Na década de 1980, pelo menos 175 crianças com hemofilia foram infectadas com o vírus HIV no Reino Unido
Redação Publicado em 08/10/2022, às 17h00 - Atualizado em 01/12/2022, às 10h30
No Reino Unido, documentos dos arquivos nacionais analisados pela BBC News indicam que, nas décadas de 1970 e 80, ao menos 175 crianças com hemofilia — distúrbio que afeta a coagulação sanguínea — foram infectadas com HIV, o vírus que provoca a AIDS. Atualmente, algumas das famílias afetadas na época prestam depoimento em inquérito sobre o que é considerado o pior desastre do NHS, serviço público de saúde britânico.
De maneira geral, a infecção ocorreu de maneira semelhante em todos os casos e, em com matéria publicada na BBC e repercutida pela UOL, o enfoque se dá em um caso específico: o do jovem Michael.
No final de outubro de 1986, um grande choque acometeu a família dele, que tinha então 16 anos: Linda — a mãe do garoto, que não quis revelar seu sobrenome — descobriu que o filho portava o vírus do HIV.
Ainda na infância, Michael havia sido diagnosticado com hemofilia — doença que acomete o sangue do paciente, que afeta a coagulação e recuperação de ferimentos. Visto isso, o jovem já viveu seus primeiros anos de vida acostumado a frequentar hospitais e clínicas para o tratamento de sua condição.
Então, certo dia a mãe do garoto, que na época já tinha seus 16 anos, em outubro de 1986, foi chamada para um consultório no Hospital Infantil de Birmingham. No entanto, a convocação não a preocupou a princípio, e ela apenas supôs que seria para discutir a transferência do tratamento para outro local, o Hospital Queen Elizabeth: "isso era algo tão rotineiro que meu marido ficou no carro, do lado de fora", lembra a mulher, em relato ao BBC.
Então, de repente, o médico disse: 'Claro, Michael é HIV positivo'", comentou Linda. "Ele comunicou o fato como se estivesse falando sobre o clima lá fora. Meu estômago simplesmente revirou. Entramos no carro, contei ao meu marido e ficamos em silêncio durante todo o caminho para casa. Foi um choque."
Na época, porém, a AIDS não era vista da mesma forma como é hoje em dia — que é menos temida, devido aos tratamentos disponíveis. As décadas de 1970 e 80 foram grandemente marcadas pelo início da crise da doença, e por isso os infectados muitas vezes sofriam diversos tipos de preconceitos e nem mesmo tinham uma expectativa de vida alta.
Linda, por exemplo, só foi ouvir falar pela primeira vez da doença dois anos antes da descoberta de seu filho, durante uma apresentação no hospital em que Michael fazia seu tratamento de hemofilia. Tendo a vista a falta de conhecimento acerca da doença, em 1985 muitos pais haviam retirado seus filhos de uma escola em que uma criança de 9 anos, também hemofílica, havia sido diagnosticada com AIDS.
Então, como não queria que seus amigos ou demais familiares descobrissem sobre sua condição — ainda mais que a própria hemofilia já era motivo de estranhamento por muitos —, Michael preferiu não informar ninguém sobre. "Foi assim que ele lidou com isso: guardar para si mesmo", destaca Linda. "Ele nunca contou aos amigos ou qualquer outra pessoa, porque só queria sentir-se normal."
Porém, mesmo após a descoberta, o tratamento da hemofilia simplesmente se manteve, e Michael tentou continuar sua vida da forma como sempre devia ter sido. Viajava, ouvia música e era um grande torcedor do clube de futebol inglês, o West Bromwich Albion.
Houve uma grande partida no estádio de Wembley e ele estava muito, muito mal", recorda Linda. "Então nós decoramos todo o carro e ele encontrou os amigos. Não importava como ele se sentisse. Se pudesse chegar até o estádio, ele iria."
Porém, anos depois o sistema imunológico de Michael começou a apresentar alguns problemas mais graves, em decorrência da AIDS, que afeta justamente o sistema imunológico do paciente, de forma que qualquer doença, até mesmo uma gripe, pode se tornar fatal. Na época, ele emagreceu bastante, sentia muita fadiga constantemente e perdeu parte de sua memória.
Foi então que Linda decidiu se demitir de seu emprego, como cozinheira em uma casa de repouso, e passou a se dedicar unicamente a cuidar do filho em seus últimos meses de vida. Eventualmente, Michael desenvolveu ainda meningite e pneumonia e, no dia 26 de maio de 1995, uma semana antes de completar 26 anos, veio a falecer.
Desde a infecção de Michael, muito se questionou sobre como ele — e muitas outras crianças hemofílicas — haviam contraído o vírus HIV. Então, logo se percebeu outro fator em comum entre os infectados: eles haviam tomado o Fator 8, um novo tratamento para a hemofilia que substituía a proteína de coagulação sanguínea que lhes faltava.
Porém, hoje em dia finalmente foi revelado, após análise de documentos do Arquivo Nacional do Reino Unido, pôde-se ser possível uma conclusão: nas décadas de 1970 e 80, o Reino Unido ainda não era autossuficiente em produtos farmacêuticos para tratamentos sanguíneos, então todos os remédios eram importados dos Estados Unidos.
Cada lote do tratamento por Fator 8 era feito, como informado pela UOL, a partir do plasma sanguíneo agrupado ou misturado de milhares de pessoas. Porém, no país norte-americado era muito comum que as empresas pagassem pessoas para doarem sangue, o que não excuía indivíduos com alto risco de infecção por HIV, como prisioneiros e usuários de drogas — e, caso apenas um doador fosse infectado com a doença, todo um lote pode ser contaminado.
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