E ainda hoje têm poder para chacoalhar o mundo
Reinaldo José Lopes // Edição 45, Maio 2007 Publicado em 28/11/2021, às 10h00
A passagem é uma das mais famosas da Bíblia. Diante da fé inabalável de seu discípulo Simão, Jesus teria declarado: “Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja. Darei a ti as chaves do Reino dos Céus”. A frase se tornou a base da autoridade dos papas.
Como sucessores diretos de Pedro, eles teriam de guiar todos os cristãos do mundo, seguindo os ensinamentos de Jesus. Os papas, entretanto, não se contentaram com os Céus. Acabaram se tornando donos das chaves de muitos reinos da Terra.
Apenas três séculos após a morte de Pedro, os pontífices deixaram de ser líderes de uma seita perseguida para virar interlocutores de imperadores. Com o tempo, tornaram-se senhores de seu próprio império, governando grandes extensões de terra na Itália e fora dela, só perdidas no século 19. Em sua busca por território e poder, negociando nos bastidores ou comandando exércitos pessoalmente, houve momentos em que os papas pareciam ser capazes de moldar o mundo como quisessem.
Hoje, 2 mil anos após a fundação do cristianismo, o papado só tem poder absoluto sobre um pequeno enclave dentro de Roma, o Vaticano. Mas, mesmo sem os vastos domínios de antigamente, um pronunciamento papal ainda pode fazer um bocado de diferença.
"As palavras do papa ecoam tanto nos salões do poder quanto nas alcovas dos fiéis”, diz Eamon Duffy, professor de História do Cristianismo da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. “O papado é a mais antiga instituição humana. E, provavelmente, ainda é a mais influente.” A seguir, você vai ver como esse poderio foi construído.
A antiga capital do Império Romano passou a abrigar uma comunidade cristã poucos anos depois da morte de Jesus. Tudo indica que Pedro e Paulo pregaram em Roma e lá foram executados, por volta do ano 64, numa perseguição desencadeada pelo imperador Nero. Segundo a tradição, Pedro teria sido o primeiro bispo da cidade.
Mas há indícios de que, por décadas, Roma teve mais de um bispo por vez. Foi só por volta do ano 200 que os cristãos romanos começaram a ser regidos de fato por um chefe único — centralização que também acontecia nas outras comunidades cristãs.
A comunidade cristã de Roma era especialmente respeitada por abrigar o túmulo dos mártires Pedro e Paulo e por sua reputação de sempre ter seguido a fé cristã original. Isso queria dizer que os outros bispos sempre ouviam seu companheiro de Roma com respeito especial, mas não tinham a menor obrigação de obedecê-lo. Ele já era chamado de papa — “pai”, em grego —, mas o mesmo título era aplicado a chefes cristãos de outras cidades, como Alexandria, no Egito, e Antioquia, na Síria.
Como o cristianismo ainda era uma religião fora da lei no Império Romano, a influência dos papas não se estendia à política. Isso começou a mudar em 312, quando o imperador Constantino resolveu aliar-se aos cristãos e liberar sua religião. Ele queria usar a nova fé como fator de unidade num império cada vez mais fragmentado.
Quem lucrou com isso foram os papas. Primeiro, financeiramente: o imperador bancou a construção de igrejas magníficas. Já o segundo empurrão que Constantino deu ao poder dos papas foi sem querer. Ele decidiu construir sua própria capital, Constantinopla (a atual Istambul, na Turquia), no leste do Império, onde foi morar.
A administração imperial baseada em Roma passou a trabalhar em parceria cada vez mais próxima com a Igreja — cujo local mais venerado já era o Vaticano, colina onde Pedro teria sido enterrado. Não demorou para que os papas se tornassem as principais figuras políticas de Roma, lado a lado com o Senado da cidade. A influência dos pontífices passou a se estender por toda a porção ocidental do Império.
No século 5, enquanto Constantinopla florescia, os domínios do Império na Europa estavam sendo atacados pelos invasores bárbaros, que acabaram chegando à capital. Quando Átila, rei dos hunos, ameaçou saquear Roma, coube ao papa Leão I negociar com ele. Em 452, ambos se encontraram em Mântua, no norte da Itália.
