No plano estético a instrumentação do heavy metal contém um inegável componente épico e esse suporte musical constitui um terreno fértil para as alusões históricas
M. R. Terci Publicado em 15/06/2020, às 07h00
Nos idos de 1983, quando era apenas um guri, eu tive uma de minhas primeiras lições de história. Aquela que me deixou apaixonado pela matéria.
O professor Dickinson falava dos vikings; vejam só, esses nórdicos, além de colonizadores e comerciantes, eram também conquistadores e engajaram-se com afinco no domínio de territórios europeus como a França, Bretanha e ilhas do Atlântico Norte. Por volta do ano 793, os vikings tomaram vários reinos ingleses e era sobre isso que tratava a aula.
Eu tinha apenas 10 anos de idade, mas o professor me deixou completamente fascinado pelas batalhas e aventuras daqueles conquistadores. Isso, sem a menor dúvida, mexeu com minha curiosidade, afinou meu faro histórico. Desde então, queria saber cada vez mais sobre essas e outras aventuras na história humana.
Você deve estar se perguntando que escola era essa ou que cartilha o professor seguia, mas acontece que o professor Dickinson não seguia cartilha alguma. Transitando entre graves e agudos, ele estava cantando.
Venham comigo, pelos caminhos mais escuros da história, descobrir como alguns bons discos de heavy metal se tornaram aulas avançadas da história mundial.
Nos anos 70, o rock n' roll mostrou seu lado mais barulhento e mais duradouro: o heavy metal. A partir da década de 1980, o heavy metal se ramificou em diversos subgêneros, cada vez mais contextualizados e distintos como o thrash metal – o primeiro subgênero – o power metal, o death metal e o black metal.
Ousado, agressivo e em constante evolução. Assim é o heavy metal, seio que nutre infindáveis gerações.
Para os menos inteirados, tenho uma receita simples para definir o heavy metal: pegue uns bons riffs de guitarra, acrescente peso com baixo e bateria, adicione um vocal robusto, afinado e temperado com atitude. Partindo desse princípio, junte uma boa pitada de aventuras e fantasias medievais, narrativas de guerras, impérios e os nomes de grandes vultos de conquistadores, heróis e vilões da história mundial.
Agora, a apresentação do prato é essencial; sirva para uma plateia basicamente composta por adolescentes com os hormônios em fúria. Ouça no volume adequado, o suficiente para incomodar pais e vizinhos.
Pronto! Não é um álbum, é uma enciclopédia de história; não é um show, é uma palestra sobre fatos e grandes acontecimentos que mudaram a conjuntura do mundo.
Uma banda de heavy metal, é uma universidade ambulante, muito bem-conceituada e aceita em todos os continentes do planeta Terra.
Mas o encontro entre musicalidade e história não acontece por acaso. Há, certamente, elementos que contribuem para essa convergência. No plano estético a instrumentação do heavy metal contém um inegável componente épico e grandiloquente, cujo suporte musical constitui um terreno fértil para as alusões históricas, principalmente para aquelas relativas aos conflitos bélicos, em todas as suas configurações – das lutas corpo-a-corpo às batalhas aéreas.
O Iron Maiden, de Bruce Dickinson e companhia, é a banda que melhor representa isso.
Aos 61 anos de idade, o professor Dickinson continua em boa forma, palestrando ativa e constantemente sobre a história e literatura. A música desta banda quadragenária está repleta de descobrimentos que acontecem inesperadamente. Seja a história escrita em pergaminhos, seja aquela estudada na escola, ao ouvir algumas faixas dos dezesseis álbuns de estúdio, ou dos onze gravados ao vivo, dezenove álbuns de vídeo ou mesmo qualquer um dos singles, identificamos os fatos que mudaram os rumos de nossa civilização.
Com efeito, as músicas com esse viés figuram de modo tão constante em sua discografia que é mesmo possível traçar-se uma linha histórica, abrangendo desde a Pré-História até a Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, os projetos para a conquista do espaço.
O próprio nome da banda é uma menção à história. Iron Maiden – Donzela de Ferro – refere-se a um instrumento de tortura e execução, utilizado na antiguidade, que consistia em um sarcófago cujas portas continham, em seu interior, espetos pontiagudos. Uma vez que a vítima estivesse posicionada no interior do aparelho, suas portas eram cerradas, trespassando-lhe o corpo – mas não em pontos letais. Assim, o indivíduo agonizava muitas horas, às vezes dias, sofrendo dores lancinantes, até que viesse, finalmente, a expirar.
Para aqueles menos propensos ou mais hesitantes em aceitar as qualidades acadêmicas do Iron Maiden, sugiro que ouçam as seguintes canções:
Genghis Khan, do álbum Killers (1981). Mesmo antes da chegada de Bruce Dickinson no Iron Maiden, o professor Paul Di'Anno, já tratava da vida e obra do lendário guerreiro mongol.
