Diante de tristes episódios que marcaram a História, esse conceito é essencial para resolver problemas do passado
Redação Publicado em 09/06/2020, às 16h00
Escravidão, ditadura, guerra e exploração são temas que até hoje afligem o Brasil, devido a falta de políticas para combater esses resquícios do passado e à tóxica ideologia de "virar a página e seguir em frente".
O nome dessa persistência de elementos problemáticos que acentuam desigualdades, deixando de lado a justiça contra momentos de abusos do nosso passado é dívida histórica. Esse termo, tanto quanto genérico, faz referência à necessidade de políticas afirmativas em favor de populações subalternizadas, com objetivo de resgatar injustiças passadas e dissolvê-las.
A ação tem como objetivo compreender desigualdades práticas da vida cidadã e das instituições a partir de uma visão processual, permitindo que a reparação leve à atuação democrática das partes da sociedade, em completo respeito às suas diferenças.
Um caso marcante no Brasil é a questão da negritude. Como aponta Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro, o afrobrasileiro tem dificuldade na "conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. Nela se viu incorporado à força. Ajudou a construí-la e, nesse esforço, se desfez, mas, ao fim, só nela sabia viver, em função de sua total desafricanização".
Um baita problema
Conceitualmente, a noção de dívida histórica ainda não foi trabalhada de fato pela historiografia, tendo sua origem na reivindicação prática dos movimentos sociais. Porém, cada vez mais historiadores pensam na questão, atrelada a pautas objetivas em que o conceito é necessário.
Um exemplo se encontra diretamente na Alemanha e o triste legado do nazismo. Ao mesmo tempo, falta uma elucidação teórico-metodológica do que se trata esse princípio da História Pública.
Normalmente, a questão da dívida histórica é tratada em termos puramente morais, se referindo à logica do bom e do mau. Ou seja, é comum que os debates sobre esse tema fiquem na camada inicial do problema.
Também é relativo a uma compensação simbólica-ética do que se deve, como se a resolução de um problema como a escravidão fosse punir homens escravocratas, que hoje já estão mortos mas "mereceriam" penalidades, e melhorar a estima dos que sofreram com o episódio.
Porém, não se negando a necessidade de reparações simbólicas, esse nível de debate ainda é polêmico. Isso porque a dívida histórica não é uma questão moral, somente, mas tembém um problema de cunho social e prático, atingindo temas da economia, da cultura e do trabalho, por exemplo.
A questão da dívida histórica é que tragédias passadas deixaram marcas problemáticas até hoje, e o foco da resolução está no presente e não no passado.
Por exemplo, a resolução da dívida da escravidão não está num “olho por olho, dente por dente” com o século 19, mas passa pela solução prática para a marginalização e a violência contra o negro na atualidade, que têm origem no sistema servil.
Da mesma maneira, a dívida gerada pela repressão política nas ditaduras não se resolve agredindo o passado, mas organizando resoluções para os desaparecimentos e o autoritarismo enrustido do Estado Brasileiro hoje.
No caso da escravidão, os problemas causados pelo passado são de natureza socioeconônmicas graves. Como afirma a historiadora Iamara da Silva Viana, da PUC-Rio, em entrevista ao O Globo: "Negar que exista uma dívida histórica (com a escravidão) é simplesmente querer apagar a História, esquecer ou fingir que não existiu um passado que nos liga a uma escravização por 400 anos e ainda é presente na sociedade atual de diferentes maneiras."
Favelas, miséria, desaparecimentos, famílias incompletas, feminicídio, violência policial, inflação, exploração religiosa e tantas outras são mazelas estruturais no Brasil, problemas de natureza prática.
Isso significa que a não resolução dessas questões respinga necessariamente na população: a não ser para quem lucra com a desigualdade, resolver nossos problemas estruturais é de benefício geral.
Outro ponto importante de se colocar é o fato de que, dentro das conquistas populares da Abertura Política, a Constituição de 1988 (a “Cidadã”) coloca entre os compromissos cívicos na Nação a busca pela igualdade e a solução dos problemas históricos.
A questão servil
O Sistema de Cotas, por exemplo, que se tornou Lei Federal em 2012, tem como argumento a questão da dívida histórica. Se nosso Artigo 5º impõe que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida [...]”, é papel do legalista a busca pela resolução histórica contra o legado — não simplesmente do lastro moral — da escravidão e da colônia.
