Jock Hume, violinista do Titanic - Domínio Público
Titanic

A 'vida dupla' do violinista que foi vítima do naufrágio do Titanic

Jock Hume fez parte da banda que morreu no naufrágio do lendário RMS Titanic; e boa parte de sua vida ficou esquecida por quase um século

Fabio Previdelli Publicado em 29/06/2023, às 19h00 - Atualizado em 18/01/2024, às 10h58

A história oficial a maioria conhece: no dia 15 de abril de 1912, o lendário RMS Titanic colidiu contra um iceberg dias após sua viagem inaugural saindo do porto de Southampton, na Inglaterra, com destino à Nova York, nos Estados Unidos.

Os destroços do navio, que tinha fama de 'inafundável', se encontram a cerca de 700 quilômetros ao sul da cidade de St. John's, no Canadá; em uma profundidade de 3.800 metros no fundo do Oceano Atlântico.

De acordo com dados do Museu Smithsonian, nos EUA, 1.522 passageiros e tripulantes morreram na tragédia. Enquanto o History aponta que 706 pessoas foram resgatadas de um dos naufrágios mais emblemáticos da história.

Fotografia do Titanic partindo de Southampton, no Reino Unido, em 1912/ Crédito: Domínio Público

 

Mas os pormenores das vidas das vítimas ainda são desconhecidos por muitas pessoas. Uma das histórias mais curiosas em relação a eles vêm de Jock Hume, violinista que morreu no naufrágio. O que chama a atenção não é a qualidade inquestionável do músico, mas sua 'vida dupla' que permaneceu desconhecida por mais de um século.

A última música

Como mostrado no clássico Titanic (1997), de James Cameron, os músicos do Titanic permaneceram tocando durante o naufrágio da embarcação — quando os últimos sobreviventes já havia partido nos botes salva-vidas.

+ Os músicos continuaram tocando enquanto o Titanic afundava?

Enquanto o convés inclinado era tomado pelá água, oito músicos tocavam os últimos acordes de 'Nearer, My God, To Thee', conforme acredita John Graves, curador do National Maritime Museum em Greenwich.

Hino tradicional protestante do século 19, a letra foi escrita por Sarah Flower Adams e é baseada em Gênesis 28:11-19, que narra a história do sonho de Jacó. Assim, eles esperavam trazer o último conforto aos homens, mulheres e crianças que foram deixados pela própria sorte.

No fim, o maestro acenou sua cabeça aos colegas e disse: "Senhores, obrigado a todos. Mais um desempenho louvável. Boa noite e boa sorte". Os músicos apertaram as mãos enquanto as águas geladas consumiam seus corpos.

Uma dessas pessoas era o violinista Jock Hume, de apenas 21 anos. Hume deveria estar inconsolável ao saber que jamais veria novamente sua namorada, Mary Costin, a garota que carregava seu filho no ventre e com quem ele planejava se casar ao retornar à terra firme.

Mary Costin e sua filha, Johann Law Hume, mãe de Christopher Ward/ Crédito: Arquivo Pessoal

 

Jock tocava em navios de passageiros desde que tinha apenas 15 anos e sua memória passou a ser alvo de estudo por seu neto, o jornalista britânico Christopher Ward. Até 2015, Ward achava que sabia tudo o possível sobre o passado de seu avô, mas o Titanic ainda reservava surpresas.

O passado em destroços

Naquele ano, um colecionador de memorabilia do Titanic havia comprado algumas páginas de livros antigos sobre a embarcação. Eram registros de nomes de pessoas beneficiadas pelo fundo criado para ajudar os dependentes das vítimas.

Grande parte dos documentos do Titanic Relief Fund haviam sido incinerados e outros foram parar num lixão — e foi justamente parte destes que foram recuperados. Uma entrada mostrava que Mary recebia uma compensação pela morte de Jock.

Quando Christopher Ward ligou para Senan Molony, autor de vários livros do Titanic, uma surpresa maior apareceu: "Tenho uma página que pode ser ainda mais interessante para você", disse Molony.

Recorte de jornal que fala sobre o fundo para familiares da banda do Titanic/ Crédito: Domínio Público

 

Na mesma página apareciam pagamentos feitos a uma mulher chamada Ethel McDonald: "McDonald, Sra. Ethel — The Colonial Bank, Kingston, Jamaica. No dia 1º do primeiro mês de cada trimestre, ir ao Banco Colonial para retirar o pagamento…".

Assim como Mary Costin, Ethel recebia o mesmo valor. O número do processo de entrada também era o mesmo: 689. Logo, Ward passou a ligar os pontos. Longe de ser fiel à sua amada, o violinista teve um filho na Jamaica com Ethel. Mas o que aconteceu com eles?

Isso significava que eu poderia ter primos ainda morando na Jamaica. De repente, nada era mais importante para mim do que rastreá-los", escreveu Christopher em artigo publicado no Daily Mail.

