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Mais de 50 anos depois, surto em vilarejo continua sem explicações

Por duas semanas, em 1951, os habitantes de uma vila francesa sofreram vários surtos de alucinação. O pão foi considerado culpado, mas uma investigação recente aponta para a CIA

01/02/2011 13h29 Publicado em 01/02/2011, às 13h29 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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histeria coletiva - Arquivo Aventuras
histeria coletiva - Arquivo Aventuras

De quatro e latindo como um cachorro, um homem de meia idade saiu à rua, completamente nu. Era agosto de 1951. O vilarejo francês de Pont-Saint-Esprit, de vielas estreitas e construções medievais às margens do rio Ródano, no sul da França, só não se espantou mais com a cena porque ela não foi a única. Também a céu aberto, uma mulher gritava desesperadamente que seu corpo estava pegando fogo, e o operário Gabriel Veladière dizia: "Não aguento mais as serpentes no meu estômago!" Um garoto de 11 anos, Charles Granjohn, achou que sua mãe havia se transformado em um bicho e tentou estrangulá-la. O tabelião Pommier sentou-se na sala de estar com uma espingarda e avisava: "Se os monstros entrarem, eu atiro!" Um senhor começou a cantar uma ópera sozinho em seu quarto, dizendo que estava diante de uma orquestra com 30 músicos.

E houve mais. Uma criança dizia para a mãe que era perseguida por tigres e via sangue escorrendo pelas paredes. Uma dona de casa, desesperada, garantia que os filhos haviam sido esquartejados para virar linguiça - as crianças, vivas e ao seu redor, observavam a cena. No hospital da vila, os pacientes se debatiam violentamente na cama, alegando que flores vermelhas cresciam em seu corpo ou que seu coração estava pendurado do lado de fora. Um jovem pulou do terceiro andar do hospital aos gritos: "Eu sou um avião!" Quebrou as duas pernas - mas continuou correndo. "Vi homens e mulheres saudáveis subitamente ficarem aterrorizados, escondendo-se pelos cantos para fugir de alucinações", disse à revista Time, duas semanas após os incidentes, o prefeito Albert Hebrard.

O surto de convulsões e alucinações começara numa quarta-feira, dia 15. Atingiu o auge entre sábado e domingo e durou cerca de duas semanas. Acabou de uma hora para a outra, de forma tão surpreendente como quando começou, ainda que algumas pessoas tenham ficado internadas em hospitais psiquiátricos por até seis meses. Dos 4,5 mil habitantes da cidade, de 300 a 500 sofreram formigamento nas extremidades, insônia severa, febres, dores de cabeça e problemas psicológicos. Os 46 em pior estado foram internados (muitos tiveram de ser contidos com camisa de força) e sete morreram, de convulsão, infarto ou suicídio. O que levou a pacata Pont-Saint-Esprit à loucura naqueles dias de verão? Até hoje não se sabe ao certo. Há algumas hipóteses, porém.

Mal dos ardentes

Suspeitos não faltam. Durante o episódio, moradores diziam que era tudo um complô de judeus, de ciganos ou da maçonaria. A polícia culpou, primeiro, o pão - daí o apelido do incidente, "pão maldito". Não era um problema inédito. Em outras ocasiões da história, o esporão, um fungo presente no trigo e no centeio, já havia provocado surtos de histeria.

O fungo libera substâncias tóxicas para o cérebro humano e provoca o chamado "mal dos ardentes", ou "fogo de santo Antônio", problema conhecido desde a Idade Média (leia à pág. 48). Ainda que os três médicos de Pont-Saint-Esprit discutissem os sintomas sem chegar a uma conclusão, a polícia tinha tanta certeza de que estava diante de um caso de ergotismo, a doença provocada pelo esporão, que chegou a prender o mais respeitado padeiro da vila, Roch Briand. Ele seria solto dois meses depois por falta de provas.

Ao mexer com o pão, o inquérito esbarrou em um dos maiores patrimônios culinários franceses. Há registros de que soldados americanos, ao liberar as cidades da França ao fim da Segunda Guerra, ouviam dos nativos dois pedidos: liberdade e um bom pão branco. Em Pont-Saint-Esprit, a polícia fechou todas as oito padarias. Quando reabertas, elas ficaram às moscas. "O racionamento de pão (por causa da guerra) só tinha acabado em 1949. O abastecimento ainda era problemático e, antes do incidente, o produto era muito valorizado", diz a historiadora Kyri Claflin, professora da Universidade de Boston. "O medo do ergotismo se espalhou pela França e reduziu o consumo de pão por vários meses. Foi um golpe duro na autoestima de um povo que tentava se reerguer depois da invasão alemã."

