Enquanto a Segunda Guerra Mundial acabava para muitos italianos, a batalha apenas começava para um jovem idealista que escolheu se manter leal ao líder fascista
Gustavo Magaldi e Joseane Pereira Publicado em 12/05/2019, às 08h00
"Em uma guerra, a questão de fundo não é tanto a de vencer ou de perder, de viver ou de morrer. Mas de como se vence e como se perde. Como se vive e como se morre. Uma guerra se pode perder, mas com dignidade e lealdade”. As palavras de Junio Valério Borghese, comandante da Decima Flottiglia MAS, expressam a forte noção de honra que acompanhava os integrantes dessa unidade de elite da Regia Marina, a marinha real italiana.
A famosa unidade dos homens-rã italianos, que afundaram 33 navios aliados durante a Segunda Guerra Mundial, convocou voluntários dispostos a continuar lutando ao lado de Mussolini mesmo após o armistício assinado em 8 de setembro de 1943, que marcou a troca de lado da Itália no conflito.
Um dos jovens idealistas que atenderam ao chamado da Decima Flottiglia MAS foi James Jall Cecililiato. Na entrevista a seguir, Cecililiato conta o que levou um rapaz de 18 anos a enfrentar a família e se juntar às Forças Armadas de um líder em decadência com o único objetivo de manter sua honra — e a de todos os italianos.
Como era a vida na Itália do período anterior à Segunda Guerra?
A vida era boa e tranqüila. Quando a guerra começou eu era apenas um menino de 14 anos que freqüentava a escola militar, em Milão. Minha família não passava por dificuldades e não se via muita pobreza, pelo menos não por ali.
Em geral, os italianos apoiavam as idéias de Mussolini?
Mussolini era um grande “ator” e havia hipnotizado a maioria dos italianos. Nós acreditamos na idéia de um império, que incluiria a Líbia, a Eritréia, a Somália e a Etiópia, com Mussolini como imperador. Ele declarou guerra aos aliados prometendo que o eixo Roma-Berlim-Tóquio venceria facilmente, pois dizia que tínhamos um exército de sete milhões de baionetas. Mas ele esqueceu que precisávamos também de fuzis, tanques, navios, aviões...
O senhor simpatizava com o nazismo?
Eu não tinha ligação com o nazismo nem com o fascismo. Eu defendia a minha pátria. Na escola militar, eu tinha alguns colegas alemães, que vinham estudar na Itália. E era amigo de alguns deles, mas minha ligação com os alemães era só essa.
Como começou seu papel na guerra?
Quando foi assinado o armistício, a Itália ficou dividida entre aqueles que queriam continuar a guerra contra os aliados e aqueles que apoiavam o acordo. Eu estava do lado de Mussolini, assim como meu pai, que era tenente-coronel do exército. Ao sair da escola militar, eu e dois amigos resolvemos nos alistar como voluntários da velha Decima Flottiglia MAS, que continuava a luta contra os aliados. Fomos muito criticados por essa atitude.
Por que tomou a decisão de continuar lutando ao lado de Mussolini?
Eu tinha empenhado minha palavra contra os aliados. Decidi seguir ao lado de Mussolini por uma questão de honra, para mostrar que os italianos tinham honra. Para mim, os outros tinham perdido a dignidade. Eu não aceitava a idéia de a Itália se render aos aliados.
E por que vocês escolheram a Decima Flottiglia MAS?
A Decima era muito famosa na Itália, principalmente depois de afundar os navios britânicos na Alexandria [em 19 de dezembro de 1941, homens da Décima afundaram os encouraçados HMS Queen Elisabeth e HMS Valiant, no mar Mediterrâneo]. Todos tinham orgulho da Decima, por causa dos mergulhadores. Então eu e meus amigos fomos para La Spezia, a base da Decima.
O que vocês encontraram lá?
Primeiro riram de nós, três garotos [Cecililiato estava com 18 anos] que chegavam para defender a honra dos italianos. Depois, quando descobriram que eu conhecia armas, por causa da minha experiência na escola militar, me promoveram a sargento. Ao todo, éramos uns 40 voluntários, mas nem havia uniforme quando chegamos.
E vocês foram mandados para onde?
