Jr. Bellé é autor de 'Retorno ao ventre – Mỹnh fi nugror to vẽsikã kãtĩ' - Divulgação
Indígena

O escritor que descobriu suas origens indígenas em diálogo inesperado com a tia com Alzheimer

Em seu livro 'Retorno ao ventre', Jr. Bellé aborda as violências sofridas pela população indígena no passado e atualmente

Giovanna Gomes Publicado em 03/08/2024, às 09h00

Vindo de uma família majoritariamente branca do sudoeste do Paraná, o jornalista e escritor Jr. Bellé não tinha muito conhecimento de suas origens até que, certo dia, sua tia Pedrolina, já sofrendo com Alzheimer, revelou algo inesperado.

A família tinha raízes indígenas — possivelmente Kaingang. — e seus antepassados sofreram uma série de violências. A tataravó de Jr. Bellé, por exemplo, foi uma criança indígena vítima de um bugreiro alemão e que morreu sem registros oficiais, sem ter a chance de ter sua trajetória contada às gerações seguintes.

Tomando para si o compromisso de preservar essa memória, o paranaense preencheu as lacunas com ficção em seu livro "Retorno ao ventre", publicado pela editora Elefante. Na obra, Pedrolina compartilha suas escassas lembranças no leito de um hospital, e os poemas refletem sobre a ocupação violenta de terras indígenas por colonos brancos durante a "marcha para o oeste".

Em dois idiomas — português e kaingang —, o livro aborda as violências e resistências das populações indígenas e comenta problemas atuais, como a reivindicação de terras, celebrando lideranças indígenas.

A conversa

Jr. Bellé contou, em entrevista exclusiva ao Aventuras na História, detalhes da conversa com sua tia. De acordo com ele, tudo aconteceu no início de 2018, provavelmente fevereiro ou março, enquanto trabalhava.

Era por volta de 20h30, 21h, quando o escritor recebeu uma ligação de Pedra. Naquela noite, Bellé realizava uma pesquisa sobre literatura indígena para incluir na grade de eventos e contou para a tia o tema.

Para sua surpresa, a mulher, de forma vagarosa — em razão do Parkinson e de uma cirurgia na garganta — respondeu-lhe que era um tema interessante, já que os dois tiveram parentes indígenas.

"Eu sabia que havia um tataravô guarani, do qual pouco se falava. Mas minha tia não falou dele, e sim da sua bisavó, que, segundo ela, era uma criança indígena caçada no mato, com cachorros, por seu bisavô. Isso foi um choque para mim, pois, eu não tinha ideia de que havia uma segunda origem indígena na família, e ainda mais em um contexto tão violento como esse", contou.

Brugreiros em fotografia antiga. Local e data desconhecidos. / Crédito: Domínio público

 

Buscando documentos

O escritor revelou que, apesar de breve, o processo de pesquisa se mostrou interminável. "Pedi os nomes, sobrenomes e documentos dos avós e bisavós para minha tia, que me enviou prontamente, exceto os documentos dos bisavós, que se perderam com o tempo. A partir dessas informações, comecei a mapear a migração dessas pessoas, do Rio Grande do Sul até o Paraná."

"Contei com relatos de familiares, como tios e tias, que compartilharam não apenas suas memórias, mas também as histórias que haviam escutado dos mais velhos. Também falei com um tio-avô que havia vivido parte dessa migração. Tentei procurar mais registros em cartórios, mas não tinha dados suficientes para avançar e não sabia sequer onde começar essa busca", relatou.

O jornalista, no entanto, já havia mapeado os locais de origem e, ainda, uma possível rota por onde seus parentes teriam caminhado — o suficiente, segundo ele.

"Essa geografia me deu uma noção bem clara dos povos que por ali viviam, principalmente o povo kaingang. Havia também terras guarani, mas em menor escala, o que me levou a supor que a possível origem desse novo tronco familiar fosse kaingang. Mas, novamente, isso é uma suposição", pontuou.

O povo kaingang

De acordo com o jornalista, o povo kaingang é o mais numeroso da região sul do Brasil, mas originalmente também habitava partes do sul e oeste de São Paulo e áreas do Mato Grosso do Sul.

Oficialmente, há cerca de 38 mil kaingangs, embora esse número seja provavelmente subestimado. Eles descendem da cultura Taquara-Itararé, com cerâmicas datadas de pelo menos 4 mil anos no sul do Brasil. Linguisticamente, os kaingang pertencem ao tronco macro-jê, que inclui povos como os xokleng, bororo e caiapós.

Como destaca autor, assim como outros povos indígenas, os kaingang são essenciais para a construção da cultura nacional e são exemplos de resistência e luta. Uma influência direta na cultura do sul é, segundo ele, o mate, ou chimarrão, uma infusão sagrada para os kaingang.

