Medida sancionada na Era Vargas foi enrijecida pela Ditadura e, ainda hoje, é responsável pelo atraso e preconceito contra as mulheres no esporte
Fabio Previdelli Publicado em 14/04/2021, às 17h33 - Atualizado em 19/07/2023, às 16h59
Amanhã, 20 de julho, começa a nona edição da Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino, que será realizado na Austrália e Nova Zelândia até o dia 20 de agosto. A atual edição do torneio é a maior já realizada, sendo a primeira a contar com 32 seleções — mesmo número de participantes da última Copa do Mundo masculina disputada no Qatar.
A Seleção Brasileira chega como a maior potência do continente e espera fazer história. Nossa melhor colocação em um mundial aconteceu em 2007, quando nossas atletas foram vice-campeãs ao perderem na final para a Alemanha por 2x0.
A história do Futebol Feminino no Brasil é a prova de que não importa contra quem seja os jogos, as mulheres sempre entrarão em campo contra adversários que vão muito além das quatro linhas. Afinal, por aqui, a modalidade foi proibida por quase quatro décadas e, até hoje, sofre inúmeros preconceitos.
Quando o futebol desembarcou no Brasil com Charles Miller, em 1984, o esporte era praticado por uma elite branca formada apenas por homens. As primeiras referências sobre as mulheres na modalidade só surgiram nos anos 1920.
De forma muito tímida, o esporte passou a ser praticado em regiões periféricas no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Norte. Do ponto de vista histórico, os primeiros e registros do termo "Futebol Feminino" foram encontrados em panfletos circenses — sendo apresentados como um 'espetáculo' e não uma simples partida.
Na década seguinte o futebol viveu sua fase de profissionalização em 1933. Ainda assim, as mulheres lutavam por seu espaço no esporte junto de outras minorias, como trabalhadores braçais, mestiços e negros.
Entre 1939 e 1940, mulheres periféricas, oriundas do subúrbio carioca, apresentaram mais de quinze equipes femininas que passaram a aparecer nos mesmos espaços dos torneios e campeonatos suburbanos masculinos.
Em 17 de maio de 1940, São Paulo e Flamengo fizeram um amistoso no recém inaugurado Estádio do Pacaembu. O que chama a atenção para a data é que uma partida preliminar foi realizada entre equipes formadas por mulheres.
"Essas meninas vão jogar dentro do estádio do Pacaembu, que é um lugar que vai ter muita visibilidade naquela ocasião. Um estádio doado ali pelo governo de Getúlio Vargas à cidade de São Paulo e, na sequência desse episódio, não vão acabar os convites para que essas mesmas equipes excursionem pela América Latina", explica Aira Bonfim em entrevista exclusiva à equipe do Aventuras na História.
Mestre em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), com pesquisas dedicadas às práticas esportivas contra hegemônicas, Bonfim, que hoje trabalha como curadora no Museu do Futebol — onde atuou como pesquisadora por quase uma década —, explica que o crescimento das mulheres no futebol, que inclusive foram chamadas para excursões no exterior, acabou não sendo muito bem aceito naquela época.
Consequentemente, essas meninas pretas, pobres e etc… vão, de alguma forma, ter oportunidade de representar o Brasil dentro de campo. E isso não vai pegar bem".
Indo de encontro com as pesquisas de Aira, a jornalista e pesquisadora de mulheres no esporte Lu Castro ainda aponta que o deslocamento das mulheres das regiões suburbanas para o fim de jogar futebol, implicava, para aquela época, na ausência da mulher dentro de casa, cumprindo com os deveres estipulados através do matrimônio e mesmo fora dele. "A criação da mulher era rigorosamente para a servidão, fosse no aspecto prático, fosse no aspecto do imagético feminino para os homens".
As notícias sobre as mulheres jogando futebol causaram um alvoroço na opinião pública da época e também nas autoridades. O estranhamento da mulher ocupando um lugar que 'não foi feito para ela' causou discussões sobre a proibição delas praticarem o esporte; o que acaba sendo sacramentado pouco depois com o decreto-lei número 3.199 de 14 de abril de 1941:
Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país", diz proibição imposta durante a Era Vargas.
"Por mais que haja, em 1941, um argumento de cunho 'pretensamente científico', que vai olhar inclusive para as proibições que acontecem na Inglaterra e replicar esse modelo que diz respeito a uma divisão de gênero, onde esse corpo feminino, então, não estaria adequado a praticar um esporte dito violento, a gente sabe também o quanto essa experiência foi classista e pensando que o protagonismo das meninas, nessa época, se diz de uma mulher que vem de uma periferia. Então, ele também passa pela questão de classe e raça", contextualiza Aira.
Importante ressaltar que, naquela época, embora ainda não existisse a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), um conselho esportivo na gestão do Estado Novo, formado pelo Ministério da Saúde e da Educação, intermediou a elaboração do que podia ou não acontecer dentro do circuito de esportes nacional.
