Povos dos três estados enfrentam dificuldades para recuperar casas, roças e estradas; lideranças denunciam a omissão dos governos federal e estadual perante a situação
Marina Oliveira Publicado em 30/01/2022, às 09h00
A chegada do verão é sempre marcada por episódios de chuvas no Brasil. Mas ninguém estava preparado para enfrentar a tragédia que ocorreu em dezembro de 2021: as fortes enchentes que atingiram o país no último mês deixaram um profundo rastro de destruição. Estados como Bahia, Minas Gerais e Tocantins ficaram, literalmente, debaixo d’água. Mesmo após um mês, as pessoas que habitam esses locais ainda sofrem os impactos – até hoje, precisam de ajuda para refazer suas moradias e se alimentar, por exemplo.
Inseridos nessa realidade, os povos indígenas também viveram momentos de tensão. Logo nas primeiras chuvas, muitas aldeias ficaram ilhadas, perdendo toda sua estrutura e plantios. Mas, infelizmente, a perspectiva não é de melhora. Ainda sem se recuperar dos últimos desastres, diversos municípios brasileiros continuam em estado de alerta em razão de novas cheias, como a do rio São Francisco.
E, para piorar, há um agravante: a omissão dos governos federal e estadual perante a situação, de acordo com denúncias recebidas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Segundo lideranças, a maior parte da ajuda que estão recebendo é de origem de trabalhos voluntários e de instituições parceiras.
Para a construção desta reportagem, as informações foram divididas por estados – aqueles que mais sofreram com as últimas chuvas. Mas, no final, foi constatado que todos têm um problema em comum: as ações antrópicas de cunho desenvolvimentista, em especial o investimento em barragens para empreendimentos hidrelétricos.
Apenas no estado da Bahia, 11 mil indígenas, de nove povos, foram atingidos pelas enchentes que ocorreram no final do último ano, segundo Agnaldo Francisco dos Santos, liderança do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe e coordenador do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA).
“As chuvas que aconteceram em dezembro na Bahia atingiram fortemente os nossos territórios. Dos 30 povos que habitam o estado, nove foram atingidos. De todos os municípios que declararam estado de emergência, 19 têm terras indígenas. Das 195 comunidades indígenas, 104 foram atingidas. Um total de 11 mil indígenas dos 60 mil que moram na Bahia”, disse a liderança.
Ao Cimi, Agnaldo falou também sobre as cicatrizes deixadas por esse difícil momento. “As roças, os sistemas de água e as casas foram destruídas. Algumas comunidades indígenas ficaram ilhadas devido à água das enchentes ou devido à destruição das estradas. Além disso, houve um impacto direto na economia, já que os parentes não puderam produzir alimentos e realizar suas atividades para vender em feiras livres das regiões”, lamentou.
Sensibilizadas, pessoas do Brasil inteiro decidiram arrecadar alimentos, água, produtos de higiene, entre outros itens essenciais, para enviar aos indígenas. Para Agnaldo Pataxó Hã-Hã-Hãe, essa foi uma das “maiores ajudas” que os indígenas receberam. “Nesse primeiro momento, foi de vital importância a participação das pessoas e da sociedade civil. Amenizou muito o sofrimento dos nossos povos”.
Haroldo Heleno, coordenador do Cimi Regional Leste, lembra também que, apesar da omissão do governo federal desde o começo, o compromisso do governo da Bahia foi fundamental para superar esse primeiro momento.
“O governo federal foi totalmente insensível. Em um momento grave, Bolsonaro se omitiu, estava tirando férias. Então a postura do governo federal, através de seus órgãos, tem sido de total omissão, nenhuma ajuda. Mas, felizmente, o governo da Bahia teve grande compromisso, se deslocou para a região do sul do estado, montou gabinete com a Defesa Civil e outras secretarias. E, até onde a gente sabe, continuam dando suporte”, relata.
Agora, de acordo com o coordenador do Cimi Regional Leste, o momento é de “administrar os estragos que foram feitos”.
