Com mais de 600 anos, o fora da lei corajoso e benfeitor ainda inspira superproduções cinematográficas
Fernando Duarte Publicado em 29/11/2018, às 08h00 - Atualizado às 15h04
Num bosque particular junto à mansão Kirklees, em Dewsbury, no condado britânico de Yorkshire, os visitantes deparam com um monumento alquebrado: protegida por um cercadinho de ferro, a lápide contém um epitáfio de causar taquicardia nos interessados:
"Aqui, sob esta pedra,/ Jaz Robert, barão de Huntingtun/ Nenhum arqueiro foi tão bom quanto ele/ Chamavam-no de Robin Hood/ Fora da lei como ele e seus homens/ A Inglaterra jamais verá outra vez"
A fama do bandido benfeitor prospera desde meados do século 14, a partir de poemas, baladas e contos. Robin promovia uma campanha de roubos espetaculares a viajantes na floresta de Sherwood, em Nottingham (no condado vizinho a Yorkshire), e repartia o butim com os mais pobres, desafiando a autoridade do príncipe e depois rei João I (um dos mais controversos monarcas ingleses, que comandou a nação entre 1199 e 1216) e a do tirânico xerife local. Mas os turistas que fotografam o túmulo do arqueiro (gravado em inglês arcaico e datado de 1247) só podem estar certos de levar para casa o suvenir e uma suposição. A lápide foi erguida no século 18, baseada no marco construído no ponto onde teria caído a última flecha disparada pelo herói agonizante, vítima da traição da prima, madre superiora do antigo convento de Kirklees.
Uma versão da trama é narrada em As Aventuras de Robin Hood (1883), escrito e ilustrado por Howard Pyle. Doente, o arqueiro procurou tratamento médico contra uma febre persistente. A freira, porém, aplicou-lhe uma sangria fatal, interessada em agradar ao rei... João. Como assim? O monarca não morreu em 1216, três décadas antes? Sim, morreu, e de forma bem pior que seu arqui-inimigo: definhou com disenteria.
Além do bosque em Dewsbury, há várias teses distintas sobre o local da sepultura, a terra natal ou a real identidade de Robin. É por essas e muitas outras que rastrear as pegadas do fora da lei mais amado da literatura pode ser um feito comparável a suas incríveis e ousadas peripécias.
Mais de meio milênio após as primeiras citações conhecidas a seu nome, é inegável o fascínio que Robin Hood ainda provoca. Seja como metáfora para identificar medidas de redistribuição de renda, seja para apelidar iniciativas de banditismo social. Ou seja ainda porque a lenda acaba de voltar aos cinemas, com Robin Hood - A Origem, longa dirigido por Otto Bathurst. O filme se junta a uma longa lista de produções para cinema e TV baseadas nas vidas supostas e imaginárias do herói. Vidas paralelas que – esqueça as leis da geometria – muitas vezes se cruzam.
As primeiras pistas sobre o arqueiro indicam que seu nome, originalmente, referia-se mais a um arquétipo que a um sujeito em especial. Segundo o historiador James Clarke Holt, um dos maiores especialistas no medievo britânico, variações como "Robehod", "Hobehod", ou "Robert Hod, fugitivo" aparecem nos registros legais de algumas comunidades inglesas, em diferentes partes do país, já na primeira metade do século 13. Holt sustenta que isso indicaria o uso da figura para descrever comportamento criminal. Num desses registros, na documentação de Yorkshire referente a 1225/1226, Robert Hod é identificado como um inquilino do arcebispo de York, a quem devia dinheiro.
Na literatura, Robin foi citado inicialmente em 1377, no poema Piers Plowman, de William Langland. Trata-se de menção curta. Ele só vira protagonista na balada Robin Hood and the Monk ("Robin Hood e o Monge"), de 1450, já com o xerife de Nottingham como rival imediato e ambientada em Sherwood. O primeiro registro impresso preservado data de 1475: a coleção de histórias The Adventures of Robyn Hode ("As Aventuras de Robyn Hode"), que delineia seu comportamento heroico. Nas contas das crônicas medievais, da tradição oral e escrita, o bando do arqueiro tinha um efetivo de 20 a 140 homens, com destaque para João Pequeno (seu mais fiel companheiro, de quase 2 metros de altura) e o frei Tuck, um padre bonachão e rebelde.
O grupo foi se juntando aos poucos. Ele próprio, segundo uma das versões recorrentes, caiu na contravenção quase por acaso. Aos 18 anos, saiu da cidade natal de Loxsley para atender a um concurso de arco e flecha promovido pelo xerife de Nottingham. O prêmio: um barril de cerveja. Eis que na trilha encontrou 15 guardas florestais comendo e bebendo. "Ora, moleque, o leite da tua mãe mal secou em teus lábios e queres te colocar com arqueiros valentes nos campos de Nottingham, tu, que mal és capaz de esticar a corda de um arco de dois tostões?" À provocação do guarda, ele respondeu com um desafio. Receberia 20 moedas se acertasse um cervo a mais de 250 metros de distância. Os oficiais aceitaram a aposta e, estupefatos, assistiram-no atingir o alvo. O mais ébrio do destacamento, porém, se recusou a quitar a dívida e tentou eliminar Robin com uma flechada pelas costas. Ele respondeu com outra, esta mortal. A partir daí, aplicava sua própria lei na floresta. Bom, isso segundo a narrativa adocicada de Howard Pyle do fim do século 19. Em textos anteriores, não sobra um guarda sequer para contar a história.
