Felipa teria liderado um grupo de 200 pessoas que queimou embarcações portuguesas
Raphaela de Campos Mello Publicado em 07/03/2021, às 08h00
Maria Felipa de Oliveira (data desconhecida - 1873), morava na Ilha de Itaparica. “Era negra, escrava liberta, vivia junto com outros tantos libertos, homens e mulheres, de catar mariscos, fazer pão preparar quitutes, vendidos nas feiras locais ou nas proximidades de lojas de secos e molhados”, conta Cecilia Helena de Salles Oliveira, professora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP).
Segundo a historiadora, ela acabou se envolvendo na luta contra as tropas portuguesas porque estas atrapalhavam as atividades e queriam ocupar pontos estratégicos da ilha. “Felipa e os grupos de negros e homens livres ‘ganhadeiros’, como se dizia, precisavam defender seu ganha-pão diário”, acrescenta.
Conhecida por ser uma mulher muito alta e de grande força física, Maria Felipa teria liderado um grupo de 200 pessoas, que usavam facas de cortar baleia, peixeiras, pedaços de pau e galhos com espinhos como armas. Um dos feitos do grupo foi ter queimado 40 embarcações portuguesas que estavam próximas à Ilha.
Artimanhas de sedução também integravam as táticas de guerrilha. Inebriados pelas mulheres locais, os portugueses seguiam com elas para a praia, onde bebiam o que elas lhes ofereciam e eram despidos.
Certos de que teriam seus desejos satisfeitos, recebiam, em vez disso, uma surra de cansanção – planta que provoca urtiga e sensação de queimadura na pele. Reza a lenda que o canto de Maria Felipa dizia: “Havemos de comer marotos com pão, dar-lhes uma surra de bem cansanção, fazer as marotas morrer de paixão”.
Mesmo após a independência, ela continuou exercendo sua liderança sobre a população pobre da Ilha de Itaparica, incluindo índios tupinambás e tapuias. Na primeira cerimônia de hasteamento da bandeira do Brasil na Fortaleza de São Lourenço, na Ponta das Baleias, Felipa e seu grupo invadiram a armação de pesca de um português rico e surraram um vigia, o que demonstra que as hostilidades entre portugueses e brasileiros, principalmente os pobres, não terminaram naquele 2 de julho de outrora.
Há um detalhe fundamental na história de Maria Felipa. Ela habita a memória e as tradições orais que cercam as lutas pela Independência na Bahia, apesar de haver livros sobre ela.
Foi citada, por exemplo, pelo historiador, escritor e político Ubaldo Osório Pimentel (1883-1974), natural de Itaparica, em sua obra A Ilha de Itaparica: História e Tradição, publicada em quatro edições. Também virou tema da obra Maria Felipa de Oliveira: Heroína da Independência da Bahia, da pesquisadora de patrimônio cultural e histórico Eny Kleyde Farias.
A ressalva sobre a real existência de Felipa consta, inclusive, do texto do projeto de lei que incluiu as três baianas no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, no qual se lê: “Ainda há pouco considerada como personagem lendária, a atuação histórica de Maria Felipa vem sendo reconhecida por diversos pesquisadores, que explicam o esquecimento que lhe impôs a historiografia tradicional pelo fato de ter sido não apenas uma mulher pobre, mas também negra”.
Costureiras, esposas, mães, filhas, negras “ganhadeiras”, que trabalhavam para libertar seus maridos e filhos, são exemplos de mulheres anônimas que participaram das lutas pela independência na Bahia e em outras províncias brasileiras.
As moradoras de Saubara, região que na época pertencia a Santo Amaro da Purificação, por exemplo, se fantasiavam para assustar os soldados portugueses que invadiram a localidade. Assim tinham acesso a seus maridos, obrigados a fugir e se esconder nas cercanias.
Elas se fantasiavam de almas, cobrindose com lençóis, e assombravam os invasores, que corriam para longe, desorientados. Livres para circular com segurança, chegavam aos esconderijos de seus cônjuges, levando medicamentos, comida e roupas.
Com isso, eles puderam sobreviver e se organizar. Como analisa a professora do Museu Paulista, tanto as mulheres de Saubara quanto Quitéria e Felipa se valeram do que era possível na época. Em outras palavras, usaram com astúcia e engenhosidade o que estava à mão, alcançando resultados efetivos nos conflitos locais.
Para a estudiosa, o envolvimento das mulheres na luta pela independência do Brasil evidencia algo maior: que a participação feminina na vida cotidiana foi muito mais ativa do que se imaginava. “Aprendemos que as mulheres viviam reclusas no período colonial e que não tinham participação pública também no século 19. Porém pesquisas recentes indicam outras condições.”
A historiografia atual nos põe em contato com todo tipo de mulher oitocentista. Mulheres chefes de casas, a exemplo de Maria Quitéria; mulheres que criavam os filhos sozinhas – ou porque eram viúvas ou porque os maridos eram recrutados para tropas –, que mantinham negócios e comércios em locais distantes de onde residiam ou se embrenhavam por áreas inóspitas para ampliar terras e plantações; mulheres que escreviam e divulgavam manifestos políticos à época da Independência e da Abdicação; mulheres que, alfabetizadas ou não, cuidavam dos filhos, cultivavam roças, compravam e vendiam mercadorias, a exemplo de Joaquina de Pompeu, em Minas Gerais, que tocava a produção e os negócios mesmo com marido presente; mulheres que mandavam em escravos ou eram escravas que, quando libertas, tratavam de ganhar a vida; mulheres que atuavam nos espaços públicos.
Cada qual, à sua maneira e movida por necessidades particulares, asfaltou a estrada para as mulheres do futuro.
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