Mulheres e crianças judias removidas à força de um bunker por unidades da SS - Domínio público
Levante do Gueto de Varsóvia

Resistência contra a ocupação nazista: Como foi o Levante do Gueto de Varsóvia

Judeus de Varsóvia lutaram pela vida na maior e mais importante revolta civil contra o terror nazista e o Holcausto

Marcus Lopes Publicado em 19/04/2023, às 19h30 - Atualizado em 30/10/2023, às 17h04

Era madrugada de segunda-feira, 19 de abril de 1943, véspera do Pessach – a Páscoa Judaica. Em Varsóvia, capital da Polônia, a noite enluarada iluminava as ruas desertas e silenciosas do gueto – região da cidade onde milhares de judeus eram obrigados a viver desde outubro de 1939, início da ocupação nazista no país. A tranquilidade, porém, era aparente.

Em pouco tempo, as ruas de paralelepípedos se tornariam palco do Levante do Gueto de Varsóvia, considerado o maior movimento de resistência judaica e a primeira revolta civil armada contra a ocupação nazista na Europa no período da Segunda Guerra. Durante quase um mês, cerca de 750 combatentes judeus, com poucas armas e muita coragem, lutaram bravamente contra mais de dois mil soldados do bem equipado exército alemão.

Moradores, inclusive crianças, que assim como os guerrilheiros tinham pouca ou nenhuma noção militar, ajudavam como podiam na mobilização, nem que fosse levando e trazendo informações ou alimentos contrabandeados.

Construção do muro/ Crédito: Domínio Público

 

“O Levante do Gueto de Varsóvia talvez seja o mais emblemático ato de resistência judaica durante o Holocausto. Um marco histórico que se tornou símbolo de coragem”, declara o vereador paulistano Daniel Annenberg, representante da comunidade judaica na Câmara Municipal de São Paulo e militante ativo do trabalho de preservação da memória dos fatos ocorridos durante o Holocausto e de combate ao antissemitismo.

O levante foi o ápice de um movimento que começou a florescer um ano antes, no verão de 1942. Entre julho e setembro, mais de 300 mil judeus que moravam no gueto foram deportados para campos de concentração nazistas, como Belzec, Sobibor e Treblinka. Em poucas semanas, a população do gueto, que chegara a mais de 400 mil pessoas no início da guerra – praticamente um terço da população de Varsóvia – havia sido reduzida para, no máximo, 60 ou 70 mil pessoas.

Os remanescentes eram, em sua maioria, jovens e saudáveis, condições necessárias para os trabalhos forçados nas fá bricas alemãs instaladas em Varsóvia. Todos os demais – velhos, doentes e inválidos – eram enviados a campos de extermínio, tanto na Polônia como nos demais países ocupados pelas tropas de Hitler.

Diante da fúria nazista e o número de deportações com destino à morte crescendo a cada dia, movimentos poloneses integrados por jovens judeus e simpatizantes resolveram se mobilizar e organizar uma resistência às atrocidades, criando grupos como a Organização dos Combatentes Judeus (Zydowka Organizacja Bojowa - ZOB) e a União dos Combatentes Judeus (ZZW).

Eles recebiam ajuda de fora, incluindo armas e munições contrabandeadas fornecidas por grupos políticos e sociais consternados pela situação dos judeus na guerra e contrários ao nazismo, como os comunistas, organizações católicas e democráticas.

A opção era lutar

Com a escalada da violência nazista, não havia tempo a perder. Para atender às táticas de guerrilha urbana, diversas rotas de mobilidade e fuga foram traçadas nos becos entre as ruas e prédios do bairro judeu. Túneis subterrâneos foram escavados e ligados às redes de esgoto que conectavam o gueto ao mundo exterior.

Como medida de proteção contra as frequentes carnificinas promovidas pelos alemães, foram construídos esconderijos para as famílias e guerrilheiros em sótãos adaptados, porões e quartos disfarçados por paredes falsas.

Seção que conectava as áreas de "grande gueto" e "pequeno gueto" da Varsóvia ocupada pelos alemães/ Divulgação: German Federal Archives

 

Em 18 de janeiro de 1943, uma segunda-feira, ocorreram os primeiros enfrentamentos armados. Às 6 da manhã, como uma prática de rotina, alemães e ucranianos repetiram o sistema usado nas deportações anteriores: chamaram os judeus por meio de alto-falantes para uma triagem nos pátios. Desta vez, porém, não foram atendidos e a represália veio em forma de matança a esmo. Um dos primeiros assassinados foi Yitzhak Gitterman, ativista conhecido na clandestinidade.