Nas antigas descrições, Robin aparece ora ao lado dos comparsas, ora sozinho na mata. Varia de comportamento e tática, alternando-se entre bandido cruel (capaz de decapitar os inimigos e exibir as cabeças como troféus) e astuto. Para Stephen Knight, historiador da Universidade de Cardiff, há sentido por trás dessas contradições. "Quando falamos em Robin Hood, não estamos nos referindo apenas a um homem, mas sim a mais de 600 anos de desenvolvimento de conceitos e sentimentos. Ele representa ideais utópicos de justiça e liberdade. É uma construção social, um mito. Inventado e reinventado ao longo dos séculos", diz o autor de Robin Hood: a Mythic Biography ("Robin Hood: uma Biografia Mítica"). As narrativas que pintam o arqueiro mais agressivo são resultado de um contexto social turbulento.
A Inglaterra do século 14 é marcada pela devastação causada pela Peste Negra e pelo ônus da Guerra dos Cem anos contra a França. Havia ainda tensões internas devido ao crescente descontentamento com as condições de servidão feudal, o que resultaria na Revolta dos Camponeses (1381), principal insurreição inglesa. O estopim foi a criação de um novo imposto de 5 centavos de moeda por cabeça.
No século 16, porém, o perfil de Robin passa por uma espécie de suavização. Ele aparece nas crônicas como um nobre (barão) desterrado e renegado defendendo o poder de Ricardo Coração de Leão (que reinou entre 1189 e 1199) do usurpador príncipe João (quando seguiu para lutar na Terceira Cruzada, Ricardo deixou o irmão no comando de condados como Nottinghamshire). O arqueiro vira um bandido conservador - vítima dos abusos do xerife local e do príncipe, que lhe cassaram direitos -, que defendia a estrutura tradicional de poder. "A partir do século 17 surgem representações intercaladas e mesmo versões com um Robin pós-Reforma, inimigo da Igreja. O mais interessante é que ele se tornara um símbolo em momentos de opressão popular promovidos por reis absolutistas e nobres inescrupulosos ou resultado das agruras do capitalismo", afirma Knight.
A fama do arqueiro, inclusive, parece proporcional ao descontentamento do povo. Thomas Hahn, professor da Universidade de Rochester e um dos fundadores da Associação Internacional de Estudos sobre Robin Hood, insiste que a popularidade do personagem cresce no mesmo ritmo que a frustração da massa com a vida na sociedade capitalista. A lenda, diz ele, passa por um boom nos séculos 16 e 17, nos primórdios do sistema de acumulação de capitais. A difusão da imprensa de Gutenberg ajuda a alimentar o fenômeno: em 1601, havia pelo menos 200 menções ao fora da lei em poemas, contos e peças.
Nesse período, os agricultores enfrentavam o "fechamento" dos campos, cercados para reforçar a produção de lã, que se transformara no principal produto exportado pelos ingleses - e que formaria os alicerces da Revolução Industrial, em meados do século 18. Uma horda de sem-terra se misturava com outra sofrendo com o aumento dos aluguéis rurais, o que levou a uma série de minirrevoltas agrárias justamente nos séculos 16 e 17.
Cada conto aumentou um ponto ao longo de muito tempo. A inclusão de Lady Marian, por exemplo, a amada do arqueiro, é tardia. Ela surge em antologias de cantigas populares publicadas por volta de 1750, na forma de uma espadachim valente, e não da dama submissa da literatura do período vitoriano. Também no século 19, Robin Hood ganha contornos patrióticos. Torna-se personagem de Ivanhoé (1819), metido nas birras entre saxões e normandos (pendendo para a tradição anglo-saxônica) na trama ambientada no fim do século 12.
O romance do escocês Walter Scott reacendeu o interesse dos britânicos pelo período e criou uma "nova vida" para o arqueiro. "O apelo de Robin Hood vem de desejos primários por justiça e igualdade. Embora tal utopia tenha origens na Idade Média, ela é ampla e profunda o suficiente para povoar a imaginação de indivíduos de todas as épocas e lugares. No geral, ela representa posições anti-hierárquicas. É uma fantasia baseada no escapismo", diz Hahn.
De volta às origens, então. Na Inglaterra medieval, era melhor sonhar que cumprir as árduas e longas jornadas de trabalho no campo. Havia ainda os caprichos dos senhores feudais ou do soberano da vez (somadas as citações e referências históricas, o fora da lei teria atuado sob pelo menos cinco monarcas diferentes). Entre todos, a personificação do mal é João I. Não só porque tentou puxar o tapete do irmão. Sofreu derrotas militares e se envolveu numa desastrada queda de braço com Roma, o que resultou em prejuízos financeiros compensados com aumentos de impostos. Já o protótipo de rei justo, por quem Robin a certa altura admite até abandonar a marginalidade (e lutar na cruzada), é Ricardo I. Mas, na verdade, ele tentou destronar o pai e nem inglês falava.