“Temos a perspectiva de fazer uma solicitação de apoio para um projeto mais estrutural, já que nesse primeiro momento houve uma ajuda significativa em torno de cestas básicas e primeiras necessidades. Agora vem a parte mais difícil, que é a reconstrução de casas e roças, estamos com a ideia de fazer um mutirão e convidar outros povos indígenas para fazer reconstrução de casas das aldeias afetadas”, explicou o coordenador.
Segundo Agnaldo, a Fundação Nacional do Índio (Funai) também ajudou as comunidades indígenas por meio de doação de cestas básicas. Mas, de acordo com a liderança, não houve nenhuma ajuda nessa “segunda etapa”, a da reconstrução.
“Não houve nenhum retorno de ação, nenhum planejamento, por parte do governo federal. Precisamos ainda reconstruir casas, estradas e roças. Há famílias que perderam tudo. Continuamos cobrando do governo uma ação nesse sentido”, afirma a liderança.
O estado de Minas Gerais também sofreu com as fortes chuvas de dezembro de 2021 e janeiro deste ano. De acordo com Haroldo Heleno, calcula-se que cerca de 25 mil indígenas foram atingidos pelas enchentes que ocorreram em Minas. Entre os povos afetados, estão os Maxakali, Pataxó, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Pankararu, Xakriabá, Xukuru-Kariri e Tuxá.
“Um dos casos mais preocupantes de Minas Gerais é o povo Maxakali, da Aldeia Pradinho. Eles ficaram ilhados em razão das fortes chuvas. Além disso, houve um surto gripal que atingiu quase toda a comunidade. Foi preciso uma intervenção do poder municipal de Teófilo Otoni [município de Minas Gerais] para ajudar, porque a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] não deu conta sozinha”, disse Haroldo.
Por meio de redes sociais, os Maxakali realizaram campanhas para arrecadar alimentos, água e quantias de dinheiro para fazer as manutenções necessárias na aldeia. Em uma postagem feita no dia 10 de dezembro de 2021, os indígenas não esconderam a aflição perante o drástico cenário.
“Nós estamos muito preocupados dentro da aldeia. A aldeia está sofrendo muito, as pontes estão quebradas e atendimento…as crianças estão doentes. Não está passando carro nenhum, as pessoas vão a pé comprar as coisas, as crianças ficam com fome”, diz um trecho da publicação.
“A cidade de Machacalis já tem 200 desabrigados e cinco pessoas mortas. E as chuvas não param. As cidades de Umburaninha e Batinga estão alagadas. Vamos precisar de muito apoio! Esta campanha é para apoiar aldeias Maxakali do território Pradinho”, afirmam os indígenas em outro momento da postagem.
Diferente do estado da Bahia, o governo de Minas Gerais agiu com total descaso e omissão, segundo Haroldo Heleno. “Que a gente saiba, não houve nenhum compromisso. Os governos municipais do estado se aproveitaram da situação para se promover, como ocorreu, por exemplo, em Brumadinho. Pegaram carona com as organizações que estavam fazendo campanhas de solidariedade e, de repente, os caras [representantes políticos] chegavam para tirar foto e dar entrevista como se fosse uma ação da prefeitura. Em Brumadinho até houve ajuda, mas usaram a situação como instrumento político para campanha eleitoral”.
Desde dezembro do ano passado, a Aldeia Catàmjê, na Terra Indígena (TI) Krahô-Kanela, no Tocantins, sofre também com os impactos causados pelas enchentes: há mais de um mês que a área está completamente alagada. Escola, posto de saúde, casas e espaços para reuniões foram inundados após a cheia do rio Formoso (TO). Além disso, houve uma perda significativa de alimentos, já que as plantações também foram levadas pelas águas do rio.
Ao Cimi, o cacique Wagner Krahô-Kanela relatou que, a cada dia que passa, a situação fica mais grave. “Nós não temos para onde ir, o nosso lugar é o nosso território. Estamos buscando apoio das autoridades, como a Funai, a Sesai e a Seduc daqui [Secretaria de Estado da Educação, Juventude e Esportes do Tocantins]. Mas até agora não tivemos muita ajuda”.