“Os selvagens invadiram as ruas espancando nas casas e pátios todos que encontravam. A maioria da população escapou para os esconderijos preparados. Enfim, havia uma resistência organizada, a triste lição de seis meses atrás havia sido aprendida: ninguém mais se entrega aos alemães sem luta”, registrou o ativista Bernard Goldstein sobre os episódios.

Nesse mesmo dia, um grupo de combatentes liderados por Mordechai Anielewicz, que se
destacaria como um dos principais condutores do levante de abril, se juntou às filas de condenados que seguiam para Umchlagplatz, a praça de onde partiam os trens rumo aos campos de concentração. De maneira sincronizada, cada um dos guerrilheiros atirou em um guarda alemão previamente escolhido, dando início a uma batalha campal.

A luta era desigual em termos de força militar, mas diversos soldados alemães morreram e os judeus aproveitaram para fugir. Mais do que isso: brotou nos judeus a esperança de sobrevivência e fim da humilhação crônica sem qualquer tipo de reação.

A rebelião de janeiro tornou viável o levante de abril, pois mostrou que o sonho de lutar era possível. Um poeta não identificado descreveu aquele momento: “Esta é a nossa primavera, o nosso contra-ataque”.

Comandadas por líderes como Anielewicz, as organizações ZOB e ZZW uniram-se para a criação de uma verdadeira estrutura paramilitar, que incluía 22 grupos de combatentes espalhados pelo gueto, oficiais e um treinamento ostensivo. O conflito em janeiro havia mostrado que um ataque inimigo poderia ocorrer a qualquer momento e era necessário estarem preparados para a reação, tanto na ofensiva (armas e munições) como na defensiva (criação de bunkers nos prédios para dificultar a localização e ofensiva por parte do inimigo).

No “quartel-general” montado em um prédio na Rua Mila 18, uma das principais vias do bairro, os oficiais da resistência se encontravam com os combatentes, faziam treinamentos e organizavam as ações à espera da guerra, incluindo rotas de contrabando de armas, munições e alimentos, e sistemas de comunicação entre os grupos de resistência espalhados pelos quarteirões. As refeições no bunker consistiam basicamente em pão, geleia e sopa. O treinamento paramilitar era duro, mas também havia espaço para leitura e debates políticos e culturais.

O movimento de resistência crescia num ritmo assustador e um dos focos mais perigosos de rebeldia, na avaliação dos órgãos de segurança alemães, era o gueto. “Percebi claramente que as autoridades alemãs não mais dominavam a situação”, afirmou Stroop, preocupado, em relatório semanas antes do levante.

Diante do desconforto pela ofensiva promovida em janeiro por um grupo infinitamente inferior do ponto de vista bélico e os problemas cotidianos de resistência no gueto que contaminavam toda a capital polonesa, o general Heinrich Himmler, nomeado por Hitler no começo da guerra para o comando dos esquadrões que assassinaram judeus, poloneses, soviéticos e outros grupos considerados “raças inferiores”, decide destruir o bairro judeu. Se fosse necessário, toda a cidade de Varsóvia, cuja situação política e militar instável já causava preocupações em Berlim, seria destruída.

O dia escolhido pelos nazistas para a ofensiva definitiva, 19 de abril, também marcava a
véspera de aniversário de Hitler. Segundo o historiador polonês Bernard Mark no livro O
Levante do Gueto de Varsóvia, a data escolhida para o massacre pode ter sido uma forma de homenagem ao aniversário do Führer, em 20 de abril.

A operação militar de destruição total do gueto e aniquilamento da resistência judaica era calculado pelos oficiais da SS em, no máximo, três dias. Em toda a região, carros e pessoas foram proibidos de circular e as linhas de bonde, suspensas.

O perigo era iminente e não passou despercebido pela resistência nos dias anteriores, que também contava com informantes que entravam e saíam do bairro com informações, inclusive crianças. Do lado de fora dos limites do gueto, a movimentação militar alemã era intensa desde as primeiras horas da madrugada do dia 19, com grupos de soldados se perfilando ao longo do muro, a uma distância de cerca de 25 metros entre eles. Do lado de dentro, guerrilheiros judeus se preparavam como podiam em bunkers instalados dentro dos edifícios residenciais para um confronto de vida ou morte.

Por volta das 4 da manhã, as forças nazistas, conduzidas pelo oficial da SS Ferdinand von
Sammern e sob o comando do general Jürgen Stroop, entraram no bairro para uma ofensiva rápida e com o propósito de efetuar uma “ação de limpeza” no gueto, enviar os moradores remanescentes a campos de concentração e acelerar o projeto de aniquilação do povo judeu, que era a grande obsessão de Hitler. Não foi bem assim. Sammern não comunicou aos seus superiores que previa uma resistência armada, pois estaria confessando sua negligência militar em permitir ao longo das semanas uma escalada armada em poder dos judeus.

