Entre os mais bem-sucedidos estão advogados, jornalistas e médicos, sem contar os riquíssimos barões, como Guaraciaba
Mary Del Priore Publicado em 30/08/2019, às 08h00 - Atualizado em 26/11/2021, às 09h00
Numa época de mudanças, um personagem importante invadiu a cena: o mulato. Gilberto Freyre foi dos primeiros a observar o fenômeno: ele era uma força nova e triunfante. Segundo Freyre, o mulato vinha se constituindo em elemento de diferenciação da sociedade rural e patriarcal no universo urbano e individualista.
Ele estaria se integrando, ou melhor, se acomodando, entre os extremos: o senhor e o escravo. A urbanização do Império, a fragmentação das senzalas em quilombos, o crescimento de alforrias e a inserção nos cargos públicos e na aristocracia de toga deram visibilidade aos mulatos, aos morenos.
Nos jornais, notícias e avisos sobre bacharéis formados, doutores e até senhores estudantes principiaram, desde os primeiros anos do século 19, a anunciar o novo poder daqueles que agiam e se expunham em becas escuras. “Trajes de casta capazes de aristocratizar” seus portadores, diz Freyre.
Muitos não dispunham de protetores políticos para chegar à Câmara nem subir à diplomacia. Muitos estudaram ou se formaram graças “ao trabalho de uma mãe quitandeira ou um pai funileiro”. Outros faziam casamento com moças ricas ou de famílias poderosas. Mas eram visíveis em toda a parte.
É o mesmo Gilberto Freyre quem conta o exemplo de José da Natividade Saldanha, bacharel mulato e protagonista de uma história surpreendente. Filho de padre, Saldanha estudou para padre no Seminário de Olinda, mas rebelou-se contra o Seminário. Durante a Revolução Pernambucana, em 1817, ele deixou a cidade com os familiares e rumou para Coimbra, a fim de continuar os estudos.
Na volta ao Recife, se insurgiu contra dom Pedro I e sua Constituição. Foi eleito secretário do governo de Manoel de Carvalho Paes de Andrade e encontrava tempo para escrever relatórios sobre a revolução, pensando em deixar para a posteridade as informações do acontecido. Com a derrota dos insurretos, Natividade Saldanha fugiu.
Na primeira tentativa frustrada de refugiarse na França, perdeu o navio e escondeu-se novamente em Olinda. O cônsul americano James Hamilton Bennet o ajudou na fuga para a Filadélfia, Estados Unidos, onde sofreu discriminação, por ser mulato.
Viajou, então, para a França, onde conseguiu um passaporte português. Sob perseguição do governo brasileiro, ele foi expulso do país pela polícia local. Foi à Inglaterra e, de lá, à Venezuela, onde sofreu privações. Na Venezuela, Natividade Saldanha conheceu o general Abreu e Lima, que o encaminhou a Simon Bolívar. Conseguiu, então, exercer a advocacia naquele país.
Ali, comentou a sentença de um juiz branco, Mayer, na qual ele, Saldanha, era chamado de mulato. E retrucou: “Esse tal mulato Saldanha era o mesmo que adquirira prêmios quando ele, Mayer, tinha aprovação por empenho e, quando o tal mulato recusava o lugar de auditor de guerra em Pernambuco, ele, Mayer, o alcançava por bajulação”.
Saldanha abandonou Caracas e foi à Colômbia pela selva, passando a residir em Bogotá, onde passou a ensinar humanidades. Soube, então, que tinha sido condenado à morte por enforcamento no Brasil. Tomando conhecimento que um antigo amigo exercia atividade no tribunal que o condenou, enviou-lhe uma procuração:
“Pela presente procuração, por mim feita e assinada, constituo por meu bastante procurador na Província de Pernambuco ao meu colega Dr. Tomaz Xavier Garcia de Almeida, para em tudo cumprir a pena que me foi imposta pela Comissão Militar, podendo este morrer enforcado, para o que lhe outorgo todos os poderes que por lei me são conferidos.
Caracas, 3 de agosto de 1825
José da Natividade Saldanha, bacharel em Direito Civil pela Universidade de Coimbra”
Outro exemplo, o advogado Felipe Nery Colaço, nascido em Pernambuco em 1813, formado em direito pela Faculdade do Recife e curioso de engenharia. Lente de língua inglesa no Ginásio Pernambucano, se destacou pelo “gabinete técnico de engenharia” que estabeleceu na capital da Província. Como ele, enfatiza Freyre, surgiram na primeira metade do século 19 mestiços hábeis, cujas qualidades foram sendo estudadas e aproveitadas. O médico Tiburtino Moreira Prates, autor de uma interessante tese de medicina apresentada à Faculdade da Bahia, Identidade da Espécie Humana, fazia em 1848, a defesa de mulatos:
“Uma outra classe ludibriada até pelos seus próprios progenitores é a dos mulatos, cuja inteligência tem sido muitas vezes amesquinhada por homens dominados por preconceitos [...] Apesar de alguma rivalidade que há ainda entre brancos e mulatos, estes, ou pela grande parte que tiveram na luta de nossa Independência ou por seu número predominante, ou pelo que quer que fosse, no Brasil gozam de consideração e podem elevar-se a altos lugares quando a fortuna os ajuda”. Para cravar: “Mais de cem estudantes frequentam a Escola de Medicina: a metade são incontestavelmente mulatos”.
Mulatos bem-sucedidos no Império foram muitos advogados, jornalistas, médicos, sem contar os riquíssimos “barões de chocolate”, entre os quais o Guaraciaba, o Gê Acayaba de Montezuma e o Cotegipe, braço direito do imperador dom Pedro II.
Por Mary Del Priore, doutora em história social com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, vencedora do Prêmio Jabuti e autora de "Histórias Íntimas — Sexualidade e Erotismo na História do Brasil".
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