No ano de 1902, um lote inteiro de livros causou uma verdadeira dor de cabeça, mobilizando o próprio autor
Ingredi Brunato, sob supervisão de Thiago Lincolins Publicado em 09/12/2020, às 17h20 - Atualizado em 21/01/2022, às 10h00
A literatura brasileira tem nomes de peso, mesmo a nível de crítica social. Porém, da vasta produção literária no país, poucos se destacam tanto como o grande Machado de Assis, um dos principais contistas e romancistas fluminenses.
Além de uma vida interessantíssima, a produção escrita de Machado é um profundo mergulho nas perspectivas e críticas da sociedade de sua época, o mundo escravocrata e aristocrata da Rio de Janeiro imperial.
Em 1902, foi lançada no Brasil a segunda edição da obra “Poesias Completas”, do célebre escritor. Na edição, foram reunidos seus três livros de poemas anteriores (chamados, respectivamente, de Crisálidas, Falenas e Americanas) com um quarto inédito, que recebeu o nome de Ocidentais.
Machado já tinha então 63 anos de idade (estando a seis anos de sua morte) e aquele acabou sendo seu livro de poesias definitivo.
Todavia, ocorreu um imprevisto de caráter um tanto quanto cômico no primeiro lote daquela segunda edição tão esperada: um erro ortográfico logo nas primeiras páginas.
O acidente não fora do escritor brasileiro, e sim de seu editor, que era francês. Ele não percebeu a troca daquela simples vogal, que acabara de dar um sentido grotesco à frase. Isso pois a expressão “lhe cegara o juízo” acabou sendo publicada como “lhe cagara o juízo”.
O trecho marcado pelo erro ortográfico levava o nome de “Advertência”. Machado explicava porque aquela segunda edição não contava com o mesmo prefácio da primeira, que havia sido escrito por um amigo querido seu, o advogado Caetano Filgueiras, já falecido no ano de 1902.
O autor, que era conhecido por não apreciar tanto seus próprios versos, escolheu retirar o texto escrito por Caetano, dizendo que “a afeição do meu defunto amigo a tal extremo lhe cegara o juízo que não viria a ponto de reproduzir aqui aquela saudação inicial”.
Todavia, como mencionado anteriormente, um erro ortográfico imprevisto acabou por transformar a frase inicial do escritor brasileiro, deixando-a com um ar escatológico.
O responsável pela confusão gráfica foi Baptiste-Louis Garnier, o editor francês dos livros de Machado de Assis, que também era o proprietário da Irmãos Garnier, uma das editoras mais relevantes do Brasil naquele período.
“Foi natural a troca de uma letra por um tipógrafo francês na composição de um texto em português”, comentou sobre o assunto o jornalista e escritor Marcos Barrero, que deu uma entrevista à Revista Galileu em 2016.
Depois de informarem a Irmãos Garnier do erro, foi garantido que o segundo lote viria corrigido. Todavia, o que fazer com o primeiro? Jogar fora livros em perfeito estado não era uma opção. Dessa forma, o problema acabou sendo solucionado através de um plano inusitado.
Um dos funcionários da editora, Everardo Lemos, deu a sugestão dos livros serem corrigidos à mão. Funcionaria assim: a letra “a” do “cagara” seria raspada, e então trocada pelo “e”, deixando a palavra como deveria ser desde o início. Ainda que a letra à mão não seguisse o padrão do restante, dava para entender, e evitava o duplo sentido indesejado do erro de grafia.
Assim, foi convocado à livraria um verdadeiro mutirão de pessoas armadas de tinta nanquim para ajudar a corrigir os livros de Machado de Assis. Segundo dizem alguns bibliófilos (nome dado para os colecionadores de livros), o próprio autor teria participado desse esforço coletivo.
Entretanto, alguns dos exemplares acabaram passando batido, de forma que o livro “Poesias Completas” acabou chegando de três formas diferentes ao seu público brasileiro.
Alguns livros tiveram a correção à mão, outros acabaram apresentando o erro ortográfico, e outros ainda, pertencendo ao segundo lote, já vieram certos da gráfica.
Hoje, é claro, todas essas versões são consideradas verdadeiras relíquias pelos colecionadores, possuindo, além do valor histórico, uma história divertida por trás.
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