Invaders, faixa que mencionei no começo desse artigo, do álbum The Number of the Beast (1982), e que trata das invasões dos nórdicos às Ilhas Britânicas.
Hallowed Be Thy Name, também do álbum The Number of the Beast, uma canção que evoca a aura religiosa e terrível da execução de um herege pela Inquisição.
Run to the Hills, ainda no The Number de 1982, uma melodia que trata da política de ocupação territorial norte-americana – entre 1791, ano de criação do Estado de Vermont, e 1853, quando se realizou a Convenção de Gadsden – que resultou no extermínio de milhares de ameríndios.
Quest for Fire, do álbum Piece of Mind (1983), que trata da busca pelo fogo pelas tribos pré-históricas, e de como essa fonte de calor e luz foi o pivô de sangrentas batalhas.
Aces High, também no álbum Piece of Mind. Ao vivo, em sua introdução, ouvimos a voz de Winston Churchill exortando os ingleses para a batalha, em seu discurso de 18 de junho de 1940: “We should never surrender!”. A canção descreve, em ritmo frenético, uma das muitas batalhas travadas entre a Royal Air Force britânica e a Luftwaffe de Adolf Hitler.
The Tropper, também do álbum Piece of Mind, inspirada no poema The Charge of the Light Brigade, de Tennyson, sobre a Batalha de Balaclava, durante a Guerra da Criméia – 1854-1856.
Powerslave, do álbum homônimo de 1984, eleito um dos melhores álbuns de metal de todos os tempos pela revista Rolling Stone, que trata sobre a escravidão no Egito Antigo.
Alexander the Great, do premiadíssimo Somewhere in Time (1986), onde embarcamos no ano de 334 a.C., quando Alexandre Magno torna-se soberano da Macedônia. O caráter épico do tema está em perfeita consonância com o estilo grandioso do arranjo e com a duração da faixa, com direito a uma introdução narrada por seu pai, o Rei Felipe II.
São esses apenas alguns exemplos da imensa discografia da maior e mais famosa banda de heavy metal que quando não narra, nas letras de suas canções, os feitos e situações que marcaram a história da humanidade em diferentes momentos, menciona clássicos da literatura universal – sempre os mais diversos, entre gêneros de poesia, horror e ficção.
Uma universidade numa turnê mundial que já dura 45 anos.
Sobre o tema, o professor e pesquisador Lauro Meller, vinculado à Escola de Ciência e Tecnologia e ao Grupo de Estudos Interdisciplinares em Música Popular da UFRN, entrelaça estes e muitos outros episódios históricos às canções da banda inglesa Iron Maiden, no livro Iron Maiden: A Journey Through History (Iron Maiden: Uma Jornada através da História).
Ainda no mesmo contexto, brotam pesquisas como a do norte-americano Edward Banchs sobre a cena heavy metal na África, e a do porto-riquenho Nelson Varas-Diaz, mostrando como bandas na América do Sul utilizam línguas nativas para tornar mais fortes canções que falam sobre a violência dos colonizadores europeus na região.
No Brasil, temos o Miasthenia, representante do melodic pagan black metal, cuja obra icônica e diferenciada, exalta em suas composições as formas reais e imaginárias de resistências pagãs em nosso continente em meados dos séculos XVI, mitos de guerra e relatos do fim dessas civilizações, além dos antigos mitos incaicos, astecas, maias e macus (tribo indígena brasileira) sobre o cosmos e o caos, com uma atmosfera única, audaz e jamais executada por uma banda de metal brasileira.
Armahda é outro representante de peso quando o assunto é história. A banda de heavy metal paulistana surgiu em meados de 2011 e se tornou conhecida por tratar de temas e personalidades da História do Brasil em suas letras como a Guerra de Canudos, a Revolta da Armada, Duque de Caxias ou, ainda, o exílio de Dom Pedro II e da família real.
Juntamente com as bandas Aclla, Arandu Arakuaa, Cangaço, Hate Embrace, Morrigam, Tamuya Thrash Tribe e Voodoopriest, integram o movimento “Levante do Metal Nativo”, que reúne bandas brasileiras que misturam heavy metal com elementos musicais típicos do país ou escrevem letras sobre a história e características regionais do Brasil.
Uma lista de peso nacional que vale a pena ser conferida não apenas por suas notáveis qualidades musicais, mas também pela inegável contribuição em sala de aula.
Ainda sobre a história brasileira, a banda sueca de heavy metal Sabaton, cujas letras falam sempre de conflitos históricos, no álbum Heroes (2014), trouxe a canção Smoking Snakes, que conta a história dos três soldados da Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial. Após a peleja, os combatentes brasileiros foram enterrados pelos alemães com a inscrição “Drei Brasilianische Helden” – Três Heróis Brasileiros.
M.R. Terci é escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro, que tem como cenário a Guerra Paraguai, e “Bairro da Cripta” (2019), ambientado na Belle Époque brasileira, ambos publicados pela Editora Pandorga.
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