O hábito pagar absurdos por coisas sem valor objetivo existe desde a Antiguidade. Esta é uma história dos objetos mais inúteis vendidos pelos valores mais astronômicos
Álvaro Oppermann Publicado em 26/06/2018, às 07h00
No século 1, romanos gastavam quilos de ouro para comprar vasos misteriosos. Mil e quatrocentos anos depois, um nobre foi capaz de trocar um castelo por um velho pedaço de tecido. Há muito tempo os seres humanos cultivam o hábito de gastar milhões por artigos estranhos. Se antes a beleza do objeto e a raridade do seu material contavam muito para valorizá-lo, hoje basta que ele tenha pertencido a alguém famoso. Mas, se parece bizarro que alguém pague milhares de dólares por um pouco do cabelo de John Lennon, saiba que, na Idade Média, as pessoas faziam de tudo para conseguir pedaços do corpo de pessoas consideradas santas.
A forma com que seres humanos avaliam os objetos mudou muito – alguns preços caíram para nunca mais se levantar, outros subiram às nuvens. Mesmo gente que achava estar pechinchando, como o holandês que comprou Manhattan dos nativos americanos, acabou se dando mal. Confira, a seguir, exemplos que contam um pouco da história das traquitanas e das quinquilharias.
O que fazia um romano abrir o bolso (ou a algibeira, já que as roupas da época não possuíam bolsos)? No primeiro século da era cristã, o sonho máximo de consumo dos cidadãos de Roma eram os vasos murrínios. Desde que o general Pompeu trouxe o primeiro deles da Caramânia (na atual Turquia) para a cidade, em 45 a.C., eles excitaram a imaginação dos romanos. Muita gente pagou fortunas por eles – a começar pelo imperador Nero.
Por volta do ano 60 d.C., uma caravana comercial vinda da Síria, com forte escolta da guarda imperial, chegou a Roma. Nero já estava impaciente. Numa operação envolta em sigilo, levou-se ao palácio um caixote que continha um único objeto. Ao abrir a embalagem, Nero se maravilhou. Era um vaso murrínio. O imperador nunca vira nada igual, e por ele desembolsou no ato 1 milhão de sestércios, a moeda da época – talvez tenha sido a maior transação comercial da história até então por um único objeto. Era uma montanha de dinheiro, que poderia garantir o soldo de um centurião (o comandante da infantaria do exército) por 83 anos.
Os vasos murrínios eram feitos de um mineral desconhecido no Império Romano. As paredes das peças eram finíssimas e sua aparência, leitosa. De tão delicados, chegavam a ser translúcidos. Vinham do longínquo Oriente e, rezava a lenda, apenas artesãos de mãos habilíssimas conseguiam fabricá-los. Dependendo do ângulo, refletiam todas as cores do arco-íris. O historiador Plínio, o Velho, dizia que as peças eram o objeto mais precioso da época. O escritor Petrônio, autor de Satyricon, pagou 6 quilos de ouro por uma taça do material. Quando Nero o condenou à morte (eram inimigos), Petrônio preferiu o suicídio, mas antes espatifou sua preciosa taça murrínia – o imperador, ao que parece, já tinha crescido o olho para ela, e o escritor não queria dar esse gostinho a ele.
Mas a fragilidade das peças acabou sendo sua danação: não sobrou nenhum vaso murrínio da época para contar a história. Muito se especulou sobre o material usado em sua fabricação. No século 19, o arqueólogo inglês William Gell decifrou o enigma. Foi uma baita decepção. Baseando-se numa descrição feita pelo poeta latino Propércio, do século 1, Gell descobriu que os vasos eram feitos de porcelana, desconhecida então no Ocidente – mas que já existia aos montes na China. Ou seja, a taça de Petrônio, que lhe custara algo como 250 mil reais, pode ser comprada hoje na rua 25 de Março, no centro de São Paulo, por menos de dez reais.
Na Idade Média, não havia muito risco de se cair em armadilhas como a dos vasos murrínios: os rígidos costumes cristãos condenavam como idolatria qualquer tentativa de venerar artigos que não fossem os de uso exclusivamente religioso. Para o austero aldeão europeu, adorar um objeto era coisa de pagão – e pagão ia para o inferno. Mas não demorou muito tempo para que os comerciantes encontrassem um modo de ludibriar os homens medievais. Usando a religião, claro. Mais especificamente, as relíquias – objetos associados a pessoas tidas como santas, ou então os próprios pedaços dos corpos dessas pessoas, que teriam supostos poderes milagrosos.
A Igreja tentou, em vão, proibir o comércio das relíquias. No século 9, um diácono de Roma chamado Deusdona, ao notar o fervor popular nas romarias para ver em caixão aberto São Marcelino (que, dizia a lenda, mesmo morto, não apodrecia), teve uma ideia. Trocou o cadáver do santo pelo de um mendigo, recentemente falecido, cujos traços lembravam os do santo, e vendeu o corpo de Marcelino para um nobre alemão chamado Eginhard. O preço da transação foram algumas moedas de ouro, um casaco de pele e garrafas de bom vinho.