Chimarrão / Crédito: Wikimedia Commons/ChimaAddicted

 

Outro elemento cultural importante é o pinhão, semente da araucária, árvore-símbolo do Paraná e alimento típico do estado. Tanto o pinhão quanto a araucária são sagrados para os kaingang, integrando sua culinária e ritos tradicionais.

Marcha para o Oeste

A “marcha para o oeste” é uma expressão que descreve um movimento desastroso iniciado no período imperial e conhecido mais amplamente durante a era Vargas.

Conforme destaca Jr. Bellé, o esforço estatal e militar visava a ocupação da região oeste do Brasil, frequentemente descrita como "grandes sertões" e "imensos desertos", apesar de ser sabido que não eram realmente desabitados. O objetivo declarado era defender as fronteiras, criar fazendas e cidades, e construir rodovias e ferrovias, prometendo progresso e proteção para o território nacional.

Na prática, o "progresso" envolvia a violência contra a população local, com assassinatos, expulsões e escravidão, além da concessão de terras a indivíduos já privilegiados. No início do século XX, essas terras foram vendidas a colonos nacionais e estrangeiros a preços baixos, mas pertenciam aos povos indígenas, como os kaingang, mbyá, kaiowá, xokleng e xetá.

A “marcha para o oeste” passou por diversas fases, e as estratégias dos kaingang mudaram ao longo do tempo. Inicialmente, a prioridade era defender seu território. O coronel Afonso Botelho, no período imperial, tentou invadir o território kaingang onze vezes, sendo derrotado nelas todas. Mais tarde, os povos indígenas enfrentaram uma guerra biológica devastadora, que desequilibrou ainda mais uma luta já profundamente desigual.

Índígenas do povo Kaingang no ano de 1910 / Divulgação/Arquivo Nacional

 

Dificuldades

Questionado sobre qual teria sido a maior dificuldade ao longo de sua pesquisa, Jr. Bellé respondeu que o principal desafio foi o grande vazio documental.

Muitos registros de cartório foram perdidos e os que restaram são limitados, pois, documentos antigos, como certidões de nascimento ou casamento, frequentemente usavam nomes abrasileirados ou aportuguesados para pessoas indígenas, em vez dos nomes originais. Para ele, isso representa um apagamento sistemático e organizado, dificultando a verificação das origens.

Ele complementou que, além disso, realizou uma extensa pesquisa no Museu Nacional dos Povos Indígenas, no Rio de Janeiro, que oferece um bom serviço online, e também consultou o Portal da Legislação Histórica do Governo Federal e outras instituições, além de realizar uma pesquisa bibliográfica. Embora não houvesse uma abundância de documentos, encontrou material suficiente para realizar incursões históricas relevantes.

Extermínio cultural

Bellé destacou que esse hiato documental e a falta de registros são parte de um plano mais amplo de extermínio cultural e histórico dos povos originários. Ao negar o direito à memória, a ancestralidade indígena é gradualmente soterrada, dificultando a preservação de sua história, o que quase ocorreu com a história de sua própria família.

Para o escritor, a perda do território indígena representa mais do que a perda de uma identidade cultural; é também uma questão de destruição ambiental.

Na visão dele, a perda do território indígena vai além da perda de uma suposta brasilidade, que possui sua validade, beleza e potência, mas também carrega sua violência. "Em tempos de distopia climática urgentes, os territórios indígenas são verdadeiros bolsões de esperança: é essencial ampliá-los, protegê-los e expandi-los", diz o autor, que ainda destaca a importância da diversidade cultural.

"Meu livro fala do Paraná, um estado exemplar nesse sentido: o Paraná não reconhece suas raízes indígenas, nem pretas, nem caboclas, o que leva à inexistência de festas, ritos ou eventos populares importantes, o que o leva a ser um estado desprezível culturalmente, e pior, sem qualquer identidade orgânica, sem uma cara, sem alma", diz o escritor.

"O que define o Paraná? O que ele produz de relevante em termos de cultura e arte? Quais são os sinais fortes emitidos nesses campos? Com raras e maravilhosas exceções, que apenas confirmam a tese, o Paraná é esse deserto de pulsões, essa meia-bomba eterna, uma comida sem sal, um dia cinza e preguiçoso."

Por fim, o jornalista destaca: "Apenas quando reconhecer, e dignificar, suas raízes, ou seja, sua diversidade para além dessa balela de “herança europeia”, é que algo de vivo, algo de lindo, algo de poderoso e popular poderá enfim nascer das entranhas desse estado. E isso vale, em escala, para o Brasil inteiro, para o futuro do nosso país."

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