Dom Pedro II em imagem oficial do Brasil Império - Wikimedia Commons
Brasil

Segundo Reinado: muita alforria, pouca abolição

O recurso foi considerado humanitário, mas no final, ele serviu para a manutenção da escravidão que sustentava Dom Pedro II

Jânio de Oliveira Freime Publicado em 29/11/2019, às 11h07

Entre as maiores características do governo imperial brasileiro, uma de suas principais é a manutenção da escravidão como módulo econômico e rentável. É argumentado que a Família Real era contrária ao sistema, no entanto, o que é averiguável é que praticamente todo o período imperial teve como principal recurso econômico e base de apoio político o latifúndio escravista. Nessa época, o Brasil era um país em que “quase tudo dependia do trabalho escravo e da chegada dos africanos”, afirmou Luiz Felipe de Alencastro, em entrevista à BBC.

E essa realidade muitas vezes foi de um embaraço considerável para o governo brasileiro. Em um mundo cada vez mais pautado no salário e nas relações livres capitalistas, o Brasil era um país atrasado, que sustentava o trabalho forçado.

Dom Pedro II teve, junto a sua equipe diplomática, que realizar esforços para demonstrar uma imagem do Brasil como ocidental, desenvolvido e liberal para o resto do mundo, apagando o registro da escravidão.

Não somente o sistema capitalista destruía o escravismo em diversos países, principalmente na Europa, mas no Brasil a escravidão também vinha se tornando uma prática economicamente insustentável, encarecendo a produção.

A escravidão era a marca do Brasil do século 19 / Crédito: Domínio Público

 

Por isso, o uso de mão de obra escrava diminuía paliativamente no país, enquanto a base política principal do governo ainda era a velha elite escravista do sudeste. Isso resultou num empasse: como movimentar a economia sem perder a credibilidade entre os que se apropriam da escravidão?

Ao mesmo tempo, o sistema exploratório no Brasil, desde tempos coloniais, não é o mesmo que os dos EUA. No Brasil, o principal grupo econômico que sustentava a escravidão e pressionava o governo monárquico, além do produtor agrícola, era o comerciante do tráfico atlântico.

Assim, os escravistas no Brasil não se esforçaram em reproduzir os escravizados em território nacional, mas focaram numa lógica em que a circulação e a busca de novos explorados tem primazia. Isso porque os traficantes representavam uma classe econômica e politicamente essencial para a manutenção do poder dinástico dos Bragança.

Tudo isso culminou numa questão essencialmente econômica, mas que é abordada como causa humanitária: a alforria. O Brasil foi um dos países que mais emitiram cartas de "liberdade" na História, ao mesmo tempo em que foi o ultimo das Américas a abolir a escravatura. O recurso consiste em um documento de ordem jurídica que liberta o escravizado.

Dom Pedro II / Crédito: Getty Images

 

Um dos maiores historiadores da escravidão do Brasil, Rafael B. Marquese, identifica uma relação no artigo A dinâmica da escravidão no Brasil: Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. “A partir de fim do século XVII, o sistema escravista brasileiro passou a escorar-se em uma estreita articulação entre tráfico transatlântico de escravos bastante volumoso e número constante de alforrias. Nessa equação, era possível aumentar a intensidade do tráfico, com a introdução de grandes quantidades de africanos escravizados, sem colocar em risco a ordem social escravista”.

Entretanto, a alforria é, na prática, um mecanismo de manutenção da ordem senhorial, em dois sentidos. O primeiro deles é que a libertação de alguns indivíduos escravizados não altera a estrutura social da escravidão, permitindo sua dinamização com a demanda de novos escravos e a venda pelos traficantes que vinham da África, como era de consciência da Família Imperial. Ao mesmo tempo, o recurso possibilitava a extensão do prazo da escravatura, permitindo adiar-se, como foi feito pelo governo de Pedro II, a abolição.

Carta de alforria em exposição no Museu Histórico Nacional / Crédito: Wikimedia Commons

 

Ou seja, na prática, o estatuto da alforria foi mais uma possibilidade de propaganda da benevolência e do humanitarismo de Dom Pedro II e de suas elites, do que realmente uma repulsa à escravidão. Isso explicaria as diversas leis aparentemente progressistas, mas que foram votadas pelos conservadores do Congresso para sustentar o sistema: Ventre Livre, Sexagenário, etc.

Por fim, a abolição da escravidão também não foi uma prática humanitária, mas uma resolução econômica e um golpe contra um projeto de igualdade de oportunidades. Segundo Alencastro, a Lei Áurea foi um projeto conservador que culminou num momento em que se ameaçava uma revolta generalizada de escravos contra o sistema, como ocorreu no Haiti. O objetivo era impedir que as elites fossem tocadas, e esse projeto culminou a República, essencialmente oligárquica. “No final, a ideia de reforma agrária capotou”.


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