No tribunal que julgava seus crimes contra a humanidade, o tirano chileno foi acusado de torturar e matar milhares de pessoas
Isabela Barreiros Publicado em 20/12/2021, às 10h51
No último domingo, 19, o Chile elegeu Gabriel Boric como seu presidente no segundo turno das eleições presidenciais. Ele recebeu 5,9% dos votos contra os 44,1% do advogado José Antonio Kast e se tornou a pessoa mais jovem da história a ocupar o cargo.
Ao representar a esquerda do país, Boric já foi deputado e ex-líder sindical, além de liderar uma coalizão que conta com a Frente Ampla, um grupo progressista recente no país, e o Partido Comunista.
O rival do esquerdista, Kast, no entanto, ilustra exatamente o oposto do espetro político. Em uma eleição marcada por enorme polarização política, o advogado radicalizou o outro lado da moeda e apresentou uma ultradireita extremamente conservadora.
Além disso, sobre a ditadura de Augusto Pinochet, implementada com o golpe de 1973, Kast afirmou que o líder “optou pela liberdade” e que “fez o que tinha que fazer” na época, como repercutiu o jornal O Globo.
Pensando sobre o contexto histórico da ditadura chilena, o site Aventuras na História decidiu revisitar os horrores vividos pelo país durante o período em que Pinochet governou.
O ex-líder do Chile, Augusto Pinochet foi responsável por instaurar o regime militar em seu governo, durante os anos de 1973 e 1990. Conhecido pelas atrocidades deste período, Pinochet ordenou a execução de milhares de pessoas e torturou outras dezenas de milhares.
Com mais de 80 mil pessoas presas e outras 30 mil torturadas, a Ditadura Militar Chilena teve início em 11 de setembro de 1973. Segundo números oficiais, durante os 17 anos de governo Pinochet, mais de três mil pessoas foram assassinadas.
Para o jornalista americano John Dinges, ex-correspondente no Chile e professor da Universidade de Columbia, Estados Unidos, Pinochet formulou um modelo inédito na região, cuja meta era eliminar fisicamente toda uma classe política supostamente culpada pelos males do país.
Na prática, isso significava o extermínio de qualquer um que se opusesse aos quatro pilares de seu regime: capitalismo, civilização cristã, escolha dos Estados Unidos como guia para proteger o Ocidente e a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que considerava os cidadãos como possíveis ameaças.
Durante seu julgamento, que ocorreu na Espanha, muitas foram as pessoas que foram testemunhar os horrores cometidos pelo regime do ditador. As acusações eram de tomadas de reféns sem motivo aparente e torturas que envolviam eletrocussão, estupro, canibalismo forçado e incesto.
Segundo a Comissão Nacional sobre a Prisão Política e Tortura do país, quase todas as mulheres — independentemente de idade — sofreram violência sexual na tortura: pelo menos 316 foram estupradas, 11 saíram grávidas da delegacia.
Entre as 3.399 mulheres que depuseram na Comissão, 229 esperavam filhos, muitas delas dando à luz a crianças dos torturadores, originados em estupros e humilhações.
A Comissão ouviu 35.868 pessoas que viveram sob o fogo de Pinochet. Entre as que estiveram detidas, 94% disseram ter sofrido torturas, como choque, lesões, simulação de fuzilamento, nudez forçada, roleta russa, asfixia, temperaturas extremas e privação do sono.
Das 3.399 mulheres ouvidas, quase todas disseram ter sido objeto de violência sexual. Trezentas e dezesseis alegaram ter sido estupradas e 13 engravidaram dos agressores.
Na obra, "Así se Torturó en Chile" (1973-1990), Daniel Hopenhayn explana as torturas no a partir da documentação da Comissão.
“De acordo com os depoimentos, as violações hétero e homossexuais foram cometidas de maneira individual ou coletiva. Em alguns casos foi denunciado, além disso, que esse estupro ocorreu diante de familiares, como um recurso para obrigá-los a falar”, declara o Relatório Valech, usado por Hopenhayn.
Um dos relatos presentes no livro é, no minímo, assustador: “Sofri choques elétricos, fui pendurada, posta no pau de arara, sofri simulação de fuzilamento, queimaduras com charutos. Obrigaram-me a tomar drogas, sofri estupro e assédio sexual com cães, a introdução de ratos vivos pela vagina e todo o corpo. Obrigaram-me a ter relações sexuais com meu pai e irmão que estavam detidos. Também a ver e escutar as torturas de meu irmão e pai. Puseram-me na churrasqueira, fizeram cortes com facão na minha barriga. Eu tinha 25 anos”.
Durante o julgamento, que aconteceu em 1999, de acordo com a BBC News, o ditador foi acusado de crimes como “forçar uma vítima a comer a carne de prisioneiros mortos, usar um cachorro para abusar sexualmente de mulheres e empregar um homem com feridas sifilíticas visíveis para estuprar mulheres”.
Um caso específico também foi a alegação de que militares haviam forçado um pai a abusar sexualmente de seu filho, e este, por sua vez, obrigado a estuprar seu irmão mais novo.
Nomes conhecidos de vítimas não são muitos. Muitos preferem o anonimato, tanto pelo medo das possíveis represálias quanto pela necessidade de esquecer as atrocidades que viveram no sombrio período; outros, não conseguiram sobreviver para contar suas histórias. No entanto, durante o julgamento do ditador na Espanha, o juiz tratou de alguns casos específicos.
José Marcelino Gonzalez Malpu foi torturado durante o regime. Em outubro de 1976, ele sofreu com correntes elétricas sendo aplicadas em seus órgãos genitais, ombros e tornozelos. Além disso, militares fingiram atirar em sua mãe na sua frente, que foi sequestrada e despida.
Outra vítima foi Pedro Hugo Arellano Carvaja que, de acordo com a BBC News, “teria sido empurrado para fora de um helicóptero com cordas presas às calças, arrastado através de espinhos, submetido a choques elétricos e forçado a jogar roleta russa”.
O último nome analisado pelo julgamento foi o do padre Miguel Woodward, que “foi supostamente submetido a choques elétricos, espancado com um martelo para que seus braços fossem quebrados, e abandonado para morrer”.
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