Nesse aspecto, o Brasil é um país cheio de obstáculos a serem vencidos. Nosso principal a escravidão e da forma como foi abolida. Por si só, o episódio é um problema de desumanidade que deve ser combatido, e poucos irão negar isso.
"Estamos matando uma geração de negros e negras no Brasil. Sabemos que os negros têm menos acesso a educação. Têm menos acesso a saúde. Têm menos acesso a transporte. Morrem antes. São dados radicais que estamos recriando.", afirma Lilia Scharcz à BBC Brasil. Esses fenômenos são efeitos dos séculos de escravidão, e a resolução da desigualdade é o foco da quitação da "dívida histórica".
Da mesma maneira, medidas afirmativas que resolvam a dívida econômica com os negros, que foram expulsos da terra e negados de ter uma propriedade, têm como alvo a Dívida Histórica. "Embora todo cidadão tenha esses direitos garantidos na Constituição e nas leis, a titulação das terras lhes dará [aos quilombolas] mais garantias e resgatará uma dívida histórica do brasileiro para com as comunidades. Essa é a importância do título", afirmou em pronunciamento Rolf Hackbart, ex-diretor do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
Por outro lado, algumas formas de resolução da questão ainda são criticadas por historiadores e políticos, principalmente ao se pensar na magnitude diplomática da questão do tráfico negreiro.
Sobre a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, a Intolerância Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, o historiador Wolfgang Dopcke refletiu: "o tratamento da escravidão atual na África é sintomático deste desvio de
foco da atualidade, e com isto, da responsabilidade direta dos governos africanos".
"Nas discussões do tráfico transatlântico da escravidão e das reparações a diplomacia brasileira assumiu uma posição intermediária: de um lado o Brasil se mostrou favorável a um pedido formal de desculpas pelos Estados ocidentais envolvidos no tráfico, e de outro, foi contrário à idéia de indenizações financeiras", ainda relembrou. Porém, o país ainda nçao soube lidar com o lastro criado pelo passado escravista. Como resume Laurentino Gomes, em entrevista ao Roda Viva "a dívida ela existe. É inegável que o Brasil foi construído por mão-de-obra cativa".
Militarismo
Da mesma maneira, nosso Exército é autor de dívidas que ainda afetam nossa realidade social. Isso em dois momentos, pelo menos: a Guerra do Paraguai, que destruiu o país que dá nome ao conflito, e pela Ditadura de 1964, que afetou famílias inteiras que sofrem até hoje com os rastros do período, e ainda criou uma estrutura de governo repleta de mecanismos residuais do autoritarismo.
“Os governos civis que sucederam a ditadura militar têm uma dívida histórica com a sociedade brasileira. O Brasil é o país mais atrasado de toda América Latina em relação à responsabilização dos agentes que cometeram crimes de lesa a humanidade, ocultação de cadáver, assassinatos, torturas. O Brasil nunca responsabilizou nenhum agente público que participou daquele aparato na época da ditadura, nunca teve uma política pública voltada para o combate à violência”, colocou Victória Grabois, dirigente do Grupo Tortura Nunca à Radio Bandeirantes.
"A tecnocracia, as grandes estatais, o desenvolvimentismo modificaram o Brasil, que ampliou seu parque industrial, mas a partir de um processo conservador. A herança do Golpe é uma sociedade que precisa se reordenar politicamente dentro de uma estrutura democrática, mas com uma forte presença da tecnocracia. O Golpe criou uma estrutura política com tamanha força e persistência que ainda hoje é discutida no Brasil", completou Noé Freire, da Faculdade de História.
Por fim, é de suma importância lembrar que é papel da sociedade, enquanto corpo, a resolução dos problemas ocasionados pela dívida histórica. Isso quer dizer que o cidadão, enquanto defensor de seus direitos, vive sob a égide de uma Constituição que preza, em tese, atingir o nível total de igualdade.
Isso significa que enquanto tivermos desigualdades criadas por trágicos passados ainda não superados, a Sociedade Civil ainda têm muito trabalho na defesa da humanidade.
“Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”, sendo o objetivo a igualdade, como coloca Nélson Nery Júnior no livro Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal.
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