Holandês só foi eternizado postumamente por conta de Johanna Bonger, esposa de Theo van Gogh
Fabio Previdelli Publicado em 29/01/2023, às 00h00 - Atualizado em 26/04/2023, às 17h47
Sejam pelos girassóis, pelo amarelo, a noite estrelada ou até o autorretrato, Vincent Van Gogh tem um legado encantador. Maior expoente do pós-impressionismo, o holandês é admirado até os dias atuais.
O gênio problemático que lutou até o fim contra sua frágil saúde mental, porém, jamais foi reconhecido em vida pelo seu talento. Certa vez, em tom quase de conformidade, declarou: “Talvez Deus tenha me feito pintor para aqueles que não nasceram ainda”.
Sobre isso, infelizmente, estava certo, mas seu reconhecimento póstumo só se deu por conta de uma pessoa: Johanna Bonger, esposa de seu irmão mais novo, Theo van Gogh.
Johanna conheceu Theo em 1885, quando ainda tinha 22 anos. Aquela altura, o irmão do pintor vinha ganhando força como negociante de arte em Paris. Paralelamente a isso, Theo também sempre se dispunha a ajudar Vincent, servindo como seu ponto de equilíbrio emocional.
Após dois encontros com Jo, como ele a chamava, Theo não resistiu e pediu sua mão, recorda o The New York Times. A ousadia do rapaz ia à contramão de como Bonger havia sido criada: com costumes muito mais reservados e discretos. “O prego que se destaca leva martelada” era o lema da família.
Professora de inglês, Jo não agia por impulsividade. Além disso, já se relacionava com outro homem. Theo foi recusado, mas não abaixou a cabeça. Bonger sempre teve um grande interesse pela cultura, de estar próximo de artistas e intelectuais. Theo, de certa forma, poderia satisfazer esse desejo.
Em meados de 1888, um ano e meio após o pedido, Jo disse sim. Àquela altura, o irmão de Vincent já alcançara um novo patamar em sua carreira, passando a ter influência com grandes nomes do movimento impressionista: como Gauguin, Pissarro e Toulouse-Lautrec.
O auge do sucesso profissional de Theo também se estendia para o amor. Na noite de núpcias do casal, que Johanna classificou como “noite de êxtase”, segundo a Piauí, se tornou mais especial quando ele sussurrou no ouvido da amada: “Você quer ter um bebê, meu bebê?”.
Embora a conversa entre o casal sempre abrangesse assuntos distintos, um tema era recorrente: Vincent. Theo sempre contava suas histórias, além de ter um apartamento cheio de suas pinturas — que chegaram aos montes, cada vez mais.
Van Gogh havia chegado ao ápice de sua produção artística, pintado, às vezes, um quadro novo por dia. Ele sempre os enviava ao irmão, com esperança de que Theo encontrasse um mercado para elas.
Nove meses após a noite de núpcias, Jo deu à luz à Vincent, homenagem sugerida pelo marido — cada vez mais preocupado com a saúde mental do irmão; que havia se entregue ao álcool e ao tabaco. O pintor também estava tomado pela gonorreia, aponta o NYT, e com alguns dentes podres.
Vincent vivia seu maior momento de instabilidade, se distanciando de outros amigos pintores. Pouco antes do natal daquele ano, onde Johanna e Theo anunciariam o noivado, o artista teve um surto psicótico e arrancou a própria orelha após uma discussão com Paul Gauguin.
Desde então, Vincent passou a desenhar com traços diferentes, além de seu extremo fascínio pelo céu noturno de Arles. Ao terminar sua obra, a enviou para Jo e Theo com um bilhete dizendo que o quadro tratava-se de um “exagero”. Era ‘A Noite Estrelada’.
Theo se assustou com os traços e respondeu Vincent: “Acho que você é melhor fazendo coisas reais”. Explicando que a pintura dificilmente atrairia compradores.
Jo só o conheceu na primavera de 1890. “Diante de mim estava um homem forte, de ombros largos, com um saudável tom de pele, um olhar alegre e em cuja aparência havia algo que indicava grande determinação”, relatou em seu diário, segundo a Piauí.
Ele parece muito uma versão mais forte do Theo’, foi a primeira coisa que me veio à cabeça”, continuou.
Certa noite, Theo levou o irmão para o quarto do filho. Juntos, eles admiraram Vincent dormir: “Os dois tinham lágrimas nos olhos”, escreveu Jo.
Semanas depois, porém, o baque. Vincent van Gogh estava morto. Em tratamento no vilarejo de Auvers-sur-Oise, ao Norte de Paris, ele teria atirado em si mesmo — versão contestada por alguns pesquisadores.
