Orson Welles, escritor americano - Wikimedia Commons
Personagem

Orson Welles e sua mais dura lição: o medo é contagioso

Quem acompanhou o programa achou, de fato, que a Terra estava sendo invadida por alienígenas e um medo, mais epidêmico e contagiosos do que qualquer vírus, tomou conta de todos os ouvintes

M. R. Terci Publicado em 22/06/2020, às 07h00

Em 1938, na noite do Dia das Bruxas, A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, foi levada ao ar pela rádio CBS no programa The Mercury Theatre on the Air. A rádio norte-americana, por meio de toda sua rede afiliada, interrompeu sua programação para noticiar uma suposta invasão alienígena. Na verdade, nada mais era que um programa semanal, onde a história de A Guerra dos Mundos era dramatizada, pelo jovem Orson Welles, de 23 anos de idade.

Mercury era a companhia teatral fundada por Welles e John Houseman que havia produzido vários sucessos na Broadway. No rádio, eles adaptaram uma série de clássicos literários, como Drácula, de Bram Stoker (em junho de 1938) e as aventuras de Sherlock Holmes, de Conan Doyle (setembro do mesmo ano).

Mas, com A Guerra dos Mundos, Welles resolveu inovar.

Welles era um rapaz criativo, travesso e sedento de público. Primeiro, pediu ao roteirista Howard Koch que transpusesse a história do interior da Inglaterra para a zona rural dos Estados Unidos. Depois decidiu fazer a narração em forma de boletins noticiosos e depoimentos “ao vivo”.

No começo do programa a rádio começou a transmitir um concerto ao vivo da orquestra de Ramon Raquello no Park Plaza, em Nova York, então um boletim especial interrompeu a apresentação e anunciou a queda de um meteorito em Grover's Mill.

Reportagens externas, entrevistas com testemunhas que estariam vivenciando o acontecimento, opiniões de peritos e autoridades. Então, o pior aconteceu. Da cratera aberta pela pedra espacial, algo começou a se mexer. Dali assurgiu uma máquina titânica e grotesca de três pernas com vários tentáculos de metal.

Efeitos sonoros, sons ambientes, gritos, a emoção dos supostos repórteres e comentaristas. Os curiosos que se aglomeravam no local entraram em pânico. Gritos, correria e sons estranhos emitidos pela bizarra máquina. A música voltou a tocar, mas foi interrompida de novo, agora para que um “repórter” relatasse a matança promovida por nada mais, nada menos, que invasores do espaço sideral.

O tal repórter da CBS, aos gritos de agonia, foi pulverizado, numa atuação digna de Oscar. Na rádio alguém tomou o microfone para mencionar que sete mil militares, enviados para conter a coisa do outro mundo, haviam sido massacrados.

Quem pegou o programa pelo meio, achou de fato que a Terra estava sendo invadida por alienígenas e um medo, mais epidêmico e contagiosos do que qualquer vírus, tomou conta de todos os ouvintes. Três fazendeiros de Nova Jersey chegaram até enxergar discos voadores.

A ideia inovadora de Welles – futuro pai do Cidadão Kane – não saiu barata. Milhares de dólares em danos – gente que às pressas, deixou seus lares arrebentando cercas e para-choques com seus veículos, acidentes nas estradas, confrontos com a polícia local que, àquela altura, nada sabia –, jornais de todo o mundo noticiavam o pânico causado pela transmissão, autoridades governamentais exigiam uma cópia do programa para análise e, nos meses seguintes, Welles e a CBS foram alvo de centenas de ações na Justiça – mas nenhuma foi bem-sucedida.

O estrago foi realmente enorme.

Estima-se que o programa foi ouvido por cerca de seis milhões de pessoas, das quais metade o sintonizou quando já havia começado perdendo a introdução que informava tratar-se de uma obra de ficção. Destas, pelo menos 1,2 milhão de pessoas acreditou ser um fato real e iminente, entrando em pânico, sobrecarregando linhas telefônicas, com aglomerações nas ruas e congestionamentos causados por ouvintes apavorados tentando fugir do perigo.

O pânico e o caos paralisaram três cidades, principalmente em localidades próximas a Nova Jersey. Houve fuga em massa e reações desesperadas de moradores também em Newark e Nova York.

Veja, meu bom, o rádio era o principal veículo de comunicação em massa da época. Para se ter uma dimensão do ocorrido, tente imaginar a rede Globo de televisão, interrompendo sua programação normal para mostrar uma invasão alienígena no Rio de Janeiro. 

Wells em frente a cartaz do filme Cidadão Kane / Crédito: Wikimedia Commons

 

Grande parte da população não tem acesso às plataformas de streaming, contando apenas com a programação da TV aberta. Uma parcela ainda maior jamais ouviu falar de H. G. Wells.

E se você é dessas pessoas que acredita em tudo que lê na internet, saiba que é um sério candidato a um ataque de nervos. As fake news estão por toda parte e qualquer informação coligida via WEB deve ser checada através de vários canais, de preferência, isentos de natureza política.

Opiniões políticas, no presente momento, definitivamente, revelam o pior aspecto do ser humano. A peste e a morte que grassam pelas ruas não respeitam credo, nem raça, muito menos ideologia. E, se existem pessoas do meio público dispostas a desviar recursos públicos destinados ao combate da pandemia, devemos nos ater a uma verdade ainda mais contundente e terrível: monstros existem.

E suas odientas quimeras estão incubadas em todos os lugares.

Como observa Fritjof Capra, notável físico teórico e escritor que desenvolve trabalho na promoção da educação ecológica: “Vivemos num mundo onde os micróbios estão sempre tentando atingir-nos, despedaçar-nos célula por célula, e só continuamos às custas das diligências e do medo”.

Infelizmente, no lugar de, diligentemente, orientar e acalmar a população, a mídia televisiva e jornalística alimenta e amplifica seus temores.

Orson Welles demonstrou ser evidente que a influência midiática, de tão forte e impactante, pode causar reações imprevisíveis nos ouvintes e telespectadores. Sua apresentação na CBS o tornou famoso e, segundo os cientistas de comunicação, foi o programa que mais marcou a história da mídia no século 20.


M.R. Terci é escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro, que tem como cenário a Guerra Paraguai, e “Bairro da Cripta” (2019), ambientado na Belle Époque brasileira, ambos publicados pela Editora Pandorga.


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