Capa do livro 'Contrabandistas de sonhos e traficantes de vidas' - Divulgação/Editora Telha
Sahel

Mudanças geopolíticas no Sahel: sinais de autonomia ou apenas utopia?

Marcada pela miséria e rota de migrantes para a Europa, a região reage as mazelas do colonialismo

Marcos Emílio Frizzo* Publicado em 23/10/2024, às 15h00

O Sahel é uma das regiões mais pobres e violentas do planeta, sendo atravessado pela maioria dos migrantes que ambicionam chegar à Europa.

Nestas terras, as populações estão sujeitas a pobreza extrema e a frequentes crises alimentares e de saúde. Conflitos étnicos, agravados pela colonização europeia que demarcou arbitrariamente fronteiras, obrigando a coexistência de grupos rivais, repercutem até hoje.

Jovens países foram estabelecidos com governos frágeis e um judiciário incapaz de enfrentar a corrupção e a violência de grupos armados. Aqui, cabe ressaltar que, entre antigos colonizadores, encontravam-se importantes fornecedores de armamentos adquiridos pelos governos recém-formados.

Com o passar dos anos, os conflitos étnicos e o colapso da economia pastoril tradicional levaram a um progressivo empobrecimento das comunidades, criando um ambiente ideal para o crime organizado.

A criminalidade no Sahel opera em ecossistemas transnacionais. A partir de 1990, a violência explodiu inviabilizando o turismo na região. Isto empobreceu ainda mais os habitantes, sujeitando-os a serem cooptados pelo crime.

Na fronteira Sul do Saara, o tráfico de armas, de drogas e também de seres humanos, tornou-se uma opção de renda. Entre diferentes grupos armados, nichos de jihadistas surgiram na vastidão do Sahel, comprometendo o desenvolvimento, a segurança e a estabilidade local. Enquanto antigos colonizadores estabeleciam a União Europeia, o continente africano colecionava guerras fratricidas e submergia na violência e na corrupção.

Rota comercial 

Ao longo dos séculos, populações nômades utilizaram trilhas no Sahel-saariano como rotas de comércio no Norte da África. Atualmente, o conhecimento ancestral para o transporte de carga, nas vias que margeiam e cruzam o deserto, é utilizado para levar indivíduos provenientes de países subsaarianos, devastados pela miséria.

Os contrabandistas de seres humanos recebem para transportar um número cada vez maior destas pessoas até a costa, de onde alguns poucos tentarão cruzar o Mediterrâneo.

Porém, durante este fluxo migratório, muitos serão subtraídos dos comboios dos contrabandistas e passarão às mãos dos traficantes, sendo levados pelos mesmos aos leilões de escravos na Líbia, aos assentamentos de rebeldes ou para as zonas de garimpo.

Recentemente, a mineração artesanal de ouro aumentou significativamente no Sahel-saariano. Esta atividade informal patrocina revoltas, corrompe agentes do Estado e permite a lavagem de dinheiro pelo crime organizado. Além disso, zonas de garimpo clandestino absorvem indivíduos raptados dos comboios de migrantes e que serão submetidos a trabalho escravo e exploração sexual nestas áreas.

Em julho de 2024, os líderes de Burkina Faso, Mali e Níger, países fundadores da Aliança dos Estados do Sahel (AES), reuniram-se para estabelecer a Confederação da AES e reforçar seus laços de cooperação. Esta Confederação alinha-se a antigas manifestações anticoloniais pan-africanas que, desde o início, receberam investidas da França que visava manter seu controle regional.

Sucessivas intervenções francesas causaram frustrações generalizadas que resultaram em cinco golpes de Estado nos três países, desde 2020. Os atuais dirigentes destes três países são produtos destes golpes e compartilham a visão de que suas nações ainda são exploradas pelos franceses.

Um mês antes deste encontro, o Níger havia revogado a licença de operação da empresa francesa Orano, em uma das maiores minas de urânio do mundo. O governo nigerino também expulsou o embaixador francês e centenas de militares franceses baseados no seu território.

A questão do urânio é estratégica porque cerca de um quarto deste metal utilizado na Europa e, de um terço na França, provém do solo nigerino. Empresas russas já demonstram interesse em assumir a mineração no Níger, manifestação que não pode ser interpretada isoladamente.

Mercenários Wagner atuaram no desmantelamento de núcleos jihadistas no Sahel, papel agora apoiado por militares russos. A aproximação com Moscou acelerou depois da criação da confederação da AES e da expulsão dos militares franceses. A Rússia também está envolvida em projetos de beneficiamento de reservas minerais e no setor energético da região.

Os países do Sahel cansaram do colonialismo maquiado a que foram submetidos por décadas, raiz de instabilidade política, econômica e dos baixos índices de desenvolvimento humano.

A geopolítica no Sahel começa a mudar rapidamente, mas questiono: qual será o impacto dessas mudanças para os milhões que sobrevivem em condições de miséria extrema?

Leia também: Anticolonialismo e pan-africanismo: Como a política moldou a Copa Africana de Nações?


Marcos Emílio Frizzo* é ítalo-brasileiro, nascido em Porto Alegre. É biólogo bacharel em Fisiologia, com mestrado em Neuroanatomia, doutorado e pós-doutorado em Neurociências. Atua como professor Titular do Departamento de Ciências Morfológicas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 

Marcos Emílio Frizzo, autor de 'Contrabandistas de sonhos e traficantes de vidas' - Divulgação/Editora Telha

 

Também é pesquisador das questões migratórias no mundo e as causas históricas do empobrecimento da África. A paixão por viagens e pela academia o impulsionou a adentrar na literatura; reuniu conhecimentos, observação in loco e pesquisas relacionadas a questões humanitárias e sociais para escrever os romances 'As Veias Escuras do Saara' e 'Contrabandistas de sonhos e traficantes de vidas'.

 

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