Ao atravessarem o portão da Rua Nalewki e avançarem em direção ao centro do bairro,
os soldados foram surpreendidos, na esquina da Rua Gesia, com uma saraivada de balas,
bombas caseiras, coquetéis molotov e granadas de mão. Escondidos em bunkers instalados nos prédios próximos, moradores promoveram um ataque que deixou vários alemães mortos e feridos e obrigou o recuo das tropas de von Sammern. Simultaneamente, outra ofensiva armada para impedir o avanço alemão ocorreu no cruzamento das ruas Zamenhof e Mila, próximo ao miolo do gueto.

“Os judeus têm armas! Os judeus têm armas”, gritavam os alemães, enquanto batiam em retirada, assustados e surpresos com a resposta à bala. O próprio general Stroop contou, em relatório, como suas tropas foram, literalmente, expulsas pelos rebeldes apenas meia hora após o início da ação.

Ao entrarmos pela primeira vez no gueto, os judeus e bandidos poloneses conseguiram, por meio de um assalto armado, repelir o avanço de nossas forças, inclusive de nossos tanques e carros blindados”, diz trecho do relatório de Stroop.

Luta desigual

A disparidade de forças entre os dois grupos era clara. Segundo o historiador israelense Israel Gutman, no decorrer de toda a campanha as forças alemãs contaram com cerca de 2 mil soldados, 36 oficiais, unidades de polícia e tropas suplementares de ucranianos e guardas de campos. O poderio bélico incluía 1.174 fuzis, 135 metralhadoras de mão, 69 metralhadoras leves e 13 pesadas, além de um canhão, um lança-chamas e três carros blindados.

A expressão poderio militar dificilmente seria aplicável à insignificante força que teria de enfrentar essa possante máquina de guerra alemã”, diz Gutman no livro Resistência, que resgata a história do levante.

Os cerca de 750 combatentes judeus, a maioria jovens e praticamente sem nenhuma instrução militar, tinham à disposição revólveres de vários calibres, munição para dez ou 15 disparos e entre quatro ou cinco granadas de mão, em sua maioria de fabricação caseira. A organização também possuía 2 mil coquetéis molotov, dez fuzis e uma ou duas metralhado ras de mão tiradas dos alemães ou então contrabandeada.

Membros da resistência capturados/ Crédito: Jürgen Stroop via Wikimidia Commons

 

“Com poucas armas e munição, eles sabiam que não tinham a menor chance. Sua escolha não se tratou de estar entre a vida e a morte. Na verdade, escolheram como morrer, lutando bravamente ou passivamente”, diz Annenberg.

Um sopro de esperança

O fator surpresa no primeiro dia da invasão funcionou para o lado rebelde e os alemães
recuaram diante de uma reação armada não esperada. As baixas ocorreram em ambos os lados em números não precisos, mas, à noite, a população do gueto se sentia livre. As pessoas, aos poucos, saíram às ruas em um clima de entusiasmo contido, sentindo-se vingadas por tanta opressão e, na medida do possível, para celebrar o Pessach. Todos sabiam que o alívio era momentâneo e as batalhas continuariam nos dias seguintes.

No dia seguinte, a batalha principal ocorreu no terreno de uma fábrica de escovas e em diversos pontos do centro, como as ruas Mila, Sapieznska e na Praça Muranowski, uma das principais do bairro. Os alemães voltaram mais bem equipados, mas a resistência continuava dia após dia, apesar de os rebeldes contarem com pouca munição, equipamentos e os incêndios que tomavam conta de toda a região e sufocavam com fumaça os esconderijos mal ventilados e iluminados.

Até as mulheres participavam derramando ácido sulfúrico, gasolina ou benzina sobre os atacantes. As informações também davam conta de desertores, especialmente soviéticos, na ajuda e organização da defesa judaica.

“Milhares de pessoas estavam à beira do colapso físico e mental, mas a guerra dos bunkers seguia, o gueto resistia e os alemães foram surpreendidos mais uma vez, pois no dia 23 de abril pensavam que tudo havia ter- minado”, registra Abrão Slavutzky no livro O Dever da Memória – O Levante do Gueto de Varsóvia. Para os alemães era um processo lento e cansativo descobrir e desmobilizar os bunkers dentre centenas de edifícios, o que favorecia os judeus.

