Edson Arantes do Nascimento nos deixou aos 82 anos, mas seu legado ultrapassa as quatro linhas
Fabio Previdelli Publicado em 31/12/2022, às 19h00
Entre todos os adversários que Pelé enfrentou em sua carreira, o mais implacável entre eles era a acusação de que o Rei do Futebol jamais foi um ser politizado — que nunca defendeu os interesses do povo ou lutou em prol dos negros.
Na Copa do Mundo de 1970, por exemplo, a Seleção brasileira foi usada como símbolo da campanha ufanista da Ditadura Militar. "Todos juntos vamos, pra frente Brasil, salve a seleção" era entoado por todo nosso território abafando os gritos dos torturados pelo regime.
Se eu disser que não sabia [que existiam torturas], que nunca fiquei inteirado disso, eu estaria mentindo. É uma mentira”, confessou o eterno camisa 10 aos diretores britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas, que produziram o documentário "Pelé" (2021), disponível na Netflix.
Mas a grande questão que fica é: se Pelé sabia dos horrores da Ditadura, por quais motivos nunca se opos à ela?
A grande verdade é que craque o fez, mas jamais suas lutas foram lembradas da mesma forma que suas glórias. Não seria nenhum absurdo dizer que Pelé sofreu algo parecido ao que aconteceu com Machado de Assis.
O maior escritor brasileiro de todos os tempos já foi retratado como "branco" por anos pela sociedade que não tolerava a ascenção dos negros. E Pelé, ainda hoje, é visto como subalterno — uma imagem enraizada graças aos jornalismo de sua época, que retratava apenas aos interesses dos homens de poder; que por nenhuma coincidência tinham o mesmo padrão: eram apenas brancos. Exemplos não faltam corroborar com isso!
Como já dito, o eterno camisa 10 foi um dos símbolos da Seleção brasileira tricampeã do mundo em 1970, no México; que por sua vez se tornou um dos símbolos do governo de Emílio Garrastazu Médici.
Pelé, porém, sempre foi cobrado por nunca se posicionar contra os horres da Ditadura, tendo seu comportamento visto com o oposto ao do lutador Muhammad Ali — que foi preso por se recusar a lutar na Guerra do Vietnã pelos Estados Unidos.
“Muhammad Ali sabia que, ao ser preso por deserção, ele não corria o menor risco de ser maltratado, de ser torturado. O Pelé não tinha essa garantia. Ditaduras são ditaduras, só quem viveu sabe onde é que arde”, afirma o jornalista Juca Kfouri no documentário de Tryhorn e Nicholas.
Mas Pelé mostrou sua insatisfação diante o regime. Afinal, logo após a conquista do tri, anunciou sua aposentadoria da Seleção, embora tivesse contrato vigente com o Santos até 1974, quando ocorreria a próxima Copa do Mundo.
À época, João Havelange — então presidente da CBD, hoje CBF — tinha aspirações de presidir a FIFA, algo que aconteceu futuramente. Mas, para isso, precisava de Pelé para reforçar sua busca por prestígio.
Os militares não gostaram nada da decisão do Rei, e até a consideraram como um ato de "desobediente esportiva". Havelange, aliás, segundo recorda matéria do Estadão, chegou a invocar um decreto-lei de número 5.199 que lhe outorgava o direito de “requisitar qualquer jogador” sujeito a “ser suspenso e sofrer outras punições legais, dentro da legislação” caso o mesmo recusasse o pedido.
Em 1972, Médici se encontrou com o camisa 10 e tentou convencê-lo a revogar sua decisão, mesmo após as duas partidas de despedida que disputou no ano anterior.
“Pelé não aceitou, ontem à tarde em Brasília, o último e mais importante apelo de quantos lhe foram feitos para voltar à seleção brasileira e participar da Mini-Copa: do presidente Garrastazu Médici, que o apresentou ‘na condição de representante da torcida brasileira’, durante audiência concedida no Palácio do Planalto ao jogador e à diretoria do Santos Futebol Clube", reportou o Estadão em janeiro daquele ano.
Foi então que o regime passou a tentar jogar Pelé contra o povo. O jornal Cidade de Santos, por exemplo, chegou a publicar uma série de charges, assinadas por J.C. Lobo, contra a figura do atleta. Com isso, como aponta reportagem do IG, o Rei até mesmo chegou a ser chamado de "ganancioso" por diversos torcedores.