Há quem diga que o papa contou com a intervenção milagrosa de Pedro e Paulo. Outros, mais realistas, lembram que os hunos estavam esgotados e que o papa ofereceu um polpudo resgate. De qualquer modo, Átila deu meia-volta.
Três anos mais tarde, foi a vez de os vândalos atacarem Roma. Leão não pôde evitar saques, mas convenceu-os a não incendiar o local. O papado tinha virado a única força que se interpunha entre Roma e o caos. Quando a parte ocidental do Império se desintegrou, em 476, isso se tornou ainda mais verdadeiro.
Por mais de dois séculos, Constantinopla tentou virar o jogo contra os bárbaros e recuperar as antigas terras imperiais. Durante algum tempo, o Império do Oriente (hoje mais conhecido como Bizantino) conseguiu impor seu controle no sul da Itália, no norte da África e na própria Roma. Os imperadores bizantinos, porém, tinham a desagradável mania de meter o bedelho em assuntos religiosos. Na sua visão do cristianismo, o imperador estava acima de qualquer um, incluindo o papa.
É lógico que isso não pegou bem no Vaticano: “Existem, augusto imperador, dois poderes principais que governam o mundo: a autoridade dos bispos e o poder real. Dentre eles, o poder sacerdotal é muito mais importante”, escreveu o papa Gelásio, que ocupou o cargo de 492 a 496, ao imperador bizantino Anastácio. Nesse cabo de guerra, o papado acabou buscando um terceiro elemento para ajudá-lo: o reino bárbaro dos francos (embrião da atual França).
Na metade do século 8, os domínios bizantinos na Itália iam mal das pernas e Roma era ameaçada pelos lombardos, uma tribo germânica que havia fundado um grande reino em terras italianas. Em troca do apoio do Vaticano para sua nova dinastia, o monarca franco Pepino, o Breve, invadiu a Itália em 754, derrotou os lombardos e conquistou parte de suas terras. Para revolta dos bizantinos, Pepino doou tudo para o papado. Agora Roma era a capital de um território independente.
A relação entre Carlos Magno e os papas haveria de ser ainda mais próxima. Filho de Pepino, ele voltou a invadir a Itália e acabou de vez com o reino lombardo. No Natal do ano 800, o papa Leão III, às voltas com opositores dentro e fora da Igreja, coroou Carlos como imperador do Ocidente, em novo desafio a Constantinopla.
Além de ter seu próprio reino, o papa agora era considerado capaz de dar legitimidade sagrada a outros monarcas. No futuro, essa prerrogativa seria usada sempre que necessário — para coroar e derrubar reis.
No século 11, nada parecia ameaçar o poder do papado. Bem, quase nada. A expansão do Islã, religião criada no século 7, deixou o Vaticano em alerta. Se os papas controlavam um pedaço generoso da Península Itálica, muçulmanos já haviam conquistado territórios que iam da Espanha à Índia.
A tensão entre as duas religiões acabou virando guerra. Acuado pelos turcos, o imperador bizantino Aleixo pediu ajuda ao Ocidente. Diante disso, em 1095 o papa Urbano II conclamou os nobres europeus a reconquistar os lugares santos da Palestina que estavam sob o domínio do Islã.
Aos gritos de Deus vult —, “Deus o quer”, em latim —, milhares de europeus de todas as classes sociais e idades se puseram a marchar para o leste. Em 1099, após muito sofrimento, os soldados da Primeira Cruzada tomaram Jerusalém. Mantida à custa de diversas outras Cruzadas, a presença cristã no Oriente Médio perdurou por mais de 200 anos e deu origem a uma lenta revolução intelectual na Europa. De repente, os horizontes culturais e econômicos da cristandade tinham se ampliado.
Depois da guerra com os muçulmanos, veio o comércio: objetos de luxo e especiarias voltaram a circular da China até a Inglaterra, estimulando trocas que desembocariam, mais tarde, nas grandes navegações. E a parte da herança grega preservada pelo Islã deu combustível para que os europeus redescobrissem seu passado.
