Em um período que a ditadura militar já havia chegado ao fim, Je Vous Salue, Marie, filme de Jean-Luc Godard, causou controvérsia no país
Isabelly de Lima Publicado em 18/02/2024, às 16h00 - Atualizado em 16/03/2024, às 11h36
Durante a ditadura militar (1964 - 1985) o Brasil foi tomado por grande repressão política, censura e violações dos direitos humanos, sendo uma das épocas mais conturbadas da história recente do país. O cinema, como forma de expressão artística e veículo de mensagens, não escapou da censura do regime.
A DCDP, o órgão ligado ao Departamento de Polícia Federal, era responsável por analisar e censurar filmes, peças de teatro, músicas e outras formas de expressão cultural. O objetivo era controlar o que a população poderia assistir e ouvir, silenciando críticas ao regime e ideias consideradas subversivas.
Com isso em mente, é curioso imaginar que um longa-metragem tenha passado por tantas etapas de aprovação apenas para ser censurado logo depois, não é? Algo que se manteve após o fim da ditadura, por um tempo, foi a censura prévia, sistema cuja aprovação de produções audiovisuais ainda era necessária.
Por mais controverso que possa soar, houve um filme que passou por todas as etapas da censura prévia, no entanto, não escapou da censura.
Ainda após o fim da ditadura, a censura prévia ainda era uma realidade no Brasil. Em 1986, durante o governo de José Sarney, o filme "Je Vous Salue, Marie" ("Eu Vos Saúdo, Maria", em português), do renomado diretor Jean-Luc Godard, se tornou um símbolo da luta pela liberdade de expressão.
A história do filme, lançado um ano antes, é simples, mas poderosa: Marie (Myriem Roussel), uma jovem estudante, engravida misteriosamente. Joseph (Therry Rode), seu namorado, a acusa de infidelidade, pois, o casal não mantinha relações sexuais há dois anos. A partir daí, a trama explora temas como fé, sexualidade e a maternidade de forma inovadora e provocativa.
No Brasil, o filme foi recebido com grande polêmica. Cenas de nudez, reflexões sobre sexo e religião e a representação de Jesus como uma criança mimada despertaram a fúria de grupos religiosos, que pressionaram o governo a censurá-lo.
Em meio à controvérsia, cartas e abaixo-assinados foram enviados ao presidente. Católicos indignados consideravam o filme um sacrilégio e uma ofensa à fé. O então presidente, José Sarney, descrito como um homem "profundamente religioso", cedeu à pressão popular e proibiu a exibição de "Je Vous Salue, Marie".
A justificativa oficial foi a de que o filme feria os princípios religiosos da maioria da população brasileira. O porta-voz da Presidência, Fernando César Mesquita, declarou que Sarney, "por ser um homem profundamente religioso", não poderia contrariar o "espírito cristão do povo brasileiro".
O governo brasileiro também se baseou em posicionamentos religiosos para justificar a então censura. O papa João Paulo II e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) classificaram o filme como prejudicial à fé cristã, alegando que deturpava e vilipendiava a figura sagrada da Virgem Maria.
A decisão do governo gerou indignação entre artistas e intelectuais, que defendiam a liberdade de expressão e criticavam a censura como um resquício da época autoritária. Apesar das críticas, a censura prévia foi mantida e o filme permaneceu proibido no país.
A curiosidade do público, porém, só aumentava. Instituições como a PUC de São Paulo e a USP tentaram exibir o filme, mas as cópias foram confiscadas pela polícia, como informado pela CNN Brasil.
A batalha pela exibição de "Je Vous Salue, Marie" só terminaria em 1988, com a promulgação da nova Constituição brasileira. A censura prévia foi abolida, abrindo caminho para a livre expressão artística e cultural no país.
"Je Vous Salue, Marie" finalmente pôde ser visto pelo público brasileiro, tornando-se um símbolo da luta pela liberdade de expressão e um marco na história da censura brasileira.
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