Por si sós as florestas tentavam a imaginação popular. Estavam legalmente reservadas às caçadas da realeza. A punição para invasores incluía castigos como mutilações. Bastava ser flagrado perto de animais. Natural, então, que houvesse extremo ressentimento contra o código florestal e certa adoração àqueles capazes de burlar o sistema. As matas, claro, eram refúgio preferencial de bandidos.
Estudiosos encontram fontes de inspiração para o arqueiro nas histórias de alguns fora da lei e figuras históricas como William Wallace, herói escocês, ex-proprietário de terras que seria um dos líderes da 1ª Guerra de Independência (1296-1328). Há comparações desde o século 15. "São semelhanças fabulosas. Wallace e Robin, por exemplo, vestem-se de mulher para escapar dos inimigos numa de suas aventuras. Ambos roubavam e matavam nas estradas e lutavam contra o imperialismo inglês. Uma pista está na idealização de Robin como alguém disposto a brigar contra um rei usurpador, atrás de unidade nacional, o que tem muito mais a ver com a realidade medieval escocesa que a inglesa", diz Knight.
Em busca do Robin de carne e osso, historiadores também questionaram as faces do mito. No ano passado, o acadêmico australiano Julian Luxford contestou o bom-mocismo do arqueiro. Examinando um volume do Polychronichon (uma enciclopédia de história e teologia com origens no século 14), ele deparou com anotações de rodapé feitas por um monge católico sugerindo que o fora da lei e seu bando não eram queridos entre os pobres e oprimidos. Até porque também seriam suas vítimas, não apenas os ricos. "Em vez de citar o herói revolucionário que conhecemos, a inscrição fala em como um fora da lei chamado Robin Hood infestava Sherwood e outras áreas da Inglaterra [há quem diga que ele agia também na floresta de Barnsdale] com seus asseclas. Trata-se da primeira referência histórica real livre de folclore. A literatura original a respeito dele não tem menções sobre roubar dos ricos para dar aos pobres, fala de um ladrão trabalhando em causa própria", diz Luxford.
De fato, o bandido só começa a ser descrito como altruísta na trova de 1475 ("As Aventuras de Robyn Hode"). Nela, Robin empresta dinheiro a um cavaleiro em desgraça, depois promete premiar o próximo viajante que passar caso seja pobre. Também se recusa a roubar dos mais humildes. Mas seu discurso não revela indignação contra o sistema draconiano de impostos ou contra a falta de justiça social. "Há registros de que mais de um Robin existiu, mas tampouco há evidência de que ele ou eles tenham sido mais que meros mortais, longe da lenda construída na imaginação popular", afirma Luxford. Sua descoberta alimenta ainda o debate cronológico. A anotação do monge trata do período entre 1294 e 1299, o que sugere que o bandido teria atuado durante o reinado de Eduardo I (1239-1307), não sob Ricardo ou João.
A escassez de lastro histórico dá espaço a teses como a do historiador John Paul Davis, que publicou um livro sustentando que Sherwood foi escolhida por Robin e seu bando como morada porque eles seriam templários. Viviam escondidos para se proteger da determinação papal de exterminar os membros da ordem de cavalheiros que caíra em desgraça depois de se transformar numa poderosa organização militar. Os templários foram dissolvidos no início do século 14 e o então monarca inglês, Eduardo II, não costumava persegui-los como os colegas do continente. Para Davis, o arqueiro era mais sofisticado que um bandido comum. "A perseguição aos templários fez com que milhares de homens se transformassem em fugitivos da noite para o dia.
Conformavam-se em viver nos bosques da Inglaterra e, lá, mantinham o senso de organização militar e de orientação para o bem dos cavalheiros", diz o historiador. O revisionismo não poupou as preferências sexuais do herói. Tony Scupham-Bilton, historiador e ativista gay inglês, já sugeriu que o arqueiro teria sido inspirado em John Clawoe, poeta que lutou na Guerra dos Cem Anos e namorou o colega William Neville. Para Tony, há pistas de homossexualidade no fato de o bando viver na floresta, isolado de mulheres.
"O simples fato de ainda haver estudos sobre Robin é mais relevante que a discussão sobre o que é falso ou verdadeiro. Os nomes dele e do rei Arthur são os únicos de existência histórica não-comprovada que estão no dicionário biográfico da Universidade de Oxford", afirma Luxford. Para Stephen Knight, a autenticidade está justamente na dúvida: "Ele não precisa ter sido de carne e osso. Sua sobrevivência como construção cultural que resistiu por séculos lhe garante existência. Nesse sentido, Robin Hood vive". E como.
Robin Hood, James Clark Holt, Thames & Hudson, 1982
Robin Hood: A Mythic Biography, Stephen T. Night, Four Courts Press, 2005
As Aventuras de Robin Hood, Howard Pyle, Martin Claret, 2009
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