Estátua de Messalina e seu filho Britânico - WikiCommons
Messalina

Messalina: a imperatriz romana que foi de ícone da prosperidade a símbolo sexual

A história de Messalina, esposa do imperador romano Claudio, tem sido alvo de disputas e controvérsias desde a sua morte, em outubro de 48 d.C.

Luiza Lopes Publicado em 18/07/2024, às 18h00 - Atualizado em 24/07/2024, às 18h33

No livro "História Antiga" (2013), o historiador Norberto Guarinello ressalta que, mesmo no presente, nos interligamos com a Antiguidade; afinal, a História Antiga é “parte do repertório cultural dos brasileiros (…) parte importante em nossa identidade como pessoas e como nação”.

Messalina, imperatriz romana do século I, foi uma das várias muitas históricas femininas que teve sua história e nome apropriados nos séculos posteriores a sua morte. 

A concepção desonrosa de Messalina foi reproduzida e cristalizada em óperas, literaturas e até mesmo em produtos televisivos, baseando-se nas obras de Tácito, reflete a historiadora Sandra Joshe no artigo “Female desire and the discourse of empire: Tacitu’s Messalina”.

Na língua portuguesa, a palavra “messalina” se consolidou como sinônimo de “meretriz”, “prostituta” e “adúltera”. O dicionário Houaiss, por exemplo, dispõe no verbete “messalina” a descrição “mulher de costumes dissolutos; libertina”. 

Até mesmo na psicologia, o nome "Messalina" é utilizado para descrever mulheres ninfomaníacas — o denominado “Complexo Messalina”, como aponta a historiadora Sarah Azevedo em sua tese de Doutorado "O adultério, a política imperial e as relações de gênero em Roma".

Mas quem foi, afinal, essa imperatriz?

A história de Valeria

Valeria Messalina nasceu por volta do ano 25 d.C., e morreu em 48 d.C. Filha de aristocratas da linhagem imperial de Roma, casou-se com o imperador Cláudio no ano 38 ou 39 d.C. com quem teve dois filhos, Britânico e Octávia.

Acredita-se que ela tinha entre 14 e 20 anos na ocasião de seu casamento, enquanto seu marido, Cláudio, contava com 48 anos. A diferença de idade estava na média entre os romanos, entretanto, esse foi um dos fatores que, posteriormente, contribuiriam para a criação de seu retrato como uma mulher de "desejos sexuais insaciáveis".

Seu casamento foi uma consolidação política para Cláudio; o fruto dessa união provocaria herdeiros Júlio-Claudianos, ligando ainda mais essa dinastia. Tais alianças político matrimoniais perduram; um exemplo é sua filha casando-se com Nero, o próximo princeps.

Estátua de Messalina e seu filho Britânico / Crédito: WikiCommons

 

Na estátua acima, de autor desconhecido, a imperatriz está com o filho, Britânico, em seu colo, e faz referência a uma divindade grega. A obra representa a prosperidade romana, uma vez que ela segura o filho legítimo do Império.

A morte

Em outubro de 48 d.C, antes de completar seus 30 anos, Messalina foi assassinada. Segundo o Anais de Tácito, que narra os anos dos principados dos primeiros imperadores romanos — a partir da morte de Augusto, em 14 dC, até o governo Nero — ela teria sido executada por um centurião romano devido a uma traição política.

Porém, ela foi alvo de uma duma ordem de damnatio memoriae (condenação da memória), resultando na destruição de suas estátuas e na eliminação de seu nome das inscrições. Nas décadas seguintes, o vazio na história oficial foi preenchido por rumores que distorceram sua reputação.

A estátua, que data aproximadamente de 50 dC, é um dos principais documentos a respeito da imperatriz, evidenciando como sua figura era vista poucos anos após sua morte.

Entende-se que, em tom de conspiração política, ela teria se casado com o cônsul romano C. Sílio na ausência de Cláudio; a imperatriz consorte teria realizado a cerimônia em uma festa em formato de bacanal (ritual orgiástico).