A venda de relíquias, cheia de golpes como o dado por Deusdona, logo se tornou regular em Roma e outras cidade europeias. Na cidade sede da Igreja, o que não faltava eram sepulturas de santos e mártires. O problema é que, com o alto valor atingido pelas relíquias, elas começaram a ser furtadas dos templos. Foi por causa disso que, em 1255, inventou-se um meio de impedir os sumiços: o relicário. Essa belíssima peça medieval para guardar relíquias não tinha o intuito de servir como mostruário. Era, isso sim, uma espécie de caixa-forte.
Um dos itens mais procurados pelas igrejas europeias era a madeira da Santa Cruz, na qual Jesus Cristo teria sido crucificado. “O filósofo Erasmo de Roterdã, no século 16, espantava-se: havia tantos pedaços da cruz espalhados pela Europa que seriam suficientes para construir um navio”, escreveu o historiador americano Patrick Geary no livro Furta Sacra: Thefts of Relics in the Central Middle Ages (“Furta sacra: roubos de relíquias na Idade Média Central”). Os religiosos também disputavam a tapa frascos com o que seriam amostras de líquidos santos: o leite materno da Virgem Maria e o sangue e as lágrimas de Jesus. Houve também, pasme, quem quisesse comprar o suposto prepúcio do fundador do cristianismo, removido na circuncisão.
Mas nenhum objeto foi alvo de tantas disputas quanto o Santo Sudário, o pedaço de tecido que teria envolvido o corpo de Jesus após a crucificação. A mortalha veio a público em 1357, quando foi deixada como herança pelo cavaleiro Geoffroy de Charny à esposa. Inicialmente, ele ficou exposto na pequena igreja de Lirey, na França. O bispo local proibiu sua veneração, mas não adiantou. Em alguns anos, Lirey ficou abarrotada de romeiros. Em 1389, o bispo Pierre D’Arcis, de uma diocese rival, escreveu ao papa dizendo que a relíquia era uma fraude, “pintada por artesãos espertos para aumentar o fluxo de peregrinos crédulos a Lirey”. Em 1453, o Sudário foi vendido para um nobre italiano, o duque Luís de Sabóia. O preço? Um castelo na cidade francesa de Varambon.
Diante de casos como o do Sudário, Patrick Geary questiona: “Por que alguém venderia uma relíquia milagrosa? A resposta para mim é clara: porque tal relíquia perdeu seus poderes, ou nunca os teve”. Outra resposta possível é a de que a crença generalizada na santidade de uma relíquia já confere muito poder ao dono. No caso do Sudário, a aquisição acabou sendo um golpe de mestre: até o século 20, sua posse gerou um enorme prestígio para a família Sabóia na nobreza européia. Sob a influência do suposto manto de Cristo, um descendente de Luís de Sabóia, Vitório Emanuel, liderou a unificação da Itália em 1861.
Diante de uma conquista como essa, o castelo de Varambon até que não fez falta na ascensão – milagrosa, por que não? – dos Sabóia. Em 1983, o Santo Sudário foi doado pela família ao Vaticano. Ainda surgem debates acalorados sobre sua autenticidade. Mas não importa muito se esse pedaço de pano é o que parece: a fé mantém o valor dele incalculável.
Em 1626, segundo uma conhecida história, os índios canarsies trocaram uma ilha inteira por miçangas, espelhinhos e facas, oferecidos pelo navegador e mercador holandês Peter Minuit. O forasteiro batizou o lugar, na América do Norte, de Nova Amsterdã. Hoje a ilha se chama Manhattan e abriga a parte mais nobre da cidade de Nova York, nos Estados Unidos. As bugigangas oferecidas por Minuit valiam 60 florins, a antiga moeda holandesa. Hoje, esse valor corresponde a pouco mais de 70 dólares.
Aparentemente, foi um senhor negócio. De acordo com a Biblioteca Pública de Nova York, o valor das áreas residenciais e comerciais da ilha chegava a 47 bilhões de dólares no início dos anos 1990. Minuit, obviamente, não viveu o suficiente para ver nada disso. Morreu em 1638, num tufão no Caribe, a bordo de um navio que transportava tabaco para Londres.
Você deve estar achando que Minuit era um baita espertalhão, certo? Bem, foi assim que ele entrou para a história. Mas é muito provável que ele é que tenha sido enganado pelos canarsies. Em primeiro lugar, eles não habitavam a ilha. Seminômades, costumavam ocupar em certas épocas do ano a área no continente onde fica hoje a cidade de Nova Jérsei, vizinha de Nova York. Ali, ninguém se atrevia a entrar. “Os canarsies costumavam fazer emboscadas para os mercadores holandeses que aportavam na região da sua aldeia”, diz Jeffrey Stanton, especialista na história nova-iorquina.