"Por mais que exista uma justificativa ali pleiteada pelos educadores físicos da época, a gente percebe pelos jornais do mesmo período que existe uma desqualificação pública para essas mulheres nesses jornais", continua Bonfim.
Um dos casos mais emblemáticos sobre a descredibilização da mulher no futebol aconteceu com Dona Carlota Resende, dirigente que fomentou a categoria e acabou sendo presa após sofrer uma enorme campanha de difamação que a acusavam de aliciar jogadoras.
"Tudo isso é colocado nos jornais. É uma associação direta entre a praticante do futebol desse período com esse universo considerado, no período, como uma baixa moralidade", reitera a pesquisadora.
A proibição imposta durante o governo de Getúlio Vargas foi endurecida pelos Anos de Chumbo da Ditadura Militar. Embora o futebol não tenha sido nominalmente citado no decreto-lei de 14 de abril de 1941, um ano após o Golpe Militar de 1964, o Conselho Nacional de Despostos (CDC) citou especificamente os esportes proibidos para as mulheres.
Eles eram: "lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo-aquático, rugby, halterofilismo e beisebol".
Até aquele momento, circulavam notícias de que as mulheres continuavam a jogar futebol, mas de forma clandestina. Portanto, seus registros históricos passam a ser escassos.
Aira recorda que apesar das proibições, eventos esportivos, que davam destaque ao futebol de mulheres, passaram a acontecer recorrentemente. Para driblar as medidas, entre 1959 e 1960, por exemplo, jogos desta natureza aconteciam como partidas beneficentes. "De norte a sul do Brasil, a gente vai encontrar partidas que usam desse artifício para acontecer".
Desta forma, escolas e ambientes de sociabilidade ofereciam jogos de futebol de alunas para arrecadar fundos para algum objetivo comum. Fora desse contexto, ainda no final da década de 1950, mais precisamente no dia 17 de agosto de 1959, aconteceu no Estádio do Pacaembu o Jogo das Vedetes — nome dado às artistas de teatro da época — que visava arrecadar fundos para a construção do Hospital dos Atores de São Paulo.
O jogo é responsável por angariar 1.320.500,00 cruzeiros (uma quantia menor apenas que uma partida entre Corinthians x Palmeiras, válida pelo Campeonato Paulista daquele ano).
A proibição iniciada no governo Vargas só foi revogada quase quatro décadas depois, em 1979. A partir de então, iniciou-se uma nova era para o Futebol Feminino, mas engana-se quem pensa que o fim da proibição mudou tudo da água para o vinho.
A modalidade só foi regulamentada no país em 1983, o que permitiu que as mulheres pudessem competir, criar calendários esportivos, utilizar estádios e até mesmo que escolas pudessem autorizar suas participações em aulas esportivas. Neste mesmo período, surgem clubes pioneiros como o Saad e o Radar.
"O impacto imediato foi: estamos livres para a prática, para nos organizarmos em equipes", explica a jornalista Lu Castro. "E isso gerou um boom de equipes no país inteiro, que já vinham tímidas desde o começo dos anos 1980. A imagem dessas mulheres, entretanto, em nada mudou no imaginário popular. Os anos de ilegalidade, e, portanto, de marginalização, seguiram colados nas jogadoras por um bom período".
Um marco para o Futebol Feminino no mundo aconteceu em 1988, quando a FIFA realizou em Guangdong, na China, um Mundial de caráter experimental chamado Women's Invitational Tournament, que serviu como um torneio preparatório para o que seria a primeira Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino, realizada em 1991. A Seleção Brasileira ficou em terceiro lugar e foi eliminada na fase de grupos nestes torneios, respectivamente.
Uma questão relevante a ser ressaltada no torneio experimental realizado na China é que, embora o Futebol Feminino brasileiro já estivesse sob a tutela da CBF, as mulheres não receberam uniformes próprios para disputar a competição. Elas tiveram que usar retalhos de roupas masculinas.
"A questão dos uniforme é muito emblemática sobre descaso e desrespeito. Culturalmente sempre se adotou as roupas com cortes masculinos e femininos no cotidiano das pessoas. Não dar às atletas o corte de vestuário que permita os movimentos adequados na prática esportiva, sempre me soou como sabotagem", discorre Lu Castro.
Só recentemente a Seleção Brasileira Feminina passou a ter um uniforme com corte adequado. Além disso, em novembro de 2020, elas deixaram de usar a amarelinha com as cinco estrelas estampadas referentes aos títulos mundiais masculinos.
Isso, definitivamente, distingue uma seleção da outra — com histórias muito distintas — e também abre as portas para que as empresas aportem suas marcas em um grupo com recorte específico, ou seja, as mulheres que amam futebol", finaliza a jornalista.
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