Por meio de um documento encaminhado pela Associação do Povo Indígena Krahô-Kanela (APOINKK) ao Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do estado, no dia 12 de dezembro de 2021, os Krahô-Kanela solicitaram um barco, um motor de popa e a contratação de um barqueiro para que as pessoas pudessem se deslocar e ser atendidas no local.
“Justifica-se que o período da chuva chegou, logo o barco e motor de popa e contrato do barqueiro são necessários para o trabalho da equipe multidisciplinar de saúde indígena e atendimento à comunidade. Sem embarcação e motor de popa a comunidade ficará ilhada, sem acesso ao atendimento”, diz o documento.
De acordo com cacique Wagner, até o momento os Krahô-Kanela não tiveram retorno do DSEI, unidade vinculada à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e responsável por efetivar a atenção à saúde indígena nas regiões. Mas, na semana passada, a Funai deixou uma embarcação no local para ajudá-los com o deslocamento. Além disso, a liderança disse que também receberam apoio da assistência social do município, que doou cestas básicas. No entanto, a comunidade segue precisando de ajuda.
“Pedimos à Seduc uma tenda para instalar a nossa escola improvisada, mas ainda sem sucesso. Além disso, precisamos de apoio com a alimentação, porque a nossa roça alagou e foi um grande impacto que sofremos. Não dá para produzir alimentos devido à água e isso afeta o nosso modo tradicional de vida”, lamentou a liderança do povo Krahô-Kanela.
Eliane Franco Martins, coordenadora do Cimi Goiás/Tocantins (GO/TO), confirmou a omissão poder público perante o contexto. “A Funai deixou um barco, mas só isso. A Defesa Civil disse que ia ajudar, doou umas cestas, mas não duraram nem dez dias, porque eram pequenas. É muita omissão do poder público. Nós, do Cimi, que estamos ajudando, principalmente”.
O cacique disse que, apesar do descaso dos governos estadual e federal, a ajuda do Cimi tem sido muito importante para enfrentar o momento. “O Cimi nos ajudou com combustível [para o barco] e com lonas. Nós estamos utilizando a lona para colocar no chão de nossas casas e aterrar, já que está minando água dentro das residências. O apoio do Cimi é muito importante”.
Apesar de estarem em regiões brasileiras diferentes, os estados do Tocantins, de Minas Gerais e da Bahia enfrentam um problema em comum: os impactos socioambientais causados, principalmente, pelas construções de barragens. Entre todos os relatos que o Cimi recebeu para escrever esta reportagem, a maioria apontou esse tipo de empreendimento como um dos principais desafios enfrentados pelos povos indígenas.
Para o cacique Wagner Krahô-Kanela, da Aldeia Catàmjê (TO), esse último episódio de cheia tem a ver diretamente com os empreendimentos hidrelétricos. “Nós sabemos que o meio ambiente está mudando e essa cheia tem a ver com as barragens, com as modificações do meio ambiente. Tudo isso vem causando um grande impacto negativo dentro dos nossos territórios”.
Agnaldo Pataxó Hã-Hã-Hãe avalia que as enchentes que ocorreram na Bahia e em Minas Gerais também têm a ver com as “ações do homem” e com a construção de barragens. “O fato de as chuvas terem invadido algumas comunidades indígenas é um reflexo das ações do homem no meio ambiente, o rio só queria passar. Essas ações têm a ver, principalmente, com a construção das grandes barragens. Com a cheia dos rios, o volume aumenta e acaba atingindo também as comunidades indígenas”, explicou.
Ainda segundo a liderança, agora o momento é de conscientizar e criar estratégias para enfrentar novas enchentes. “Estamos dialogando, conversando com as comunidades que foram atingidas, fazendo uma análise de reconstrução para nos prepararmos para outra possível enchente. Além disso, agora é necessário trabalhar a conscientização da sociedade brasileira como um todo. Precisamos planejar e preservar o meio ambiente e criar mecanismos para evitar tragédias como essa”.
Em Minas Gerais (MG), a situação não é diferente: de acordo com Haroldo Heleno, ainda há muitos estragos causados pelas enchentes e pelos grandes empreendimentos, inclusive por barragens de rejeitos de mineração que transbordaram. “O problema de Minas Gerais é a opção que o governo fez pelo processo minerário. Minas Gerais é um queijo suíço, todo esburacado, e as consequências são as mais danosas. Temos situações complicadas como na aldeia Naô Xohã, que fica na beira do rio Paraopeba. Essa aldeia foi recentemente afetada pelo crime cometido pela Vale há três anos e que até hoje não resolvido”.
