Para retomar o poder e unir a França no século 19, o imperador preparou o país contra a coalizão europeia que o tinha derrotado
Odair Chiconelli Publicado em 11/07/2021, às 10h00
Quase um ano depois da sua abdicação, Napoleão Bonaparte aportou no sul da França com 1500 homens para reconquistar Paris, aonde chegou em 20 de março de 1815, após 20 dias de viagem. A França voltara a ser uma monarquia em que bonapartistas, liberais independentes, monarquistas e as massas descontentes mantinhamse em constante conflito, embora a maioria apenas desejasse uma democracia liberal.
Surpreendidos pela ação audaciosa do imperador, tanto o governo quanto os grupos monarquistas tentaram coordenar esforços para impedi-lo de retomar o poder. Luís XVIII enviou exércitos para prendê-lo, mas soldados e comandantes se renderam ao fulminante carisma do antigo soberano.
Além de admiração e respeito, muitos altos oficiais lhe deviam suas carreiras militares, títulos e fortunas. Como resultado, o rei saiu de Paris em 13 de março, refugiando-se em Ghent, na atual Bélgica. “Nunca antes na história um imperador tinha ganhado um império apenas ao mostrar o seu chapéu,” diziam os comediantes parisienses.
Aparentemente, não era o imperador deposto que retornava ao poder, mas o homem que melhor personificava o espírito da Revolução no imaginário nacional, embora a emergente burguesia temesse uma reedição da radicalização dos anos 1793 e 1794.
Cinco dias após a volta de Napoleão a Paris, a Áustria, a Prússia e a Rússia, cujos governos autocráticos desejavam reprimir as ideias revolucionárias que ele representava, incluindo a meritocracia, a igualdade de direitos perante a lei, o antifeudalismo e a tolerância religiosa, voltaram a se unir à Grã-Bretanha para formar uma nova coalizão contra o restaurado império francês.
“Com ele, não poderá haver nem paz, nem trégua,” dizia a declaração de Viena. O imperador sabia que, apesar das vantagens materiais conquistadas e das glórias trazidas pelas vitórias militares, 23 anos de guerras tinham ceifado muitíssimas vidas de pais, maridos e filhos, e afetado a economia agrária da França.
Entretanto, sua sobrevivência política dependia do sucesso desta nova cartada: unir o país sob a sua liderança contra a iminente ameaça de invasão das quatro potências estrangeiras que o tinham derrotado havia menos de um ano.
Embora os franceses não apreciassem Luís XVIII, o irmão sucessor do rei que havia sido guilhotinado pela Revolução, pelo menos ele não tinha o menor interesse em guerras. Entretanto, tendo vivido 23 anos no exílio — na Inglaterra, Prússia e Rússia, era pouco conhecido pela população e professava ideias extremamente anacrônicas sobre fanatismo religioso e restauração de privilégios feudais, em pleno século 19.
O tempo era escasso e o desafio, imenso. Era preciso suavizar a imagem despótica do imperador por intermédio das emendas constitucionais propostas por Benjamin Constant, que incluíam a abolição da censura (reintroduzida por Luís XVIII), a liberdade religiosa, o estado laico, o direito das duas casas legislativas de alterar leis, o direito do poder legislativo de supervisionar o poder executivo, bem como a obrigatoriedade da aprovação prévia de recrutamentos pelas casas legislativas, dentre outras.
Embora Napoleão não apreciasse o que chamava de “jugo constitucional”, entendia o Ato Adicional à constituição como um mal necessário. Aprovado em plebiscito, ele transformou a França num efêmero império liberal. “Não confiem nessas reformas. Assim que ele estiver novamente à frente de um exército vitorioso, ele as esquecerá”, teria dito o conde de Lavalette, que tinha sido ministro do imperador por dez anos.
Com o objetivo de obter apoio popular e diminuir o número de desempregados em Paris, Napoleão criou um programa de obras públicas que incluía a construção de um novo mercado em Saint Germain, a reforma do Louvre e o reparo de fortificações em Montmartre, Belleville e Mont-Louis, dentre outras.
Ao mesmo tempo, o Ministério da Guerra contratou pessoas para reparar vestimentas, ferragens, equipamentos e armas. De repente, 9 mil homens tinham trabalho, comida e esperança. A maioria dos préfets, representantes do governo em departamentos (estados) ou regiões, demonstrava apatia ou hostilidade ao retorno do imperador, que teve de substituir 61 dos 87.
Da mesma forma, Carnot, o ministro do Interior, demitiu os prefeitos de todas as cidades com população inferior a 5 mil habitantes, mas logo recuou, submetendo-os, contudo, ao voto popular, o que resultou na reeleição de dois terços deles. Ter o apoio de prefeitos e préfets era fundamental.
Entretanto, em todo o país, a autoridade do novo governo imperial era desafiada ou ignorada. Deputados e funcionários públicos agiam de maneira ultrajante, com total impunidade. O presidente da Câmara de Deputados, por exemplo, conclamava seus eleitores em Bordeaux a não acatar as ordens do governo central, nem pagar impostos aos coletores imperiais, enquanto atos de rebelião cresciam assustadoramente.
Os relatórios que chegavam ao ministro Carnot diziam que “tudo estava entrando em colapso e se dissolvendo num estado de anarquia.” Nas igrejas, padres pregavam a revolta e a confrontação, enquanto bispos estimulavam a desobediência civil.
O país sabia que o imperador precisaria recrutar mais homens, muitos dos quais se juntariam aos estimados 900 mil, com idades entre 23 e 45 anos, que teriam sucumbido em suas batalhas. “Guerra, outra vez, apenas porque ele retornou à França?!”, diziam.
