Um episódio do famoso desenho brasileiro é repleto de referências ao período dos militares
André Nogueira Publicado em 15/04/2019, às 09h00
O desenho brasileiro Irmão do Jorel faz um enorme sucesso, tanto no Brasil quanto em muitas partes do mundo. A animação tem um estilo próprio, piadas com o cotidiano brasileiro e conteúdos para crianças e adultos, além de uma abundância incontável de referências a filmes, elementos da cultura pop e eventos históricos.
A história gira em torno do irmão de Jorel, um garoto ingênuo e recluso cujo nome nunca é revelado, pois tudo que ele faz é ofuscado pelo adorado irmão, o famoso Jorel. O garoto tem uma imaginação extremamente fértil, fazendo das tramas dos episódios (que normalmente envolvem ele, sua amiga Lara e sua família: o pai Edson, a mãe Vanusa, os irmãos Nico e Jorel, as avós Gigi e Juju e os animais Tosh, Gesonel e Zazá) em uma aventura divertida e cheia de descobertas.
Em “Gangorra da Revolução” (T1E02), o público encontra muitas referências históricas. No episódio, o irmão do Jorel luta contra o autoritarismo da diretoria diante dos estudantes, que querem aproveitar o recreio. Mas o que se destaca é a série de referências diretas e indiretas ao período da Ditadura Militar (1964-1985), pois o personagem principal aprende a amar e a lutar por sua liberdade com seu pai, que viveu os anos de chumbo e hoje não confia nos policiais.
“Você não escolhe a revolução, meu filho. A revolução escolhe você!”. É assim que inicia o episódio, com seu Edson, o pai, contando as histórias de quando ele era um “revolucionário” durante o “governo dos palhaços”. Descobrimos então que neste universo, os palhaços, que hoje são policiais, já haviam tomado o poder e implantado uma ditadura extremamente repressiva. A referência à ditadura é clara, e a alcunha parece comum aos adultos que viveram o período: “aqueles palhaços dos militares”, “eles eram uns palhaços”, etc.
O capítulo também faz referência ao famoso atropelamento na Praça da Paz Celestial, ocorrido na China em 1989.
Ao ouvir tiros vindos de fora, Edson também entra em estado de choque (mesmo que os 'pipocos' venham da televisão em que a vovó Gigi assiste ao comercial do short camuflado, série especial Steve Magall).
Quando a criança pergunta qual era a revolução que o pai participou, aparece uma nova referência: o teatro revolucionário. Num tom de piada, Edson fala que este era o ato mais revolucionário da época, quando ele e Roberto Perdigoto montaram uma peça infantil revolucionária de resistência “O filhotinho de urso que morava numa casquina de noz”. Fica uma dúvida no ar: como teatro revolucionário derruba uma ditadura? A piada faz menções aos grupos de teatro da esquerda – destacam-se nomes como Chico Buarque, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, a Arena, o Oficina, os brechtianos, entre outros.
Irmão do Jorel, então, tem que ir para a escola, como de costume, e é lá que começa sua “jornada revolucionária”. No horário do recreio, ele e a amiga Lara vão brincar de gangorra, mas ficam extremamente decepcionados com o toque do sinal. As crianças começam a voltar para a sala, mas o personagem resiste. Aparece a citação mais clara e direta do episódio: o garoto grita “Abaixo à repressão! Ditadora Lolla, seus dias de repressão acabaram!”. O grito “abaixo à repressão!” foi uma importante palavra de ordem dos protestos contra a ditadura militar nos anos 1970, os anos de chumbo. Irmão do Jorel clama por uma demanda libertária da população brasileira que defendia a abertura democrática.
A diretora Lolla, então, usa a famosa tática do “vou contar até três”, chegando ao mais notório momento do episódio. Quando Lolla chega no três, irmão do Jorel ainda está na gangorra e nada acontece. As crianças ficam surpresas e voltam aos gritos para o pátio. Começa então a “revolução” do recreio, cujo símbolo era a gangorra. O ponto principal foi mostrar para as crianças que, inicialmente, o poder da “ditadora” estava no medo, pois quando sua principal ameaça (“chegar no três”) se concretiza, ela não tem poderes reais de mudar aquela situação. Pelo menos até ela chamar Perdigoto e Rambozo (este último um policial bem armado, um agente da repressão).
Ao som da música Gangorra da Revolução (uma paródia de Rock Lobster em que se diz “Gangorra da Revolução/ Pra cima e pra baixo contra a repressão/[...]/ Vamos todos dar um grito contra o sistema”) as crianças tomam o pátio, atingem a liberdade (num nível bastante irresponsável) e resistem ao máximo, até Rambozo (Rambo+Bozo, que é uma referência à atual PM) usar “armas químicas” (balas) para fazer com que as crianças voltem à sala.
A trama toda deste episódio é imersa num universo satírico e histórico, que coloca as referências do passado político do país como parte do contexto em que a vida das personagens está inserida. Ao mesmo tempo, é um importante ato de quebra do tabu sobre o assunto (que hoje dá muita polêmica) a ponto de aparecer com diversas referências históricas em um desenho infantil.
Irmão do Jorel ainda tem muito para contar!
Assista ao episódio completo:
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