Fomos enviados para Portofino [norte da Itália], para um período de treinamentos. Era muito sério. De manhã fazíamos exercícios físicos, como corrida. Depois do café da manhã, íamos para o mar, onde treinávamos algumas situações, como armar uma rede para defender navios atracados em portos. Depois construíram um aquário de vidro, para treinarmos a explosão dos navios. À tarde estudávamos, e à noite fazíamos simulações de ataque.
Houve alguma outra situação perigosa durante os treinamentos?
Em Portofino, aviões bombardeiros dos aliados freqüentemente sobrevoavam nossa base. Numa dessas ocasiões, abatemos dois aviões. Um deles fui eu que derrubei, com a bateria antiaérea.
O que você sentiu no momento?
Eu me senti muito bem quando derrubei o avião. Mas depois, quando vi que o piloto era um garoto de 19 anos como eu, me senti muito mal, muito mal mesmo. O canadense estava lá, com a barriga toda estourada... A partir daí comecei a refletir sobre o que estava fazendo na guerra. Pensava se tinha feito a opção certa. Hoje me arrependo muitíssimo de ter derrubado aquele avião.
E após tanto treinamento, o senhor participou de alguma missão?
Não, a guerra acabou antes que pudéssemos ir para a ação. Eu estava completamente preparado para cumprir minha missão. Mas nunca chegou essa oportunidade. Sempre diziam para nós que “amanhã” seria o dia. E esse dia nunca chegou. Nos sentíamos muito tapeados.
Como foi o fim da guerra para vocês?
Estávamos na ilha de Sant’Andrea, na Toscana, quando Mussolini foi capturado e morto. Nosso comandante, Tadini, simplesmente chegou e disse: “Vocês estão livres para ir embora. A guerra acabou para nós”. Então fui para Veneza, onde tive de me esconder dos partisans [soldados da resistência italiana, que lutavam contra as forças de Mussolini], que estavam procurando por soldados rebeldes. Eu tinha o endereço de uma antiga namorada de meu pai. Bati na porta dela e pedi para entrar, pois havia partisans por toda a parte. Ela me deixou entrar, sem saber quem eu era, e salvou minha vida. Enquanto tomávamos café, os aliados chegaram para ocupar a cidade. A guerra tinha acabado para mim.
Hoje, passados mais de 60 anos, o senhor acha que fez a opção certa ao se alistar e continuar lutando?
Quando terminou a guerra e as atrocidades dos nazistas se tornaram conhecidas, imediatamente me dei conta de que fizera a opção errada e briguei até com meu próprio pai por causa disso. Mas na época em que me alistei na Decima acreditava que estava fazendo a opção certa, pois desconhecia a realidade. Continuei a lutar contra os aliados porque achava que, tendo empenhado minha palavra, era questão de honra. Mas desconhecíamos completamente a verdade.
E o seu pai, também se arrependeu?
Não, por isso brigamos. Meu pai era fascista, louvava Mussolini e não enxergava seus defeitos. Ele foi a todas as guerras de que a Itália participou entre a Primeira e a Segunda Guerras, inclusive na Guerra Civil Espanhola, ao lado de Franco. Era um fanático.
O governo italiano reconheceu sua participação na guerra?
Há seis anos, o governo italiano perdoou os rebeldes, reconhecendo que tinhamos direito à aposentadoria como ex-combatentes. Só que perdi o prazo e hoje não recebo nada.
O que o senhor fez depois da guerra e como veio para o Brasil?
Fui para a Universidade de Bolonha, a primeira universidade do mundo, e depois me transferi para a Universidade de Bari, onde me formei em engenharia química. Vim para o Brasil em 1964 para montar uma fábrica de cloro-soda em Cubatão e estou aqui desde então.
Qual a sua pior lembrança da guerra?
Para mim, o pior de tudo foi a reação da minha família ao saber que eu havia optado por continuar a guerra ao lado de Mussolini, após o armistício. Eu admirava muito meu avô materno e ele me tratou como um louco. Aquilo me magoou muito.
Website dos ex-combatentes da Decima Flottiglia MAS: www.decima-mas.net
A história do comandante Junio Valerio Borgese, fundador da Decima Flottiglia MAS:
"The Black Prince and the Sea Devils: The Story of Valerio Borghese and the Elite Units of the Decima Mas", Jack Greene e Alessandro Massignani
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