A BR-230 pretendia povoar a Amazônia. Criada sem planejamento e construída a toque de caixa na ditadura, e parcialmente intransitável nas chuvas, ainda gera polêmica
João Pedro Netto Publicado em 30/10/2018, às 07h00
No dia 6 de junho de 1970, o general Emílio Garrastazu Médici, depois de visitar frentes de trabalho e testemunhar uma das secas mais devastadoras da história do Nordeste brasileiro, fez um discurso no Recife. “Com o velho hábito de comandante de tropa que vela pelo seu último soldado, o chefe da nação não pode compreender a existência de compatriotas vivendo em condições tão precárias”, registrou o presidente da República.
“Não, não me conformo. Isso não pode continuar.” Médici vislumbrou ali a solução para o flagelo da seca. Para usar uma frase que ficou famosa na época, o jeito era levar “homens sem terra para uma terra sem homens”. O caminho de um lugar a outro se chamaria Transamazônica.
Do discurso de Médici à inauguração da estrada, o processo correu em velocidade de Fórmula 1. Dez dias depois da fala presidencial em Pernambuco, foi criado o Plano de Integração Nacional (PIN), no qual a Transamazônica era o projeto prioritário. A concorrência foi lançada no dia 18 de junho e as obras começaram em 1º de setembro, menos de 3 meses após o comício. Foi de estalo. A Superintendência de desenvolvimento da Amazônia (Sudam) fez uma lista dos principais projetos de construção de estradas em 1969. No documento, não havia menção à Transamazônica.
Para conseguir dinheiro para a obra, Médici raspou metade do orçamento da Sudam e da Sudene. Uma estrada, já ensinavam os engenheiros de Roma antiga, serve basicamente para duas coisas. É uma estrutura militar, no sentido de permitir a rápida movimentação de tropas, e também liga áreas de comércio e garante a integração do território. A BR-230, o nome oficial da estrada, não fez uma coisa nem outra. A principal justificativa dos militares, a de integração nacional e a de criação de espaço para o desenvolvimento do homem nordestino, não colou. “Seria mais fácil promover a integração do Sul – desenvolvido, rico, industrial – com o Norte – subdesenvolvido, pobre, agrícola”, escreveram Robert Goodland e Howard Irwin em A Selva Amazônica: do Inferno Verde ao Deserto Vermelho?, de 1975. “A integração do pobre e populoso Nordeste com a pobre e quase despovoada Amazônia só se tornará exequível se os migrantes puderem sustentar a si próprios.”
O governo, porém, sonhava alto. Queria instalar na floresta 500 mil colonos (e esperava-se outro meio milhão de pessoas, que seriam atraídas para a região). Assentar essa multidão ao longo da estrada gerou uma das grandes ficções urbanísticas do Brasil. Os colonos ficariam em agrovilas, implantadas a cada 10 km da via. Os planejadores imaginavam que cada uma teria entre 48 e 64 casas, escola primária, capela ecumênica, armazém, clínica e farmácia. Havia até tamanho definido para cada terreno (de 20 x 80 m a 25 x 125 m).
Além disso, cada família teria uma gleba de 100 hectares, na qual teriam de deixar metade do terreno preservado. A cada 50 km, haveria uma agrópole, que teria 4 agrovilas sob sua jurisdição (cada agrópole teria 500 casas e no máximo 2,5 mil habitantes). Ali funcionariam uma escola secundária, olaria e pequeno comércio – claro, com um posto de gasolina. Por fim, a cada 150 km haveria uma rurópole, com duas agrópoles em sua jurisdição. Parece planejamento soviético, não? Pois nada deu certo. Hoje, existem apenas 20 agrovilas espalhadas pela Transamazônica. “Num primeiro momento, as vilas se estabeleceram em função da mão de obra necessária para a abertura da rodovia”, afirma Geraldo Alves de Souza, da Universidade Federal de Manaus.
“O pessoal foi indo embora junto com o canteiro. Os que continuaram ficaram perdidos, com dificuldades.” Os colonos não tinham crédito, acesso a mercados produtivos e muitas vezes nem terra. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) só conseguiu dar lotes e infraestrutura a 900 famílias. Segundo Pedro Petit, professor da Universidade Federal do Pará (Ufpa), a propaganda do governo “favoreceu a vinda para a Amazônia, sem nenhuma ajuda oficial, de milhares de camponeses sem terra e minifundistas de diversas regiões do Brasil”.
