Ao longo da Idade Média, as relações entre o Sacro Império e a Igreja romana tornaram-se simbióticas
Texto - Fernando Maia e Letícia Carvalho Publicado em 25/10/2020, às 08h00
Aqueles que se interessam por política internacional provavelmente já se depararam com alguma referência ao ano de 1648. Naquele ano, os tratados de Münster e Osnabrük constituíram, juntos, a chamada “Paz de Vestfália”, que marcou o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).
O conflito, que teve início em 1618, pode ser situado num longo processo de esfacelamento da ordem legal e política da qual o Sacro Império Romano-Germânico era um dos fiadores.
Ao longo da Idade Média, as relações entre o Sacro Império e a Igreja romana tornaram- se simbióticas: a uma tentativa de reforma, digamos, “institucional” do império – de modo a coordenar um espaço político descentralizado – somou-se o desafio político
imposto pela Reforma Protestante dos séculos 16 e 17, iniciada por Martinho Lutero, em 1517, no seio do Sacro Império.
A dimensão política do evento evidenciava-se pela equivalência da dissensão religiosa protestante à subversão política num espaço dominado pelo cristianismo. O
então imperador Carlos V tentou resolver esses impasses religiosos militarmente, até que, em 1555, foi assinada a Paz de Augsburgo entre o Sacro-Imperador e os príncipes de territórios protestantes.
A solução encontrada foi a de reconhecer que esses príncipes poderiam se converter ao protestantismo e os seus súditos seguiriam essa fé. Ainda que tal medida revelasse algum nível de tolerância religiosa, na prática, a sua execução significava impor a religião sobre a população ou expulsar as pessoas que não seguissem a religião do governante dos seus domínios.
Os anos de 1618 e 1624 são fundamentais para o desenrolar desse processo: o primeiro por marcar o início da guerra entre protestantes e católicos com a chamada Defenestração de Praga (23 de maio), ainda no centro do império; e o segundo por ser o início da fase “internacional” do conflito.
O rei dinamarquês foi em socorro dos protestantes naquele ano e, em 1629, com o seu fracasso, Gustavo Adolfo da Suécia entrou no conflito não apenas para apoiar os protestantes como também para tentar consolidar a posição sueca no Báltico. França e Inglaterra, até então receosas de tomar parte no conflito contra os Habsburgo, acabaram se envolvendo junto com a República Holandesa.
As disputas religiosas ganhavam, assim, feições verdadeiramente políticas, pois estava em jogo a reorganização do sistema europeu e do subsistema imperial. A Paz de Vestfália deve ser entendida, portanto, como um esforço voltado para esse fim.
A assinatura dos tratados pode ser interpretada como um ato social de reconhecimento das partes como membros de uma comunidade cristã na qual o significado da vontade divina atrelava-se, gradativamente, àquilo que era considerado aceitável para governantes com graus cada vez maiores de autonomia.
Ainda que conflitos continuassem a existir, Vestfália marcou a emergência de um padrão de tolerância em relação às diferenças políticas e culturais entre povos cristãos que, tempos depois, seria um dos objetivos básicos da ordem política europeia e, de alguma maneira, internacional.
Fernando Maia é professor do Instituo de Relações Internacionais na Puc-Rio
Letícia Carvalho é professora de Relações Internacionais na Puc Minas
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