Tempos depois, os filósofos e artistas da Antiguidade foram os maiores inspiradores do Renascimento, a efervescência cultural que tomou conta do território italiano nos séculos 15 e 16. Apesar da influência pagã nessa nova onda, os papas também embarcaram nela. Pontífices como Pio II e Júlio II patrocinaram a arte mais esplendorosa que a humanidade já vira, feita por mestres como Michelangelo e Rafael.
Mas havia um lado obscuro nesse processo: o gosto artístico refinado era só mais um sintoma de que o papado tinha virado uma simples monarquia, como tantas que existiam Europa afora. Longe dos princípios morais pregados pela religião que comandavam, os papas passaram a ter tantas amantes e ser tão corruptos e violentos quanto qualquer rei secular.
“Apesar dos defeitos, os pontífices mais recentes são homens extremamente dignos perto dos papas do Renascimento”, diz o vaticanista espanhol Juan Arias, que foi correspondente em Roma de 1950 a 1992 e hoje trabalha para o jornal El País no Brasil.
Para quem está acostumado com plácidos senhores como João Paulo II ou Bento XVI, é difícil imaginar um papa em plena guerra, à frente de um Exército. Bem, foi isso o que fizeram alguns pontífices renascentistas, como Júlio II, que ficou no poder entre 1503 e 1513. Não é à toa que a famosa Guarda Suíça foi fundada por ele.
Esses cerca de 200 mercenários eram uma força de elite que protegia Júlio II dentro e fora do Vaticano. Usando uma armadura de prata, o papa liderou pessoalmente milhares de soldados e capturou as cidades italianas de Bolonha, Parma, Reggio e Piacenza.
O comportamento incompatível com os ensinamentos religiosos, aliado à corrupção da Igreja, acabou partindo a cristandade ao meio. Em 1517, o teólogo alemão Martinho Lutero deu origem à Reforma Protestante, que pregava uma volta à “pureza original” da fé cristã. As ideias dos reformadores se fixaram rapidamente nos países germânicos, e a Inglaterra também acabou entrando no movimento. Pela primeira vez desde Constantino, uma fatia considerável dos cristãos da Europa Ocidental não reconhecia mais a liderança do papa. E outros desastres ainda espreitavam o Vaticano.
Com o fim da Idade Média, os grandes Estados europeus foram, um a um, criando governos fortes e centralizados, sobrepondo-se às nobrezas regionais. Países como Espanha e França agora se viam como potências independentes, não apenas como membros da cristandade. Cada vez mais se difundia a ideia de que era preciso separar o poder político do poder religioso para que um governo moderno funcionasse bem.
Em 1789, a Revolução Francesa mostrou que a antiga ordem vigente na Europa estava mesmo com os dias contados. No lugar dos reis, pôs representantes do povo. No lugar da religião, pôs a razão. O Exército quase imbatível da França revolucionária, sob o comando de Napoleão Bonaparte, invadiu a Itália em 1796 e, três anos depois, tomou o Vaticano. O papa Pio VI foi levado prisioneiro.
Consta que ele teria pedido para morrer em Roma, ao que o general francês Berthier respondeu: “Para morrer, qualquer lugar serve”. Arrastado até Valence, na França, Pio VI não teve nem a honra de um enterro católico: “Óbito do cidadão Braschi (Giovanni Braschi era o nome de batismo de Pio), profissão: pontífice”, dizia o registro de sua morte na prefeitura. O papado só não acabou de vez porque uma coalizão de monarquias conseguiu derrotar Napoleão em 1815. As antigas terras papais na Itália voltaram às mãos dos pontífices. No entanto, ficou difícil desfazer o clima revolucionário.
Falava-se cada vez mais de uma Itália unida e democrática, na qual não haveria lugar para o papa. Foi nesse contexto que Pio IX subiu ao poder, em 1846. “Durante algum tempo, ele foi visto como uma esperança de conciliar o papado com o anseio por uma Itália unida”, diz dom Zeno Hastenteufel, bispo de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, especialista em História da Igreja.
Pio IX iniciou reformas democráticas no Vaticano. Mas, temendo perder poder, logo acabou com elas, atraindo a inimizade dos que queriam uma Itália unida. O resultado? A perda progressiva de regiões que os papas tinham governado desde a época de Pepino, o Breve. Em 1870 (ano em que, ironicamente, a Igreja declarou que o papa era “infalível”), Roma se tornou a capital do recém-criado Reino da Itália.