Sem nem chegar perto do que havia sido planejado, a Transamazônica foi inaugurada por Médici em agosto de 1974. Em sua extensão, havia menos de 10% dos colonos imaginados. O marco da inauguração da estrada é um retrato de seu projeto. Sobre o toco de uma grande árvore centenária, em Altamira, no Pará, uma placa de metal dá a notícia do que se fez ali: “Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o sr. Presidente da República dá início à construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a verde”. Pelo menos 4 mil operários trabalharam na construção da estrada.
E enfrentaram uma dura realidade: solo miserável, chuvas torrenciais e doenças tropicais. “A medicina terá de enfrentar a malária, tuberculose, lepra, filariose, verminose, febre amarela e febre tifoide, endemias que nem sempre podem ser controladas, e também as doenças desconhecidas, causadas por vírus ainda não isolados”, alertou o jornalista Alberto Tamer em Transamazônica – Solução para 2001, de 1970.
A estrada, entregue em tempo recorde, segue inacabada até hoje. De acordo com o plano original, ela seria um grande escoadouro da produção brasileira para o Pacífico. De Cabedelo, na Paraíba, o estradão iria até a cidade de fronteira de Benjamin Constant, no Amazonas (e de lá, pelo Peru e Equador, até o Pacífico). Mas seu ponto final foi em Lábrea, 687 km antes. Não há planos de expansão.
Para construir os 4 073 km da Transamazônica, o governo gastou 1,5 bilhão de dólares na época (hoje 7,7 bilhões de dólares). Não foi tarefa de pouca monta. A obra foi quase toda em mata fechada e a extensão da estrada poderia cobrir todo o continente europeu, de Lisboa, em Portugal, a Kiev, na Ucrânia. Mais da metade da estrada, 2,2 mil km, não é asfaltada. Durante o período de chuva, de 6 meses, é quase impossível transitar ali. A maior parte da via não tem sinalização e iluminação. A partir de Marabá, no Pará, quando começa o trecho de floresta, surgem os problemas. No Amazonas, dos 1,5 mil km de estrada, só 14 km são asfaltados. Nos anos 90, caminhoneiros indignados incendiavam as pontes de madeira, que costumavam ceder sob o peso das carretas. A maior parte dos rios da região é atravessado por balsas. Em muitos trechos, a “estrada da integração nacional” é só uma picada. O DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) vai gastar este ano, nos 1,56 mil km do trecho da estrada no Pará (metade deles pavimentado), 700 milhões de reais. Na briga entre homem e natureza, nossa espécie perde por goleada (ainda que cada gol que marque represente uma séria devastação no frágil ecossistema amazônico). A floresta parece não admitir grandes obras.
Foi assim na construção da Madeira-Mamoré, idealizada no meio do século 19, cuja construção foi de 1907 a 1912 e tinha o mesmo objetivo do estradão: fazer a ligação com o Pacífico. A hidrelétrica de Tucuruí, de 1984, é a maior usina 100% brasileira, mas seu lago causou uma tragédia ecológica depois que as árvores submersas começaram a apodrecer e gerar CO2.
A Zona Franca de Manaus, de 1967, enfrenta problemas de logística para abastecer o sul do país. A Transamazônica, que atravessa 7 estados brasileiros, gerou outros convenientes.
As estradas vicinais que partem de seu traçado ajudam a devastar a floresta. “É inegável a relação direta entre desmatamento e a construção de rodovias”, afirma o professor Alves de Souza. “O Brasil precisa decidir se quer uma Amazônia ligada por estradas ou uma Amazônia preservada.” O maior meio de transporte da região ainda é o barco. A Amazônia tem mais de 80 mil km de trechos navegáveis. Um transatlântico poderia avançar 3,7 mil km rio Amazonas adentro. Como dizem os autores de A Selva Amazônica, “de todos os paradoxos da Amazônia, o mais espantoso é o manto de silêncio e ignorância que a envolve”.
A Selva Amazônica: Do Inferno Verde ao Deserto Vermelho?, Robert Goodland e Howard Irwin, Itatiaia/Edusp, 1975
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