Terminou abril, começou maio e a resistência seguia. No dia 3 de maio, uma companhia de combatentes da ZOB foi atacada e morreram lutando Shana Lent, de 17 anos, e Zippora Lehrer, de 23. Os que sobreviveram se abrigaram no bunker da Rua Mila 18, onde estava o comandante Anielewicz.

O quartel-general rebelde foi cercado na manhã do dia 8 de maio. Quem não se entregou foi assassinado com os efeitos do gás tóxico e as granadas de mão lançadas pelos soldados. Entre os mortos, estava o comandante Anielewicz, que dias antes escrevera sua última carta a um amigo, que dizia em um dos trechos: “A resistência armada judaica constituiu-se. Sou testemunha das elevadas e heroicas lutas dos insurretos judeus”.

Praticamente sem armas, munições e com os principais líderes tombados, aos poucos a resistência cedia e os alemães avançavam, ao mesmo tempo em que o gueto era destruído pelos ataques a bala, incêndios e bombas.

Judeus capturados são conduzidos por tropas alemãs ao ponto de encontro para deportação/ Crédito: Domínio Público

 

Em 12 de maio, Stroop relatou que os alemães descobriram 30 bunkers e capturaram 663 judeus, dos quais 133 foram fuzilados. Em 15 de maio, declarou no final do seu relatório: “Terminarei a gross aktion (grande ação) em 16 de maio de 1943, ao anoitecer, com a explosão da sinagoga que conseguimos destruir hoje”, afirmou o general, referindo-se à Grande Sinagoga de Varsóvia, um monumento arquitetônico erguido no ano de 1877 pelo arquiteto Leonardo Marconi.

Em 16 de maio, a “missão” de Stoop estava cumprida e ele pôde telegrafar aos seus superiores: “o antigo bairro residencial judeu deixou de existir”. A explosão da sinagoga, que ficava na Rua Tlomacki, foi tão forte que, nas palavras dos cronistas poloneses da época, “abalou toda Varsóvia”. Após 16 de maio, o gueto mudara definitivamente de aspecto.

Os incêndios tinham se extinguido, por toda a parte reinava um silêncio de morte”, descreveu Mark. Pequenos destacamentos de polícia per- corriam a região, em busca dos últimos rebeldes e judeus escondidos.

Não há informações precisas em relação ao saldo de mortos e feridos de ambos os lados. Estimativas com base nos relatórios nazistas da época e Museu do Holocausto dos Estados Unidos apontam que cerca de 56 mil judeus foram capturados no antigo bairro judeu durante o levante.

Deste total, 7 mil foram fuzilados pelos alemães, 6 mil morreram em decorrência de bombas e incêndios e outros 7 mil morreram a caminho dos campos de concentração. Os sobreviventes foram submetidos a trabalhos forçados em campos como Lublin/Majdanek.

Entre 15 e 20 mil judeus, entre eles uns poucos sobreviventes do gueto que escaparam das tropas nazistas, conseguiram morar em Varsóvia e arredores até o fim da guerra, escondidos ou portando documentos falsos.

Reação em Cadeia

Para os especialistas, o Levante do Gueto de Varsóvia é um legado de resistência que inter- feriu nos rumos da guerra, pois despertou uma reação em cadeia em outros lugares.

Judeus que viviam em guetos de outras cidades se mobilizaram contra as tropas alemãs. Também houve movimentos de resistência nos campos de concentração”, explica o historiador Victor Missiato, professor do Colégio Mackenzie Tamboré.

Em Treblinka, uma insurreição de prisioneiros inspirada nas notícias vindas de Varsóvia foi deflagrada em agosto de 1943. O levante foi reprimido e os líderes mortos, mas a rebelião em Treblinka serviu como grave derrota moral para os hitleristas.

Para os historiadores e membros da comunidade judaica, o Levante do Gueto de Varsóvia marcou a resistência de maneira definitiva e provou que os judeus não eram passivos diante das atrocidades cometidas pelos nazistas.

“A imagem do judeu passivo se transformou na do jovem guerreiro e Israel decidiu relembrar o Holocausto – shoá – junto com a resistência, e o dia foi denominado Iom Hashoá V ́Hagevurá , que é o Dia do Holocausto e da Resistência”, explica Slavutzky.

No prefácio do livro O Dever da Memória , o escritor Moacyr Scliar, morto em 2011, resu- me o legado dos combatentes de Varsóvia: “Como o quilombo de Palmares ou a revolta dos escravos liderada por Spartacus, o Levan- te do Gueto de Varsóvia entrou para a História como um daqueles trágicos – e grandiosos – episódios em que um grupo de lutadores decide dar, mesmo à custa da própria vida, um basta à opressão e o ao massacre”.

 

 

 

 

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