Como estadistas, os papas voltavam à estaca zero. Dentro da Igreja, ganhou força um movimento para que pelo menos o Vaticano se tornasse autônomo. A ideia amadureceu ao longo dos anos 1920. Péssima hora para fazer política: o fascista Benito Mussolini controlava a Itália. Mesmo correndo o risco de estar fazendo um pacto com o diabo, o papa Pio XI levou as negociações adiante.
Em 1929, a Igreja e o governo Mussolini firmaram o Tratado de Latrão, no qual o Vaticano foi reconhecido como Estado independente, o catolicismo foi declarado religião oficial da Itália e uma polpuda indenização foi paga pela perda dos antigos territórios papais. O dinheiro serviu para vitaminar o Banco do Vaticano, criado no fim do século 19 — e cujo nome oficial é IOR, Instituto para as Obras de Religião.
Graças a administradores competentes, o banco se tornaria acionista de empresas importantes dentro e fora da Itália — mas, nos anos 1980 e 1990, seria denunciado por conivência com fraudes e lavagem de dinheiro.
A autonomia do Vaticano estava garantida. E as relações do papado com os governos totalitários da Europa atingiriam um estágio ainda mais sombrio com Pio XII, que assumiu em 1939. No início dos anos 1930, quando ainda era o cardeal Eugenio Pacelli, ele negociou um acordo com o líder alemão Adolf Hitler. O resultado? O Partido do Centro, a legenda católica alemã, apoiou a lei que deu ao chefe nazista poderes de ditador, em 1933. Pessoalmente, Pio XII não simpatizava com os nazistas.
Mas seu comportamento durante a Segunda Guerra Mundial deu a impressão contrária: preocupado com a segurança dos católicos e dos membros do clero na Europa, ele evitou a todo custo condenar abertamente o Holocausto, mesmo sabendo do extermínio que acontecia nos campos de concentração.
E, ao fim do conflito, como muitos dos envolvidos no genocídio judaico na Alemanha e na Croácia eram católicos, eles ganharam uma inestimável ajuda do Vaticano: “O subsecretário de Estado de Pio XII ajudou essas pessoas a obter centenas de vistos para a Argentina”, conta o jornalista espanhol Santiago Camacho em seu livro 'Biografia Não Autorizada do Vaticano'.
O pedido de desculpas pela omissão diante dos atos bárbaros dos nazistas só veio com João Paulo II. Apesar de ter feito um pontificado conciliador, buscando inclusive se aproximar de outras religiões, ele também pesou a mão na política. Em 1978, quando o papa deixou de ser apenas o cardeal polonês Carol Wojtyla, metade da Europa vivia sob o regime comunista imposto pela União Soviética, incluindo a Polônia. Pouco mais de dez anos depois, nada restava do império vermelho.
Crítico do comunismo, João Paulo II transformava suas viagens à Polônia em desafios implícitos ao regime soviético. “O papel do papa na queda do comunismo foi, num certo sentido, restrito à Polônia”, diz o jornalista britânico Neal Ascherson, autor de dois livros sobre o país e testemunha dessas visitas.
"Mas foi como uma ponta de lança enfiada nas entranhas do império soviético, uma ferida que nunca sarou. Pela primeira vez, as pessoas tinham a coragem de admitir abertamente que viviam num país ocupado e a se ver como uma nação que podia gerir seu próprio destino", afirma Ascherson.
O sucessor de João Paulo II, escolhido em 2005, foi o cardeal alemão Joseph Ratzinger, Bento XVI. Após dois anos, ele havia dado mostras de que o Vaticano continuava capaz de catalisar eventos em escala mundial. Em setembro de 2006, uma palestra do papa na Alemanha colocou os países muçulmanos em polvorosa.
Aparentemente, ele teria afirmado que o Islã seria irracional. A Santa Sé colocou panos quentes na situação. Mas foi um claro exemplo de como o pedaço minúsculo de terra em que os papas reinam é totalmente desproporcional ao poder que ainda têm.
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