Uma nova vida do Titanic

Em busca de esclarecer detalhes desta história, Christopher Ward contactou um genealogista jamaicano chamado Donald Lindo. O britânico revelou o pouco que sabia: antes de embarcar no Titanic, seu avô havia passado três meses no país caribenho; onde se apresentou com uma orquestra no conceituado Constant Spring Hotel.

Jock Hume havia desembarcado na capital Kingston no dia de natal de 1910, deixando o país em abril. Com o curto período de tempo, Lindo encontrou o registro de nascimento de um filho de Ethel: Keith Neville McDonald, nascido em 2 de novembro de 1911.

A mulher havia trabalhado como garçonete e seu filho tinha um espaço em seu registro na área destinada ao 'nome do pai'. "Você percebe, não é, que Ethel teria sido uma pessoa de cor", disse Donald. "Nenhuma mulher branca teria trabalhado como garçonete na Jamaica em 1911."

Cheio de dúvidas e um passado para resgatar, Ward foi até a cidade dois dias depois. Enquanto viajava até a Jamaica, diversos questionamentos vinham à sua cabeça: Jock havia assumido a responsabilidade da criança? Visto que Ethel recebia uma pensão, a resposta parecia óbvia. Mas e sua avó, sabia do caso? Eles ainda estavam vivos?

Ao se encontrar com o genealogista, os dois passaram dias buscando registros e documentos sobre Ethel e Keith. Descobriram que a casa da família fora destruída por um incêndio em 1969 e, desde então, elas pareciam ter sumido do mapa.

Já admitindo a derrota, Ward decidiu visitar o local onde ficava o Constant Spring Hotel. O destino parecia a seu favor. Luxuoso hotel em 1910, o Constant Spring caiu em tempos de vacas magras e seu espaço acabou sendo vendido para as Irmãs Franciscanas de Allegany, onde instalaram a Escola Secundária Imaculada Conceição — uma das melhores escolas para meninas dos tempos atuais.

O último check-out do antigo hotel havia sido feito há 70 anos, mas o espaço mantinha seu passado colonial. Ao fim de uma turnê pelo local, Christopher Ward ouviu uma orquestra que tocava em um prédio próximo.

Os 90 músicos, que ensaiavam para uma apresentação, receberam Ward no espaço. O britânico contou sua jornada até o país e como ele buscou refazer os passos do avô. "Que coincidência estranha", disse uma musicista que surgiu do meio do grupo.

"Meu nome é Hume também: Gabi Hume. Meu pai sempre falava sobre a ligação de nossa família com o Titanic. E, ainda mais estranho, seus olhos são exatamente da mesma cor dos de meu pai", relatou a menina.

Christopher Ward ao lado de Gabi Hume/ Crédito: Arquivo Pessoal

 

"Qual é o nome de batismo do seu pai?", questionou Ward. "Neville", Gabi respondeu. "Ele está morto agora... morreu quando eu tinha oito anos".

E o do seu avô?", tentou se aprofundar o britânico. "Keith Neville Hume", retrucou a moça. Tudo havia ficado claro, Keith McDonald havia mudado de nome para homenagear seu pai.

No dia seguinte, Ward conheceu a mãe de Gabi, Tânia, uma empresária de sucesso. Ainda sem revelar o que sabia, em busca de evidências, Christopher ouviu como Tânia conheceu o pai da musicista, Neville Hume, em 1988: "Um ano desastroso para a Jamaica", ela disse, "porque o furação Gilbert devastou a ilha". 

Ela ainda recordou que Neville havia brincado, no primeiro encontro dos dois, que os desastres não eram novidade em sua família, visto que seu avô havia sido um músico do Titanic.

A informação havia sido contada pelo próprio pai de Neville, Keith. "Ele morreu em outubro de 1970, anos antes de Neville e eu nos conhecermos. Ele foi atropelado por um carro enquanto atravessava a estrada em Kingston. Ele tinha 59 anos", disse.

Keith Neville Hume havia nascido em 1911, assim como Keith Neville McDonald. Não havia como negar que eram a mesma pessoa. Tânia ainda disse que Neville costumava a tocar trompete, assim como seu pai. A música era algo de família.

Ward, então, após encontrar mais registros no cartório sobre o passado de Keith McDonald, ou Keith Neville Hume, decidiu revelar para Tânia e seus filhos (além de Gabriella, havia Vania e William) sobre a ligação parental que eles tinham. "Todos os três brilharam de orgulho", escreveu Ward.

E foi assim que minha família cresceu com três adolescentes charmosos, inteligentes e lindos. Perguntei-lhes: 'Já que o meio-irmão de minha mãe era seu avô, que parentesco tenho com vocês?'. Todos gritaram: 'Você é o nosso tio Christopher!' e me deram um abraço", finalizou.

 

 

 

 

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