O crime ao qual Haroldo se refere é o que ocorreu no dia 25 de janeiro de 2019, no município de Brumadinho (MG). Era começo da tarde de uma sexta-feira quando a barragem da mineradora Vale se rompeu, abrindo espaço para um mar de lama destruir casas da região do Córrego do Feijão e tirar as vidas de centenas de pessoas e animais. Estima-se que mais de 270 pessoas morreram em decorrência desse crime, considerado por muitos como “premeditado”.
Três anos depois, indígenas Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe, da aldeixa Naô Xohã – lembrada pelo coordenador do Cimi Regional Leste –, estão entre os povos que ainda sofrem os impactos causados pelo rompimento da barragem.
“A aldeia Naô Xohã precisou ser esvaziada no dia 9 de janeiro, depois das chuvas intensas que atingiram Minas Gerais e que fizeram as águas do rio Paraopeba, já contaminado por metais pesados, invadir nossas casas e outras estruturas da aldeia. Depois de serem resgatados da cheia pelo Corpo de Bombeiros e abrigados em uma escola municipal de São Joaquim de Bicas, e sem condições de voltar ao território contaminado, a Vale negou a possibilidade de realocar as famílias em local seguro, afirmando que o território não está contaminado e que está em condições dos indígenas voltarem”, disseram os indígenas por meio das redes sociais da aldeia Naô Xohã.
Como uma forma de protestar contra a mineradora e reivindicar seus direitos, os indígenas interditaram na última terça-feira, dia 25 de janeiro de 2022, a linha do trem Fecho do Funil e a rodovia RFFSA, na divisa entre Brumadinho e João Joaquim de Bicas, ambos em Minas Gerais (MG).
De acordo com as lideranças dos povos da aldeia Naô Xohã, o objetivo da mobilização era dar visibilidade e repudiar os três anos de impunidade da Vale, responsável pelo crime contra o município de Brumadinho (MG). Além disso, os indígenas cobraram da mineradora uma posição sobre os reparos na aldeia e sobre a realocação das famílias atingidas pelas últimas enchentes.
Na última segunda-feira, dia 24 de janeiro de 2022, uma matéria veiculada pelo Jornal Nacional falou sobre o aumento da vazão de hidrelétricas do Rio São Francisco. Já são mais de 30 municípios de quatro estados brasileiros em estado de alerta.
Em razão das fortes chuvas que ocorreram em Minas Gerais – estado onde nasce o Rio São Francisco –, entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, toda a bacia recebeu um grande volume de água. Algumas cidades dos estados da Bahia, de Pernambuco, Alagoas e Sergipe já presenciaram os primeiros sinais: casas e estabelecimentos construídos na beira do rio foram invadidos pelas águas nos últimos dias.
No último dia 24, também a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) publicou uma matéria em seu site afirmando que, naquela data, o rio São Francisco, a partir do reservatório de Sobradinho (BA), apresentava o maior nível de água em seu curso natural dos últimos 13 anos, no trecho que atravessa o nordeste.
Ainda segundo a Chesf, a companhia “está realizando operação especial de controle de cheia do rio desde o dia 12 de janeiro, com aumento programado e gradativo da vazão, e vem mantendo diálogo com prefeituras, defesas civis, associações, Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco e outras entidades, para atuação desses órgãos quanto a ações de prevenção e orientação dos usuários”.
De acordo com Haroldo Heleno, a cheia do rio já está mobilizando povos indígenas do oeste da Bahia. “A cheia do Rio São Francisco está expulsando toda a comunidade do povo Kiriri de sua área. Estamos negociando com eles a compra de lona, porque já estão sendo deslocados para um assentamento. É possível que essa cheia também atinja os povos Pankararu e Potiguara, que também ficam no oeste do estado da Bahia”.
Reportagem: Marina Oliveira, da Assessoria de Comunicação do Cimi
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