As autoridades locais enviaram todos os pães que apreenderam para laboratórios de Marselha. O problema é que o pão não tinha sinal de ergotismo. Depois, suspeitou-se que o trigo ruim utilizado vinha de um silo contaminado por DDT e mercúrio - substâncias que, em grandes concentrações, podem causar alucinações. A hipótese tampouco foi comprovada. As investigações se sucederam até 1978, quando o caso foi, enfim, dado por encerrado - e inconcluso.

Já os moradores faziam um grande esforço para esquecer o assunto. "A cidade inteira se sentia culpada e vexada", diz o vice-prefeito, Jean-Pierre Colombet, que vivenciou o drama aos 10 anos e é um obcecado pelos acontecimentos. Hoje, a vila tem 10 mil habitantes e centenas de testemunhas e vítimas vivas, mas é difícil encontrar alguém disposto a falar sobre a tragédia. O pacto de silêncio é tão eficaz que muitos jovens de Pont-Saint-Esprit só ficaram sabendo do episódio mais de 50 anos depois, em 2009, quando uma equipe francesa esteve lá para filmar um documentário sobre a história. Na época, um dos poucos que resolveram se pronunciar foi o octogenário Léon Armunier. Procurado pelo jornal La Depeche, declarou: "Eu preferiria morrer a passar por aquilo de novo". O trauma superou o da destruição de boa parte da vila - ocupada pelos alemães, ela virou um campo de batalha no fim da Segunda Guerra.

Uma nova e espantosa explicação surgiu recentemente. Envolve uma droga pouco conhecida na época, a CIA (a central de inteligência americana) e um agente que falava demais (e cuja morte segue envolta em mistério). O responsável por essa versão é o jornalista H. P. Albarelli Jr.

Teoria da conspiração

O clima era propício para experimentações secretas. Fazia apenas dois anos que o racionamento de comida do período de ocupação alemã havia acabado na França, mas já pairava no ar a tensão da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, a CIA investigava os efeitos de um alucinógeno criado em laboratório pelo químico Albert Hoffman, o LSD. Segundo os arquivos da agência americana, essa e outras drogas faziam parte de um programa para tentar obter o controle mental do inimigo - liderado, então, pelo cientista Frank Olson. O grupo testava alucinógenos em militares e civis (em geral, presidiários) que aceitavam ser cobaias. "Tenho certeza absoluta de que Olson liderou uma experiência, com o apoio do laboratório de Albert Hoffman, na Suíça, de uso de alucinógenos em uma população inteira", diz Albarelli. É fato que Hoffman esteve na cidadezinha em setembro, poucos dias depois do fim do surto.

Como a droga teria chegado à população? Ela poderia ter sido lançada pelo ar, com o uso de aerossol, sustenta Albarelli. Ou inserida na comida - e aí o pão voltaria a ser suspeito. Chocado com os resultados, Frank Olson, um respeitado biólogo, teria feito comentários a respeito dos testes em Pont-Saint-Esprit. Em 1953, Olson caiu do 13º andar de um hotel em Nova York e morreu. A versão oficial é que ele se suicidou, apesar de as janelas do quarto estarem fechadas quando a polícia chegou ao local. Em 1975, depois de aberto um inquérito para averiguar o caso, o presidente Gerald Ford ofereceu uma indenização de 750 mil dólares para a família do cientista. "Não é de hoje que se considera que a morte de Olson foi assassinato, cometido a mando da CIA. O que não se entendia era o motivo. Agora fica claro que ele foi punido por vazar informações sobre a experiência malsucedida na França", diz o jornalista americano. E ele vai mais longe: "Ao longo da minha investigação, encontrei documentos do FBI que revelam que adivisão para a qual Olson trabalhava tinha o plano de realizar um experimento parecido no metrô de Nova York".

O projeto, de 1950, teria sido adiado até que se observassem os resultados na França. Depois, foi abandonado definitivamente.