A última cartada do regime ocorreu em 1974, quando a Copa realizada na Alemanha Ocidental batia a porta. Em nota enviada ao Estadão, Pelé voltou a afirmar que o governo tentava jogar a opinião pública contra sua imagem.
“Finalmente alguém conseguiu sintetizar em um só artigo toda a minha consciente decisão de não mais jogar pela seleção brasileira e os problemas que com ela estão criando, tentando, através de motivações absurdas, jogar a opinião pública contra a minha pessoa”.
Além disso, o Rei também começou a ser investigado pelas Forças Armadas, que temiam que ele entrasse na vida política como candidato pelo PDT, mesma sigla de Leonel Brizola. Anos mais tarde, aponta o IG, Pelé afirmou que só se aposentou da Seleção para boicotar a Ditadura que, em sua visão, “estava prejudicando demais o povo”.
A insatisfação política de Pelé continuou em 1984, quando estampou a capa da Revista Placar. Na ocasião, o Rei posou com uma camisa do movimento Diretas Já. A foto foi feita por Ronaldo Kotscho no morro Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Política se faz com e sem a bola. Com a bola, o rei do futebol parou duas guerras na África, decretou feriado no México. Sem a bola, com a camisa amarelinha e escudo da CBF pedindo DIRETAS JÁ e a redemocratização do país. Essa é pra quem diz que o Rei Pelé nunca se posicionou! pic.twitter.com/WBvDaBk6TP
— Gabriel Siqueira (@Gabrielpsg19) December 24, 2022
Antes disso, o camisa 10 já havia aparecido na televisão em uma matéria exibindo sua réplica da Taça Jules Rimet, que havia sido roubado em 1983. Como recorda o UOL, Pelé declarou: "O Brasil já foi tricampeão e ninguém tira. Agora essa aqui é para esse jogo duro que está para sair aí. Vai demorar um pouco, mas a gente chega lá. Pelas Diretas!".
O segundo ponto que pesa contra Pelé é sua suposta 'falta de posicionamento' nas lutas raciais. Mas o camisa 10 também já deu diversas declarações sobre isso, como recorda o jornalista Marco Luca Valentim. Líder do grupo étnico-racial da Globo em episódio do podcast 'Ubuntu Esporte Clube', ele relembrou fala do Rei: "Eu nunca tirei minha pele para jogar".
Após a recemocratização, além do mais, o Pelé se tornou ministro extraordinário dos Esportes na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Em 25 de novembro de 1995, ele recebeu, em Brasília, membros do movimento Marcha Contra o Racismo, quando protagonizou uma 'polêmica' ao defender a causa.
O sinônimo de político no Brasil é corrupção e o negro não carrega essa marca", disse em coletiva.
"De uma maneira geral, o negro também deveria votar no negro. No Brasil, um país mulato como dizem, você vê que os negros não tem uma boa representatividade no Congresso", prosseguiu.
Se o negro quer que se tenha uma melhora na sua posição social e uma melhora do Brasil de uma maneira geral, temos de botar a gente no Congresso para defender a nossa raça", finalizou.
De acordo com o Estadão, o então deputado federal Luis Eduardo Magalhães não gostou nada da fala e reagiu logo em seguida: "Não acredito que ele [Pelé] tenha dito isso, mas, se disse, vou fazer uma guerra".
Pelé manteve sua afirmação nos dias seguintes, mas teve que participar de uma reunião com deputados para se explicar. À época, FHC se disse satisfeito com a justificativa do Rei. Pelé continuou com o cargo até o fim do primeiro mandado de Fernando Henrique, em 1998.
+Relembre a trajetória de Pelé como Ministro do Esporte clicando aqui
Polêmicas à parte, Edson Arantes do Nascimento nunca esteve acima do bem ou do mal, seja por questões políticas, raciais ou familiares. Mas nunca ninguém esteve acima de Pelé, e nunca estará. O Rei será eterno, mas também sempre será um ser humano falho, como ele mesmo já declarou.
Perfeito é o Pelé, que não erra, que é imortal. Mas o Edson Arantes do Nascimento é uma pessoa normal, deve ter um monte de defeitos que muita gente não gosta e recrimina."
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