Cidades industriais e portos, tecelões, construtores navais e pescadores — todos resistiam ao imperador e à sua política militarista. Ao mesmo tempo, Carnot exortava os líderes do comércio, da indústria e da agricultura a melhorar métodos de produção e distribuição, criando ainda um boletim para explicar medidas de apoio à agricultura que, entretanto, tinha de ser lido pelos líderes das comunidades, já que a maioria dos camponeses era analfabeta, o que enfatizava a relevância do suporte dos prefeitos.
Em 10 de abril, ocorreram os primeiros ataques monarquistas contra quartéis de polícia e alvos civis, em várias cidades, especialmente no oeste do país. Embora a Grã-Bretanha fornecesse armas, munições e suprimentos a essas forças, cujo efetivo variava entre 15 mil e 30 mil homens, a maioria portava apenas armas de caça, lanças, porretes e forcados. Em maio, Napoleão enviou o general Lanarque à região com um exército de 20 mil homens para evitar uma guerra civil como a de 1793.
Embora a França enfrentasse graves ameaças internas, o foco do imperador era preparar o país para enfrentar a coalizão europeia. Assim, entre 21 de março e a segunda semana de junho, 95% das ordens, cartas e decretos endereçados a seus ministros e a outros altos funcionários públicos versavam sobre providências relativas aos preparativos para a guerra iminente.
Em abril, Carnot organizaria 2,2 milhões de homens, entre 20 e 60 anos, na Guarda Nacional, ampliando-a significativamente, além de ativar 204 batalhões com 144 mil homens. Ao mesmo tempo, fomentava um vigoroso programa de produção de armas e material bélico. Mais tarde, Napoleão reconheceria a capacidade administrativa do seu ministro do interior, concedendo-lhe o título de conde.
Apesar das dramáticas perdas humanas, a política expansionista do imperador também gerava frutos para os cofres franceses. Em 1812, por exemplo, a Bélgica, os Países Baixos, Luxemburgo, Parma, Turim, Gênova, Florença, Siena, Roma, Livorno, Spoleto, Hamburgo, Bremen, Aachen, Genebra e Nice pagaram 226 milhões de francos em impostos, representando mais de 25% do orçamento anual de 876 milhões.
Em 1815, o orçamento que Luís XVIII deixara somava 198 milhões de francos. As receitas provinham principalmente de impostos diretos e de taxas de registro de imóveis, além de receitas aduaneiras e de outras geradas pela loteria nacional e pelos serviços de correio. Entretanto, Napoleão precisava de pelo menos 320 milhões de francos para mobilizar e manter seus exércitos.
Diante da forte pressão do imperador, Mollien, o ministro do Tesouro, prometia monarquistas contra quartéis de polícia e alvos civis, em várias cidades, especialmente no oeste do país. Embora a Grã-Bretanha fornecesse armas, munições e suprimentos a essas forças, cujo efetivo variava entre 15 mil e 30 mil homens, a maioria portava apenas armas de caça, lanças, porretes e forcados.
Em maio, Napoleão enviou o general Lanarque à região com um exército de 20 mil homens para evitar uma guerra civil como a de 1793. A cavalaria francesa era maior e mais bem treinada, e a artilharia tinha uma vantagem de quase 100 canhões.
Entretanto, inveja e falta de cooperação entre os altos oficiais comprometiam os bem engendrados planos de ação do imperador, dando margem a falhas incompreensíveis. O Duque de Wellington, célebre comandante das forças britânicas, venceria a batalha com a ajuda da cavalaria prussiana, enquanto Napoleão voltaria à França, deixando para trás 25 mil soldados mortos ou seriamente feridos e 9 mil prisioneiros.
O armistício de 3 de julho incluiria o pagamento de 700 milhões de francos como reparações de guerra e uma nova ocupação do país pelos Aliados. Altos oficiais e políticos seriam condenados e um marechal, executado, como exemplo.
Os Bourbons voltariam ao poder. Impedidos de viajar aos Estados Unidos pela Marinha britânica, Napoleão e sua comitiva foram exilados na Ilha de Santa Helena, na costa ocidental da África, onde morreria em maio de 1821.
O escritor e político monarquista François René de Chateaubriand escreveu sobre ele: “Seu objetivo era o domínio universal, e ele o contemplou firmemente com olhos de águia e apetite de abutre (...) Sempre ambicioso e inexorável, nenhuma compaixão o aplacava, nenhum remorso o detinha, nenhum perigo o alarmava.
Não obstante sua índole despótica, Napoleão deixou um legado organizacional, incluindo o Código Napoleônico, o sistema judiciário, o Banco Central e o sistema financeiro nacional, bem como as academias militares e a modernização do sistema educacional, que contribuíram para moldar a França moderna e inspirar outros países europeus e suas colônias. “Se uma nação quer a felicidade, deve obedecer a ordens e permanecer calada,” teria dito ao Duque de Parma, seu conselheiro.
Em 2019, o francês Jean Christophe Bonaparte, sobrinho-trineto do imperador, e a alemã Olympia von und zu Arco-Zinneberg, sobrinha-tetraneta da sua segunda esposa, se casaram em Paris, 209 anos após o casamento de Napoleão e Maria Luísa, irmã de Maria Leopoldina e cunhada de dom Pedro I do Brasil. A saga dos Bonapartes segue, portanto, unindo nacionalidades europeias. Agora, pela vontade de indivíduos e povos.
Odair Chiconelli é professor de língua inglesa e pesquisador de história. Em homenagem ao bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte, escreveu uma trilogia sobre o imperador especialmente para a Aventuras na História. O texto acima é a terceira e última parte. Confira a primeira parte clicando aqui e a segunda clicando aqui.
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