Cena da nova temporada de Stranger Things - Divulgação/Netflix
Stranger Things

Stranger Things mostrou: O jogo de RPG demonizado por conservadores religiosos

Retratado em Stranger Things, jogo de RPG foi perseguido e tido como responsável por mortes

Fabio Previdelli | @fabioprevidelli_ Publicado em 04/06/2022, às 00h00

Stranger Things, também, é conhecida e reverenciada por sua ambientação e referenciação nostálgica aos anos 1980. Seja por resgatar a cultura da época, ou por trazer de volta muitos aspectos da sociedade oitentista, a série da Netflix é um deleite para todos que viveram aquele período. 

Como de se esperar, na quarta temporada, lançada no último dia 27, muito mais desse contexto aparece. Mas, sem dúvida alguma, o que move e une toda a produção é o jogo de RPG Dungeon & Dragons. 

Nesta última temporada, o jogo se torna ainda mais parte central da trama, não só por nos apresentar a besta humanóide Vecna, mas também por mostrar um cenário que foi muito comum na época: a demonização de D&D.

Dungeon & Dragons satânico?

Ao longo dos anos, mensagens satânicas foram atribuídas, e supostamente encontradas, nos mais diferentes setores de nossa sociedade; Seja em músicas infantis tocadas ao contrário, em bonecos de grandes apresentadoras, logotipos de grandes empresas ou até mesmo em jogos de cartas de uma série de desenho animado. Sempre alguém enxergava o diabo em algum lugar. 

Imagem ilustrativa/ Crédito: Pixabay

 

E com Dungeon & Dragons a situação não foi diferente. Introduzido em 1974, D&D foi o primeiro jogo de RPG disponibilizado comercialmente. Seu sucesso foi tamanho que o jogo esteve presente em milhares de lares e influenciou — e ainda influencia — gerações. 

O início dos anos 1980, porém, foi o auge das acusações de satanismo contra o RPG. Tudo começou um pouquinho antes, em 1979, quando o garoto prodígio James Dallas Egbert III, de 16 anos, desapareceu de seu quarto na Michigan State University.

Segundo matéria da BBC, um investigador particular, William Dear, chegou a ser contratado pelos pais do jovem. Mesmo sabendo pouco sobre RPGs, Dear acreditava que D&D havia sido o responsável pelo sumiço de Egbert III — afinal, ele era um fanático jogador.

No entanto, posteriormente, ainda segundo a BBC, descobriu-se que o jovem prodígio tinha depressão e também era dependente químico. Ele havia se escondido nos túneis sob a universidade durante um episódio de automutilação. 

À época, o caso ganhou a mídia local e chegou a ser conhecido como ‘O Incidente do Túnel de Vapor’ — e também servindo de referência para uma série de obras de ficção, incluindo o romance ‘Mazes and Monsters’; que acabou ganhando um filme homônimo estrelado por Tom Hanks em 1982.

Em 1980, James acabou se suicidando com um tiro. Embora o caso tenha sido amplamente divulgado, muitos distorceram a real situação, deixando a questão da saúde mental do jovem de lado e apontando que D&D o levou a agir desta forma. 

O problema se tornou ainda maior em 1982, quando o estudante do ensino médio Irving Lee Pulling morreu após dar um tiro no próprio peito. Na ocasião, o The Washington Post publicou um artigo comentando "como [Pulling] teve problemas para 'encaixar'".

Entretanto, para a mãe do jovem, Patricia Pulling, o jogo de RPG era o responsável pela ruína do filho. A questão da saúde mental ficou ainda mais evidente quanto a colega de classe de Irving, Victoria Rockecharlie, comentou que "ele tinha muitos problemas de qualquer maneira que não estavam associados ao jogo", recorda a BBC. 

No início, Patricia chegou a tentar processar o diretor do ensino médio do colégio onde o jovem estudava. Ela alegava que a maldição que ele colocou em seu filho no jogo acabou o afetando também na vida real. 

Além do mais, Pulling também processou a TSR Inc, os editores de D&D. Apesar do tribunal rejeitar esses casos, ela continuou sua campanha formando Bothered About Dungeons and Dragons (BADD) em 1983. O BADD era um grupo de defesa pública que se dedicava à regulamentação de jogos de RPG.

Segundo um artigo do Journal of Religion and Popular Culture, o grupo considerava D&D "um jogo de RPG de fantasia que usa demonologia, feitiçaria, vodu, assassinato, estupro, blasfêmia, suicídio, insanidade, perversão sexual, homossexualidade, prostituição, rituais satânicos, jogos de azar, barbárie, canibalismo, sadismo, profanação, invocação de demônios, necromancia, adivinhação e outros ensinamentos."

A mídia contra D&D

Por conta disso, Patricia Pulling e a BAAD lançaram uma campanha de mídia intensiva através de meios de comunicação cristãos conservadores, bem como da mídia convencional, para demonizar os jogos de RPG

Em 1985, Jon Quigley, da Lakeview Full Gospel Fellowship, falou por muitos oponentes quando afirmou: "O jogo é uma ferramenta oculta que abre os jovens à influência ou possessão por demônios".

O enfoque contra Dungeon & Dragons se tornou tão forte que ele ultrapassou barreiras continentais. À BBC, a autora britânica de fantasia KT Davies lembra de "mostrar a um vigário uma figura de jogo — ele comparou D&D à adoração de demônios porque havia 'deuses' no jogo".

Cena da primeira temporada de Stranger Things/ Crédito: Netflix

 

“Como a fantasia normalmente apresenta atividades como magia e feitiçaria, D&D foi percebido como uma oposição direta aos preceitos bíblicos e ao pensamento estabelecido sobre feitiçaria e magia”, explica David Waldron, professor de história e antropologia na Federation University Australia.

"Havia também uma visão de que os jovens tinham uma incapacidade de distinguir entre fantasia e realidade”, prossegue o autor de ‘Roleplaying Games and the Christian Right: Community Formation in Response to a Moral Panic’. 

As alegações contra o jogo de RPG surgiam das mais loucas naturezas, muitas delas emanadas por grupos evangélicos. "Os memes dessa campanha proliferaram e, sendo publicados em grande parte de forma acrítica nos estágios iniciais, levaram a uma ampla lista de alegações bizarras", continua Waldron

Por exemplo, quando um personagem morre, você também pode cometer suicídio”, aponta. 

Entretanto, essas alegações ganharam vozes de contestação, como a do autor Michael Stackpole que, em 1990, publicou ‘The Pulling Report’, onde documenta vários erros cometidos pela BADD e acusou Pulling de deturpar suas credenciais como testemunha especialista em jogos.

Por fim, estudos realizados pela Associação Americana de Suicidologia, dos Centros de Controle de Doenças dos EUA e Saúde e Bem-Estar do Canadá, não encontraram nenhuma relação causal entre D&D e suicídio, aponta a BBC.

Apesar da falácia, todo esse cenário parece ter ajudado ainda mais na popularização de Dungeon & Dragons. Com o passar dos anos, o jogo de RPG logo ultrapassou a barreira dos milhares para os milhões de cópias vendidas. Até 2004, estimava-se que D&D havia sido jogado por mais de 20 milhões de pessoas. Um clássico atemporal que superou os limites da barreira conservadora religiosa.

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