A tese tem problemas. O LSD dificilmente manteria a mesma estrutura química se misturado em comida e não provoca alguns dos sintomas observados em 1951, como náusea. Ao tratar da polêmica, o historiador Steven Kaplan, professor da Universidade Cornell e uma das maiores autoridades no incidente, costuma acusar o jornalista de levantar um grande volume de documentos que não comprova claramente a ligação da CIA com a vila no sul da França. Albarelli sustenta que sua argumentação está o mais bem comprovada possível, considerando que 130 caixas de documentos sobre experiências da agência americana com drogas foram queimadas no começo da década de 1970. "Minhas evidências são mais concretas do que a hipótese de ergotismo. E Kaplan não tem nada melhor para apresentar." Na dúvida, de acordo com o The New York Times, o governo francês fez uma consulta reservada ao Departamento de Estado americano a respeito da tese de Albarelli, apresentada na forma de um livro polêmico, lançado em outubro de 2009: A Terrible Mistake (Um Erro Terrível, inédito em português).

O que sobra então? O enigma. E uma cidade inteira traumatizada pelos 15 dias em que parte considerável de seus vizinhos e familiares ficou temporariamente maluca.

Os suspeitos

A lista de possíveis culpados só aumenta


O Padeiro

Nome: Roch Briand.

Suposta arma do crime: Pão.

Acusação: Teria usado farinha contaminada com o fungo venenoso Claviceps purpurea.

Motivo: Teria interesses políticos. Mas isso é pouco provável, já que ele era membro da RPF (coalizão conservadora fundada em 1947 por Charles de Gaulle. Esse não estava no poder em 1951, mas ainda tinha forte atuação política).

Álibi: Não tinha.

O que dizia: "Isso tudo é uma maquinação dos comunistas para me destruir". Em entrevista ao jornal Le Parisien, seu filho Guy Briand afirmou: "Que interesse teria meu pai de envenenar os clientes? Ninguém mais comprou pão dele depois da tragédia".

O Moleiro

Nome: Maurice Maillet.

Suposta arma do crime: Farinha de pão.

Acusação: Teria fornecido produto contaminado para o inocente padeiro Briand.

Motivo: Desconhecido.

Álibi: Não tinha.

O que dizia: "A acusação não tinha fundamento. Mas, depois dela, tive de me mudar".

O Espião Americano

Nome: Frank Olson.

Suposta arma do crime: LSD.

Acusação: Era o chefe da divisão de química da CIA.

Motivo: "Ele era como um soldado. Cumpria ordens", disse ao jornalista Albarelli uma fonte ligada à agência.

Álibi: Nenhum. Estava na Europa quando houve o incidente.

O que ele dizia: Nada. Para conhecidos, teria comentado a respeito de sua participação na suposta experiência.
Cidades doentes

Outros casos de histeria coletiva

Ilustração: Fido Nesti

1374

Aachen, Alemanha

Possivelmente contaminada por ergotismo, a população local acredita que vai morrer e ir para o inferno. Todos começam a dançar freneticamente. Depois de três dias, segundo registro de monges, a dança vira uma orgia gigantesca.

1518


Estrasburgo, França

Uma cidadã chamada Frau Troffea dança sozinha em locais públicos. Depois de um mês, ela já era acompanhada por 400 pessoas. A Praga da Dança matou muitas pessoas de derrame e ataque cardíaco. Nas décadas seguintes, outros locais da França viveriam situações parecidas. Não há suspeitas sobre as causas do surto.

1789

Várias cidades da França

Em meio à Revolução Francesa, boatos de que bandidos aliciados pela nobreza teriam sido mobilizados para atacar os camponeses provocam semanas do que ficaria conhecido como o Grande Medo. Apavorados, os agricultores saíam às ruas e matavam indiscriminadamente.

1962

Tanganica, Tanzânia

Um surto de riso atinge crianças de uma escola e "contamina" suas famílias. Foram seis meses de gargalhadas sem motivo, que provocavam dificuldades para respirar. Ninguém sabe as razões do episódio, que acabou tão enigmático quanto começou.

2010


Itabira, Brasil
Em junho, dezenas de jovens de 12 a 19 anos, estudantes da mesma escola municipal da cidade cearense, começam a entrar em transe durante as aulas. Desmaiam e, quando acordam, dizem que viram o espírito de um ex-aluno, morto sete anos antes. As aulas foram suspensas temporariamente. As investigações ainda estão em andamento.


Saiba mais


Livros

A Terrible Mistake, H. P. Albarelli Jr, TrineDay, 2009.

O jornalista americano defende a tese do envolvimento da CIA no episódio.

Le Pain Maudit, Steven Kaplan, Fayard, 2008.

O historiador faz o levantamento mais completo sobre o incidente sem apontar o causador.