O único fato é que Theo chegou a tempo de ver seu último suspiro naquele 29 de julho de 1890. Três meses depois, Theo já estava totalmente debilitado. Enfrentava o estágio final da sífilis. Morreu em 25 de janeiro de 1891.
Após quase dois anos de união, Jo van Gogh-Bonger estava sozinha, embora acolhida por cerca das 400 obras de Vincent que a rodeava. O fato do marido ter morrido aos 33 e o cunhado aos 37, sem nunca jamais ter sido reconhecido, parecia ser o ponto final na história de mais um artista frustrado. Van Gogh só não caiu no esquecimento por conta do ímpeto de Johanna.
Sem experiência alguma no ramo das artes, ela ainda teria que enfrentar todo o machismo de um universo exclusivo de homens. Antes disso, todavia, se estabeleceu no vilarejo de Bussum, no sudeste da Holanda, onde abriu uma pousada.
Com uma cena cultural ativa, a vila poderia lhe oferecer o sustendo de seu filho através dos hóspedes da pousada e ainda dar uma brecha para explorar as obras do cunhado. Todas elas, aliás, foram espalhadas pela pousada, com ‘Os Comedores de Batata’ deixado acima da lareira.
Além das obras de Vincent, Johanna também herdou as cartas que o artista trocou com Theo. Todas as noites, após ter terminado de atender seus hóspedes e colocar seu filho para dormir, ela parava para ler a troca de mensagem entre os dois. Assim, entendeu os anseios, desejos e pensamento de Vincent. “Uma crise mais violenta pode destruir para sempre a minha capacidade de pintar”, escreveu em uma das missivas.
Paralelamente a isso, também estudava sobre a arte, através de revistas especializadas, o que a permitiu circular com mais facilidade pela comunidade de artistas, poetas e intelectuais. Um ano após o início da jornada, Jo teve uma epifania: as cartas de Van Gogh eram parte de suas obras. Elas eram as chaves para garantir o real entendimento das pinturas.
Os bilhetes também revelaram quem era o público que van Gogh desejava atingir: queria que sua arte não fosse restringida, conversando diretamente com o coração das pessoas.
Nenhum resultado do meu trabalho me seria mais agradável”, escreveu a Theo, citando outro artista, “do que ver o trabalhador comum pendurar essas reproduções em seu quarto ou em seu local de trabalho.”
Tudo passou a fazer sentido. Sempre dedicada às causas sociais, como o direito dos trabalhadores e o voto feminino, Johanna sentia que era seria uma dessas ‘pessoas normais’ que Vincent queria atingir.
“Me senti tão desolada — que pela primeira vez entendi o que ele deve ter sentido, naqueles momentos em que todos davam as costas para ele”, escreveu em seu diário.
Após ser rejeitada inicialmente pelo crítico de arte Jan Veth, marido de sua amiga e pessoa que estava à frente da revista de arte De Nieuwe Gids (o novo guia), Jo lhe enviou algumas cartas escritas por Vincent e o convenceu de que a arte de van Gogh apresentava um novo rumo ao impressionismo, com ares mais sociais e espirituais.
Veth escreveu uma crítica elogiosa sobre os quadros: “Depois de ter compreendido sua beleza, consigo aceitar o homem como um todo”.
Johanna van Gogh-Bonger também conseguiu convencer o artista influente Richard Roland Holst a promover Vincent. Em dezembro de 1892, aliás, van Gogh conseguiu uma de suas primeiras exposições individuais em Amsterdã.
De início, é bem verdade que os críticos rechaçavam a ideia de olhar a vida e obra de Vincent van Gogh como algo único. Mas a perseverança de Jo quebrou paradigmas. Ela fez com que as pessoas enxergassem não apenas um quadro, mas a essência de Vincent, seu trabalho, sofrimento, caos. A arte era a representação mais pura e sincera de sua vida.
Em 1905, Jo foi responsável por organizar sua própria grande mostra no Stedelijk Museum, o mais importante local de exposições de arte moderna em Amsterdã. O evento é considerado a maior exposição de obras de van Gogh já feito em todos os tempos, com 484 trabalhos exibidos, relata o The New York Times.
Quatorze anos após o início de sua missão de tratar o artista e sua arte como uma unidade, Johanna van Gogh-Bonger havia vencido.
Críticos de toda a Europa participaram do evento. Agora, todas as pessoas do mundo da arte conheciam Vincent van Gogh. Toda sua luta, toda sua beleza, seu próprio eu. Suas chagas, cicatrizes, medos e angústias.
Hoje, é natural entender van Gogh e suas obras como algo único, embora nem todos saibam que isso só foi possível graças a Johanna. Ela dedicou sua vida para que a de Vincent fosse eternizada.
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