Repressão militar durante movimento estudantil, em 1968 - Crédito: Wikimedia Commons
Ditadura Militar

Há 51 anos, era instituído o AI-5, a gradual radicalização da ditadura

Nunca existiu ditabranda: o regime começou com onda de perseguição a adversários, com cassações em série, casos de tortura e milhares de prisões

Carla Aranha Publicado em 13/12/2019, às 00h00

A ditadura começou mansa. Envergonhada, na definição do jornalista Elio Gaspari, que escreveu sobre o período. Lideranças civis que apoiaram o golpe acreditavam que os militares sairiam de cena com a mesma facilidade com que deixaram a caserna para entrar na vida política.

Os próprios golpistas tentavam ostentar verniz democrático. Preferiam ser chamados de revolucionários. O Congresso continuou funcionando, embora expurgado dos políticos inconvenientes ao regime, e houve a preocupação de redigir uma Constituição que justificasse a nova ordem.

Mas não se colocam tanques nas ruas impunemente, e não tardou para que o autoritarismo apresentasse suas armas.

Tudo começou pela violação de direitos políticos. Já em abril de 1964, foram cassados 41 deputados federais, 29 líderes sindicais, 122 oficiais das Forças Armadas simpáticos a João Goulart e várias personalidades públicas, como o antropólogo Darcy Ribeiro — então reitor da Universidade de Brasília —, o economista Celso Furtado e o ex-presidente Jânio Quadros.

Em breve, nem o ex-presidente Juscelino Kubitschek escaparia. Tratava-se de suspender, por até dez anos, o direito de ocupar cargo público, assim como o de votar e ser eleito.

Os funcionários públicos que foram considerados ameaça à segurança do país foram demitidos. Os expurgos atingiram em cheio as Forças Armadas, que teve quase 3 mil integrantes punidos em 1964.

Eleição indireta

A perseguição política estava amparada pelo Ato Institucional número 1 (AI-1), assinado em 9 de abril pela Junta Militar que governou provisoriamente o país, formada pelo vice-almirante Augusto Grünewald, da Marinha, o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia Melo e o general Arthur da Costa e Silva, que viria a ser presidente.

O AI-1 também determinou a "eleição" do novo presidente de forma indireta. O escolhido para o cargo foi o general Humberto de Alencar Castello Branco, empossado em 15 de abril para um governo que ficaria marcado por um estilo mais vacilante do que propriamente brando.

Também houve as prisões e as torturas. Documentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos mencionam 5 mil detenções feitas em poucas semanas após a derrubada de Jango.

No balanço de 1964, nada menos que 203 denúncias de maus-tratos foram registradas. No ano seguinte, o presidente Castello Branco baixou o Ato Institucional número 2, instituindo que os processos políticos seriam julgados, daí em diante, pela Justiça Militar.

"Deu-se assim o primeiro grande passo no processo de militarização da ordem política nacional", sustenta Elio Gaspari, no livro A Ditadura Envergonhada. Os tribunais não escaparam dos expurgos, contribuindo para deixar a Justiça nas mãos de parceiros do regime.

Manifestantes na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 19 de março de 1964 / Crédito: Wikimedia Commons

 

O AI-2 também acabava com os partidos existentes. O governo obrigou todos os políticos a se enquadrarem em duas novas legendas: a Arena (Aliança Renovadora Nacional), pró-ditadura, que recebeu os quadros da UDN, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), no qual se agruparam os restos de PTB e PSD.

"Com vários deputados de centro e esquerda cassados, na prática quem dava as cartas era o governo, ou seja, a Arena", afirma o historiador Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense.

As cassações de parlamentares prosseguiram em 1965 e 1966. Em outubro de 1966, a situação chega a tal ponto que até as moderadas lideranças do Congresso reclamam desse expediente, por considerá-lo exagerado. Em represália, Castello Branco decreta recesso parlamentar por um mês.

O mandato de Castello Branco iria até 1967, e o fechamento do Congresso deixa claro que a Casa, desfigurada e de mãos atadas, irá apenas referendar a escolha de um sucessor militar. Outro mau sinal nessa direção tinha sido o AI-3, editado no início do ano, que estipulava eleições indiretas também para governador.

"Se em 1964 ainda se tentava segurar um pouco a linha dura dos militares e dar uma aparência de legitimidade ao novo governo, em 1966 a ditadura já começava a mostrar que iria endurecer", diz Ferreira.

