Tropas brasileiras que participaram da Segunda Guerra Mundial foram tratadas de forma estereotipada pelos Aliados e pelas forças do Eixo
Fabio Previdelli Publicado em 16/11/2024, às 09h00
Na manhã de 16 de julho de 1944, os primeiros pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) desembarcaram no porto de Nápoles, na Itália. Um fotógrafo inglês registrou o momento: "Tropas de nativos estavam entre as forças brasileiras", dizia a descrição da imagem que focava alguns negros e mulatos.
"Atenção! Soldados do Terceiro Reich. Acaba de desembarcar em Nápoles um exército de sifilíticos", disse a Rádio de Berlim. "Os brasileiros vêm aí. São negros que andam nus, usam argolas no nariz, nas orelhas e comem crianças vivas", espalhou a propaganda nazista.
Aquela altura, poucos confiavam na força combativa dos brasileiros, que eram tratados pelo esteriótipo de "Jeca Tatu". Como eles seriam capazes de derrotar as poderosas tropas arianas de Adolf Hitler?
A jornada da FEB na Segunda Guerra Mundial é resgatada por Durval Lourenço Pereira, tenente-coronel R1 do Exército Brasileiro, em 'Guerreiros da Província: A Jornada Épica da Força Expedicionária Brasileira' (Insight Books).
Em entrevista à revista Aventuras na História, Durval explica que entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial envolve uma complexa teia de questões políticas, diplomáticas e militares — muitas das quais reduzidas a clichês e concepções enganosas.
Na verdade, o Brasil foi levado à guerra", aponta.
+ A importância da participação brasileira na Segunda Guerra: "Marcou um ponto de virada"
Muitos tratam os ataques de submarinos no litoral do Nordeste como o único ponto para o governo brasileiro declarar guerra contra as forças do Eixo. Mas o pesquisador defende que esse episódio foi apenas o "estopim" para a participação no conflito.
"A busca pelas origens remotas da entrada brasileira na Segunda Guerra nos leva ao 1º semestre de 1941, quando o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt enviou seu filho (o capitão Roosevelt) ao Teatro de Operações do Mediterrâneo. Em seu QG no Egito, o marechal inglês Arthur William Tedder recebeu uma generosa oferta de apoio aéreo por parte de Washington, que propôs o envio de aeronaves e suprimentos ao VIII Exército britânico por uma rota inovadora, que passava pelo Caribe e a América do Sul, chegando ao Egito pelo interior do continente africano, após atravessar a 'Ponte do Atlântico Sul'", contextualiza.
Tal trajeto incluia escalas por cidades brasileiras como Belém e Natal, mas adentrá-las iria contra a soberania de nossa nação. "Conforme as leis internacionais, a autorização para a passagem de material bélico em apoio a um dos países em conflito (fosse por meio aéreo, terrestre ou naval) transformava a nação que a permitisse, automaticamente, em um Estado beligerante".
Lourenço Pereira aponta que ao contrário do que a historiografia sugere, as bases americanas em solo tupiniquim não visavam proteger nosso continente de uma possível invasão nazista. “O suporte à logística e à estratégia de guerra anglo-americana foi o objetivo central da ‘Ponte do Atlântico Sul’ — talvez o único”.
Todas as ações subsequentes que envolveram a participação bélica do Brasil derivam desta questão primordial", defende.
Quando Getúlio Vargas estava no poder, o então presidente buscou ajuda de Washington para se perpetuar. Sendo assim, procurou várias formas envolver o Brasil na Segunda Guerra. "Ele agiu furtivamente, por meio de seus assessores diretos, afilhados políticos, militares leais, jornalistas e empresários cooptados, em uma série de manobras escusas".
"Os governos britânico e norte-americano, por meio de operações false-flag conduzidas por agências de espionagem como o MI-6 e o OSS (agência precursora da CIA), também influenciaram decisivamente para motivar a decisão brasileira, por meio de ações — até hoje pouco conhecidas ou incógnitas — capazes de inspirar a produção de vários livros e filmes", explica.
Durval Lourenço Pereira também destaca outro ponto equivocado da história que estamos acostumados a ouvir: a forma como os Aliados enxergavam a participação do Exército Brasileiro na Segunda Guerra.
O pesquisador defende seu ponto ao destacar que, durante o regime do Estado Novo, a imprensa brasileira estava sujeita à forte censura do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
"Bastava a um jornal publicar uma opinião divergente ou negativa do acerca da conduta do governo, para que lhe fosse negada a aquisição das bobinas de papéis destinadas à impressão (as bobinas eram importadas). Isso significava a falência do periódico".
Sendo assim, a história oficial passou a se basear na documentação produzida por autoridades e representantes dos EUA, que viam a defesa da neutralidade e da soberania nacional, por parte do Exército Brasileiro, como um ato de hostilidade a Washington e de simpatia ao Eixo: "Quem não é por nós, é contra nós".
"Essa concepção enganosa gerou o popular e tosco 'Fla-Flu' ideológico, geralmente utilizado para explicar esse período: o embate de americanófilos versus germanófilos", aponta.
No campo militar, os Aliados não desejavam envolver as Forças Armadas nacionais em combates terrestres. O Brasil era um país subdesenvolvido, sem tradição militar recente ou indústria de material bélico, e com doutrina militar defasada (francesa)".
Sendo assim, as tropas estrangeiras teriam de treinar, equipar e armar o Exército Brasileiro em plena guerra mundial. "Por isso, o general Marshall, chefe do Estado-Maior dos EUA, avaliou o projeto da expedição febiana como uma 'dor de cabeça adicional'. Já a diplomacia britânica considerou-o uma 'hipótese absurda'".
Outro ponto que deve ser considerado é que os americanos e os britânicos mobilizavam suas tropas com divisões étnicas e raciais bem definidas — as chamadas tropas WASP, acrônimo que em inglês significa 'Branco, Anglo-Saxão e Protestante' ('White, Anglo-Saxon and Protestant'). Eles lutavam em unidades separadas de árabes, negros e hindus.
"Por isso, a miscigenação racial característica do povo brasileiro e do seu Exército eram motivo de curiosidade da imprensa e de ressalva das autoridades estrangeiras. No imaginário do europeu e do norte-americano mediano, o Brasil não passava de uma enorme selva, fervilhante de cobras e povoada por nativos", finaliza Durval.
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