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Nazismo

O artista gay – e casado com uma judia – que fez Hitler chorar

Para Max Lorenz, o ditador nazista abriu uma exceção

Sérgio Miranda Publicado em 10/09/2019, às 13h00

No começo da década de 1930, quando o tenor Max Lorenz chegava ao auge da carreira, aos 32 anos, suas apresentações como Siegfried, o mítico herói das óperas de Richard Wagner, só não eram tão populares quanto o jovem e destemido veterano da Primeira Guerra, que vinha cativando multidões com sua voz potente e verve instigante.

Dez anos mais velho que Lorenz e diferente dele, que tinha um corpanzil elegantemente sustentado por bons vinhos e carne vermelha, o ex-militar era miúdo, moderado em seus hábitos e vibrante em sua oratória. E grande admirador de óperas, sobretudo as de Wagner.

Adolf Hitler era fã das suas composições e já tinha assistido a mais de 30 óperas antes de completar 30 anos. Como diria em anos depois, foi ouvindo uma delas – Rienzi, o Último dos Tribunos, finalizada em 1840 – que teve a inspiração para escrever Mein Kampf ("Minha Luta, a bíblia nazista").

A paixão de Hitler por essa ópera em particular era tamanha que ninguém estranhou quando o manuscrito original que havia se perdido na guerra foi encontrado, anos mais tarde, em sua biblioteca particular.

O artista / Crédito: Reprodução

Segundo o autor de As Mulheres de Hitler, François Delpla, o ditador teria assistido à peça mais de 40 vezes ao longo de sua vida. "A razão de tamanha adoração parece ser o enredo, que narra o retorno à vida de um herói popular da Itália medieval – Cola di Rienzi –, que enfrenta os nobres para liderar a revolta de seu povo e conduzi-lo a um destino melhor", diz o historiador, para quem as bandeiras do Partido Nazista foram inspiradas com base nos modelos da ópera.

Destinos cruzados

Os destinos de Hitler e Lorenz se cruzariam em 1933, quando o primeiro usou a máquina de propaganda nazista para dar proporções épicas ao Festival de Bayreuth. Na pequena cidade da Baviera, Richard Wagner estreara sua obra-prima – O Anel dos Nibelungos – e lá passara seus últimos dias de vida.

Desde então, todos os verões, descendentes tentavam reviver sua glória com apresentações do festival. Hitler ordenou que o ministro Joseph Goebbels não economizasse na organização. Wagner era um símbolo da supremacia germânica.

Nascido em 1901, em Dusseldorf, filho de um açougueiro, o garoto Max Lorenz começou a cantar no coro da igreja e, como logo se destacou, foi mandado a Berlim para estudar numa das melhores escolas do país.

Em 1920, já era a estrela do coro da Ópera Estatal da cidade e ascendia numa carreira internacional, com apresentações na Metropolitan Opera de Nova York e na Royal Opera de Viena.

"Ele era uma escolha óbvia para a nova fase do Festival de Bayreuth", diz o historiador Eckart Conze, professor da Universidade de Marburg, na Alemanha.

Homossexualidade 

Só havia um problema. Ou dois. Lorenz era homossexual assumido – tanto quanto possível para a época. Ele já havia sido fichado pelas autoridades alemãs. E os administradores da Ópera de Berlim, onde era contratado, já haviam sido repreendidos por sua conduta "abominável e antigermânica". Ele chegou a ser processado por manter um caso com outro jovem músico e teve de comparecer a um tribunal.

Lorenz apresentou em sua defesa o depoimento de sua esposa, Charlotte Appel, revelando, para surpresa geral, que não só era casado como também sua esposa pertencia a uma proeminente família judia de Dresden.

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"Eles eram amigos desde a juventude e, aparentemente, haviam se casado para proteger a homossexualidade de Lorenz", diz Conze. "No final, ele é que a protegeu da perseguição nazista."

Mesmo com o processo engavetado, Goebbels procurou a diretora do Festival de Bayreuth, Winifried Wagner, nora de Richard Wagner, para que ela não convidasse Lorenz. Quando sugeriu que a figura de um homossexual casado com uma judia não seria adequada ao festival, Winifried respondeu-lhe que, nesse caso, ele poderia fechá-lo, pois, sem Lorenz, Bayreuth não poderia ser feito. Tal petulância tinha lastro.

Winifried conheceu Hitler quando ele foi preso depois de tentar dar um golpe de estado nos anos 1920. Ela lhe mandava comida e ajuda enquanto ele rascunhava Mein Kampf. No fim da década de 1930, atuou como tradutora pessoal de Hitler.

A relação dos dois se tornou tão íntima que havia rumores de que ela ia além da compatibilidade intelectual ou do gosto pela música – especialmente quando, no fim dos anos 1930, a casa dos Wagner se tornou o lugar favorito para escapadelas de fins de semana do ditador.

Livre de perseguições 

Melhor para Lorenz. Testemunhas afirmam que Hitler chorou pelo menos uma vez, no fim da terceira parte de O Anel dos Nibelungos, quando Siegfried, após provar do sangue do dragão e passar a entender a linguagem dos pássaros, é avisado por um deles de que o anão Mime, que o criou como um filho, irá traí-lo para ficar com o anel que o herói resgatara de Wotan.

Siegfried mata Mime e é avisado pela ave da existência de Brunnhilde, a Valquíria, filha de Wotan, aprisionada por ele num círculo de fogo. Wotan tenta impedir que ele chegue até ela. Em vão. Siegfried resgata Brunnhilde, que dorme entre as chamas, e ambos se apaixonam.

Nem todos tiveram a mesma sorte de Siegfried. Ou de Lorenz. A soprano Frida Leider, que interpretou Brunnhilde, foi banida dos palcos de Bayreuth depois de se negar a se divorciar do marido judeu. Lorenz cantava ali, em 1933, quando a cidade também saudou o novo chanceler alemão. A partir daí, a ópera e o ditador se encontrariam todos os anos, até 1939, quando a cúpula do país se reunia para o festival.

Por seis anos, até o início da guerra, Max Lorenz esteve livre das perseguições nazistas na Alemanha. Enquanto milhares de judeus, homossexuais e outras minorias eram expulsos do país, o cantor, a esposa e a sogra tinham um salvo-conduto assinado por Hermann Goering, o segundo na hierarquia do 3º Reich.

Quando a guerra acabou, Lorenz tornou-se persona non grata no meio artístico. "Ele ficou marcado como amigo dos nazistas e colaboracionista por muito tempo. Ninguém entendia como ele tinha feito para sobreviver", conta Alex Ross, jornalista e crítico musical americano.

Assim, decidiu emigrar para a Áustria e fez da Ópera Estatal de Viena sua base artística. Seguiu com a voz impecável até se aposentar, em 1963. O tenor morreu praticamente esquecido, em 1975, em Salzburgo, Áustria.


Saiba mais

A Vida e o Tempo de Max Lorenz. Alemanha, 2008

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