Um comitê contou para o imperador o que estava ocorrendo e ele retornou a Roma, temendo que a conspiração já estivesse definida e seria morto. Ainda segundo Tácito, os escravos do imperador, porém, não permitiram seu encontro com Messalina e, temendo a piedade/perdão do imperador a sua esposa, deram a ordem no nome dele para matá-la.

A partir da documentação, nota-se que o casamento e a própria morte da figura histórica se dão pelo tom político conspiratório do casamento e pelo crime de maiestas (traição polícia). Não há indícios de um julgamento como caso de adultério. Assim, o fim dela, como relatada por Tácito, se assemelha mais ao tipo de morte dada aos conspiradores.

As mulheres da família imperial romana eram julgadas por processos duplos de traição: maiestas e adultério (pois era uma traição ao pacto patriarcal). As mulheres da aristocracia, no novo contexto político do principado, deviam ser duplamente leais.

Deviam demonstrar lealdade ao pater familias (lealdade patriarcal) e lealdade ao grupo político a que pertenciam — mulheres da casa imperial deviam estas lealdades principalmente ao imperador, segundo Sarah Azevedo em sua tese.

A Lei Júlia sobre adultério vigente na época previa ou o exílio e/ou a transformação do status jurídico da mulher de matrona para prostituta, a partir de um ritual processual.

Este processo pode ser percebido na legislação e na literatura, como vimos na figura de Messalina que, diferentemente das outras mulheres, sofreu um julgamento após sua morte; sua mudança de status ocorreu a partir da tradição literária, sobretudo dos séculos I e II.

O julgamento da tradição literária

A primeira fonte literária onde é citada a morte da imperatriz é Apocoloquintose, de Sêneca, possivelmente publicada logo após a morte de Cláudio, em 54, portanto em torno de 6 anos após a morte da imperatriz. Nesta obra, o autor não menciona o adultério.

Ele classifica a morte como assassinato, mencionando-a numa parte do relato onde elenca uma série de nomes de aristocratas mortos por Cláudio (Apocol. 11, 13). Inicialmente, a visão sobre Messalina na documentação literária é de vítima da tirania de Cláudio, uma vez que foi executada por uma suposta conspiração.

Adúltera e prostituta

No final do século I, sua imagem já passa a ser construída como adúltera e, no início do século II, como prostituta. Como dito anteriormente, não houve indícios de um julgamento de adultério de Messalina; houve, porém, um julgamento no campo literário a ponto de consolidar sua imagem como prostituta para posteridade.

A segunda fonte que cita o ocorrido é a tragédia “Octavia”, atribuída a Sêneca, mas de autoria desconhecida. A datação desta obra foi estabelecida para depois da morte de Nero, em torno da década de 70 d.C.

Na tragédia, a personagem Octávia, filha de Messalina e Cláudio, menciona o adultério da mãe, dizendo que ela, em um ato de tolice, se casou com outro homem, mesmo já sendo casada.

O casamento de Messalina e Sílio se deu em 48 d.C. Esta menção, portanto, indica que em torno de duas décadas depois do ocorrido já havia uma ideia mais ou menos consolidada dela como adúltera.

Segundo Fernanda Gozo em sua dissertação de Mestrado "Otávia do Pseudo-Sêneca: tradução, estudo introdutório e notas", os versos “Ó, mãe, sempre por mim chorada, / primeira causa dos meus males, / ouça o triste lamento de sua filha / se nas sombras ainda há sentimento” (Sen. Oct.10–13) indicam que a morte da mãe de Otávia iniciou o círculo de infortúnios que culminou na morte da heroína”.

Já nos versos 259–261 é narrado o adultério de Messalina, que ainda casada com o imperador, entre em núpcias com outro homem, configurando uma bigamia. 