Quem passava algumas épocas do ano acampado em Manhattan era outra tribo, a dos wapinger, que se instalava ao norte da ilha. Os astutos canarsies venderam para Minuit o que não lhes pertencia. Aliás, eles nem acreditavam que a ilha pudesse de fato pertencer a alguém: segundo eles, todas as terras do mundo haviam sido dadas aos homens pelo Grande Espírito e não existia essa coisa de propriedade privada. Em 1674, depois de uma sequência de guerras entre a Holanda e a Inglaterra, os britânicos tomaram Nova Amsterdã para si. No fim das contas, o preço de 60 florins se mostrou salgado demais para os holandeses. Custou-lhes a expulsão e a morte.
Com a explosão da indústria da música e do cinema, no século 20, os leilões de artigos ligados a celebridades se tornaram extremamente populares. O resultado? Nunca tanta gente pagou tão caro por coisas ordinárias. Em 2012, um leilão realizado em Stockport, na Inglaterra, colocou a venda uma cueca usada pelo cantor Elvis Presley durante shows realizados no ano de sua morte. O item, vendido por aproximadamente 5 mil libras, estava sujo. Em 2005, durante um leilão na Espanha, um colecionador de Hong Kong torrou 4 mil dólares por um chumaço de cabelo de John Lennon, dado originariamente de graça a um fã em 1964.
O comportamento do comprador de leilões é enigmático. Afinal, qual a finalidade de gastar tanto dinheiro em uma coisa que pertenceu a outra pessoa? “Quando você se vicia em colecionar informações sobre sua celebridade favorita, precisa de coisas cada vez mais excepcionais para se sentir ligado a ela”, diz James Houran, co-autor de Celebrity Worshippers: Inside the Minds of Stargazers (“Adoradores de celebridades: dentro das mentes dos observadores de estrelas”).
Existe até os casos em que celebridades gastam fortunas para adquirir artigos ligados a outras celebridades. Um dos exemplos mais ilustres aconteceu em 1985, quando o cineasta americano Steven Spielberg pagou, num leilão, a soma de 20 mil dólares pelo pequeno trenó utilizado no clássico Cidadão Kane, do também americano Orson Welles, que morreu naquele mesmo ano. “Vou colocar o trenó junto da minha máquina de escrever, para sempre me lembrar de que a qualidade no cinema deve vir em primeiro lugar”, disse o cineasta na época – ironicamente, Welles havia tentado trabalhar com Spielberg anos antes, mas o fã nunca topou a parceria.
“Existe um monte de gente entediada e solitária por aí, e esses objetos são as coisas mais preciosas da vida delas”, diz a consultora Lynn Dralle, autora de um livro curioso chamado The 100 Best Things I´ve Sold on eBay (“As 100 melhores coisas que eu já vendi no eBay”). Quem vai a leilões de objetos de celebridades não busca algo muito diferente dos romanos que compravam vasos murrínios: ao adquirir coisas tão caras, eles procuram algo que dê sentido às suas vidas. É como diz Cláudio Moreno, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na conclusão de uma crônica sobre os vasos publicada em janeiro no jornal Zero Hora: “Tendo desaprendido o prazer das coisas simples e perenes, os homens entregam-se à busca incessante do novo, do raro e do exclusivo, sem perceber que, ao fim e ao cabo, terão passado a vida toda catando lixo”. E bota lixo nisso: em agosto de 2004, um suposto chiclete mascado pela cantora americana Britney Spears foi posto à venda no eBay por incríveis 99 dólares – ninguém pôde comprá-lo, pois a negociação foi tirada do ar.
Quando o alemão Johannes Gutenberg inventou a impressão moderna, em 1455, ele produziu 200 exemplares da Bíblia. Eles não eram exatamente baratos – valiam cerca de três anos do salário de um professor da época. Mas em 1911, quando o colecionador americano Henry Huntington pagou 50 mil dólares por uma dessas Bíblias, elas viraram artigo de luxo. Em 1980, outro exemplar posto à venda alcançou o patamar de 5,5 milhões. “Uma edição completa, se fosse a leilão hoje, alcançaria facilmente os 100 milhões de dólares”, diz Kenneth Gloss, negociante de livros raros de Londres.
O brasileiro olho-de-boi, de 1843, é o segundo selo mais antigo do mundo. O culto a ele começou em 1916, quando Charles Lathrop Pack, colecionador de Chicago, pagou 770 mil dólares por uma tira com três selos: dois de 30 réis e um de 60 réis. O alto preço se explica pela escassez: dos mais de 2 milhões de exemplares impressos do selo, só sobraram pouco mais de 6 mil (como há muito mais Penny Blacks por aí, um deles bem conservado não custa mais que 3 mil dólares). “Um olho-de-boi varia de 70 reais a 2,3 milhões de reais, dependendo de vários fatores, como o estado de conservação”, diz o filatelista brasileiro Peter Meyer.
Em 2002, uma moeda de 5 centavos americanos – 1 níquel, como eles dizem – fabricada em 1937 foi leiloada por 30 mil dólares. Motivo? Um erro de cunhagem. O búfalo desenhado no seu verso tinha três patas em vez de quatro (nem os funcionários do US Mint, fabricante das moedas nos Estados Unidos, souberam explicar o que aconteceu).
Furta Sacra: Thefts of Relics in the Central Middle Ages, Patrick Geary, 1991
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