estados Unidos, pelo Partido Democrata, onde militava desde os anos 1950.
No ano em que foi escolhida pela primeira vez a um cargo federal, apenas nove dos 435 membros da Câmara dos Representantes eram afro-americanos: oito homens e ela. Na época, 11 vagas eram ocupadas por mulheres, das quais apenas Shirley e a asiático-americana Patsy Mink, que havia sido eleita em 1964, não eram brancas.
"Ela representava a ala mais progressista do Partido Democrata, apoiando ativamente o movimento por direitos civis, a luta de sindicatos e o movimento contra a guerra no Vietnã", explica Sean Purdy, professor de História dos Estados Unidos na Universidade de São Paulo (USP).
Além disso, Shirley atuava em prol do movimento feminista. Ela tinha uma base dentro da ala progressista, negra e feminista do partido, bem como nos movimentos sociais da época", completa Purdy.
No ano de 1972, em virtude do sucesso no trabalho legislativo e junto às comunidades de base, a deputada negra nascida no Brooklyn daria um grande salto em sua carreira política: disputar as prévias para escolha do candidato à Presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, nas eleições daquele ano.
Com o slogan Unbought and Unbossed ("Nem comprada nem mandada", em tradução livre), sua plataforma defendia a ampliação dos direitos sociais a todos os estratos da sociedade norte-americana, o fim da Guerra do Vietnã e o freio na vocação imperialista dos americanos perante outras nações mundo afora.
"As propostas de Shirley mantinham certa coerência com tudo que defendeu ao longo do seu primeiro mandato como congressista e que continuaria a defender por toda a sua vida política", explica Bruna Reis.
As propostas, de acordo com a historiadora, também envolviam o aumento do investimento federal em educação e saúde, maior cuidado no acolhimento e inserção dos imigrantes à sociedade americana. Também era a favor de uma política trabalhista voltada para a qualificação do trabalho de homens e mulheres negras e valorização do salário mínimo.
Segundo Bruna, o caminho da candidatura de Shirley, inclusive internamente no partido, foi marcado pelo racismo e machismo, o que resultou em uma campanha de baixíssimo orçamento — cerca de 300 mil dólares, ante os milhões geralmente investidos pelas grandes candidaturas republicanas e democratas em eleições majoritárias até hoje. Sua equipe, pequena e pouco qualificada, enfrentou problemas de organização e logística. Grande parte dessas dificuldades é retratada no filme 'Shirley para Presidente', em exibição na plataforma de streaming Netflix.
Apesar do pouco apoio no partido, inclusive entre as lideranças democratas negras, Shirley obteve mais de 400 mil votos dos militantes, mas não conseguiu vencer as primárias e o senador McGovern foi o escolhido para disputar a Casa Branca pelo Partido Democrata com o então presidente Richard Nixon, do Partido Republicano, que concorria à reeleição e acabou vencendo o pleito.
Dois anos depois, em 1974, Nixon renunciaria por conta das denúncias no caso Watergate, em que membros do Partido Republicano foram acusados de espionagem eleitoral e invasão da sede do Partido Democrata, em Washington.
"Podemos creditar a derrota de Chisholm ao fato da sua candidatura significar oposição a valores historicamente consolidados nos EUA: o limite do papel da mulher e do negro naquela sociedade", diz Bruna Reis, que também dá aulas para turmas de educação básica na Escola Sesi (Serviço Social da Indústria). Questões como igualdade racial ainda eram muito recentes no país e estavam longe de serem completamente incorporadas à sociedade.
"É importante lembrar que, nos Estados Unidos, os afro-americanos passaram a ser considerados cidadãos plenos a partir de 1965, com a Lei do Direito ao Voto, que proibia discriminação racial no pleito eleitoral. Além disso, é de apenas um ano antes, 1964, a lei que proíbe a segregação racial em todo o território americano", lembra a historiadora. Durante o processo eleitoral, Shirley sofreu várias ameaças de morte e teve de pedir proteção ao Serviço Secreto da Presidência ao longo da campanha.
Os especialistas também destacam os posicionamentos críticos de Shirley voltados ao próprio partido, em que, no início de sua atuação partidária, muito antes de ser candidata, teve de brigar para ser alocada no comitê de educação e trabalho, em contraposição ao comitê de agricultura, para onde foi inicialmente designada.
Em todo o período de sua atuação política, a educação foi pauta fundamental para Chisholm, que atuou como professora antes e depois de sua carreira política", explica Bruna.
Mesmo perdendo as primárias em 1972, Shirley continuou no Congresso e foi reeleita, sempre pelos democratas, nas eleições seguintes, exercendo suas funções parlamentares até 1983.
Ao deixar o Congresso, porém, a ativista negra voltou a dar aulas de sociologia e política e ministrar palestras pelo país, pregando contra a desigualdade em todos os níveis e incentivando as pessoas a participarem da vida política local. Ao se aposentar, Shirley foi viver na Flórida, onde morreu em 1º de janeiro de 2005. Em seu epitáfio, aquilo que sempre foi: "Unbought and Unbossed".