Há algum tempo nossa casa sofre a ira / dos deuses, a Vênus cruel foi a primeira a oprimi-la, / por meio do furor de minha pobre mãe, / que louca e já casada, casou-se em uma união incestuosa / a despeito de nós, do marido, e esquecida das leis. / Atrás dela, com o cabelo solto, amarrado por cobras, / a vingativa Erínis foi até aquela cama infernal, / pegou as tochas do leito e encharcou com sangue, / acendeu no peito do imperador uma ira selvagem / para a morte nefanda, minha mãe pobre sucumbiu / pela espada. Morta, me enterrou em luto perpétuo. Levou seu marido / e filho para a morte, abandonou nossa casa decadente" (Sen. Oct. 257–269).

A terceira menção aos adultérios de Messalina está na obra História Natural, de Plínio, o Velho, publicada entre os anos de 77 e 79. Na parte sobre o comportamento sexual e reprodutivo de várias espécies, Plínio conta uma sarcástica anedota a respeito de uma competição de sexo organizada por Messalina:

Messalina, consorte do César Cláudio, considerando isto ser um nobre jogo, selecionou para a competição a mais notória das prostitutas profissionais, e ganhou dela em uma disputa de sexo que durou dia e noite, com um resultado de vinte e cinco homens.” (HN, 10, 172)
"Companhia em um bordel" (Messalina e Gaius Silius), de Nicolaes Knüpfer, 1655 / Crédito: Getty Images

 

Outro exemplo de um produto final desse julgamento no campo literário, e que mostra a imagem de prostituta e adúltera consolidada, é de Décimo Júnio Juvenal (c. 55 d.C. — c. 127 d.C.), autor de sátiras.

Na Sátira VI, ele a descreve como uma mulher dominada pela luxúria que frequentava bordéis em busca de satisfação sexual enquanto seu marido estava dormindo no palácio.

Dirige teus olhos às rivais dos deuses. Escuta o que Cláudio / suportou: quando a esposa julgava que o marido dormia, / a augusta meretriz, atrevendo-se a vestir um capuz noturno / e a preferir a esteira de um cubículo ao tálamo imperial, / deixava-o, escoltada por não mais que uma escrava. / Depois de ocultar a negra cabeleira com uma loura peruca, / penetrava um cálido lupanar através de um velho reposteiro / e, em seguida, até uma cela vazia reservada para ela. Então, nua com os mamilos / guarnecidos de ouro sob a falsa alcunha de Licisca, prostituía-se / e a todos dava a conhecer, ó generoso Britânico, o teu ventre. / Branda, recebia os clientes e exigia o pagamento. / Ao depois, quando o cafetão já dispensava suas meninas, / triste ela saía, fechava sua cela o mais tarde que podia / e ainda ardendo pela tensão de sua vulva rígida / e esfalfada pelos homens, mas não ainda saciada, retirava-se: / horrenda pela face enegrecida e imunda pela fumaça do candeeiro, / levava ao leito nupcial o fedor do lupanar. (Juv. VI, 115–132)

O último registro antes do século II d.C. é de Flávio Josefo, em Antiguidades Judaicas, escrito em 94 d.C. O autor afirma que a morte da imperatriz teria ocorrido por ciúmes de Cláudio.

A literatura como instrumento político

A partir dos documentos deste recorte cronológico mais próximo à vida de Messalina, é possível afirmar que o comportamento sexual é uma construção posterior feita por autores como uma ferramenta de crítica a Cláudio.

Os autores mencionados, tais como Tácito e Juvenal, eram senadores, e buscavam fragilizar a imagem de Cláudio; um imperador que “dava poder aos escravos e não vigiava a esposa”.

Buscava-se tornar Cláudio risível, o homem incapaz de manter uma hierarquia social — como controlar mulheres e escravos — e mostrar um imperador que não conseguia administrar a sua domus — logo, como iria administrar o Império?

Ao analisar os documentos, deve-se atentar ao topus retórico de cada autor, e a respectiva imagem que se buscava construir. Tácito, por exemplo, aplica estereótipos de sexualidade desenfreada às mulheres que visam ocupar espaços públicos em muitos dos seus relatos construídos.

Assim, é necessário pensar se havia, portanto, uma intencionalidade em associar a mulher aos bacanais e costumes dissolutos — como foi feito com Messalina

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