No final do ano, os brasileiros conheceram mais um AI, o número 4, feito só para obrigar os deputados a se reunirem às pressas, até janeiro de 65, para que fosse aprovada uma nova Constituição — na verdade, pronta há seis meses.

O novo texto só entrou em vigor em 15 de março de 1967 — data em que tomou posse um novo presidente, escolhido entre os militares e incensado pelo Congresso, o general Arthur da Costa e Silva.

Nada disso chegou a intimidar demais a oposição, na avaliação de Jorge Ferreira. "Naquela época ainda se acreditava que a democracia pudesse voltar ao país em pouco tempo", comenta o historiador.

Figuras de expressão no tempo dos civis, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart, no exílio, confabularam no segundo semestre de 1967 para criar uma aliança contra o governo militar, a Frente Ampla. Meses depois, em março de 1968, a iniciativa é declarada ilegal.

Trecho inicial do AI-5 / Crédito: Wikimedia Commons

 

Na mesma época, a esquerda começava a pegar em armas. Com a ajuda de Cuba, Leonel Brizola prepara vários grupos para ação armada, que não vão adiante. Mais efetiva é a ação da Ação Libertadora Nacional (ALN), que é criada pelo líder comunista Carlos Marighella e por estudantes, no final de 1967.

A organização faz os primeiros assaltos a banco para arrecadar fundos para o movimento, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Era um início tímido. “A esquerda, os intelectuais e os estudantes ainda não haviam se dado conta de que a ditadura não iria largar o osso”, diz Jorge Ferreira.

Combate à inflação

Na economia, o governo militar fez grandes mudanças logo que assumiu. Os ministros Roberto Campos, do Planejamento, e Otávio Bulhões, da Fazenda, criaram um plano para controlar a inflação, que chegava a 80% ao ano. Também fizeram uma reforma tributária e outra administrativa inéditas.

“A dupla Campos-Bulhões unificou os impostos, o que representou mais arrecadação para o governo federal”, explica o economista Frederico Lustosa, da Fundação Getúlio Vargas, do Rio.

Nessa época ainda foram introduzidos os planos de orçamento do governo, outra inovação, e um sistema unificado de Previdência — até 1964, eram os sindicatos que, pela contribuição mensal dos trabalhadores, garantiam a aposentadoria de cada categoria.

"Foram reformas positivas", opina Lustosa. É uma opinião controversa. José Maurício Soares, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), é um dos que discordam.

"Começou em 1964 a política de achatamento do salário mínimo como forma de conter a inflação, segurando a emissão de dinheiro", relata.

"A concentração de renda, um dos maiores problemas do Brasil hoje, também teve início aí, com os empresários e investidores das bolsas ganhando mais, pois o país crescia, e os trabalhadores ganhando menos", analisa.

A verdade é que a semente da ditadura violenta que se instalaria em 1968 foi plantada em 1964 e germinou nos anos seguintes. Uma frase do preâmbulo do AI-1 é reveladora desse processo: "A revolução legitima-se a si própria".

Até o final de 1968, ano do AI-5, a tortura ainda não tinha se tornado praxe nos cárceres brasileiros. "Ela já começava a ser praticada, mas não com a freqüência do final dos anos 60 e começo dos 70", diz o historiador Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense.

Entre 1964 e 1968, foram torturados e mortos 34 opositores do regime. Sabe-se até quem foi o primeiro torturado: o líder comunista pernambucano Gregório Bezerra, que no dia 2 de abril foi preso, arrastado pelas ruas de Recife, amarrado em um jipe e depois espancado por um oficial do Exército com uma barra de ferro.

Como ainda havia alguma liberdade de imprensa, os jornais trataram de colocar a boca no mundo, em reportagens sobre o caso de Bezerra e outros semelhantes.

O jornalista Carlos Heitor Cony, que à época trabalhava no jornal O Globo, no Rio, lançou-se em 1964 em uma campanha contra a tortura. O governo se incomodou com as denúncias, e Castello Branco decidiu enviar o general Ernesto Geisel, então chefe do Gabinete Militar, em viagem de averiguação por vários estados brasileiros.

"A viagem teve ao menos o mérito de paralisar as torturas", afirmou o jornalista Márcio Moreira Alves, em seu livro Torturas e Torturados, de 1966. Mas como os torturadores não foram punidos, sentiram-se apoiados pelos superiores, analisa o jornalista Elio Gaspari em A Ditadura Envergonhada.


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