imagem ilustrativa de um garoto com a bandeira da Síria pintada em seu rosto - Getty Images
Entrevista

“O relacionamento de Trump com a Ásia tem sido uma parte extremamente importante de sua presidência", afirma Peter Frankopan

Em entrevista exclusiva ao AH, o professor da Universidade de Oxford discorre sobre a importância de sermos menos eurocêntricos e fala sobre a relação EUA-Ásia

Fabio Previdelli Publicado em 23/01/2020, às 15h00

Uma vez, J.R.R. Tolkien foi perguntado como ele começou a escrever o célebre O Senhor dos Anéis. “Sabiamente, comecei com um mapa. Depois, inseri nele a história”. Pode até não parecer, mas a cartografia de um lugar pode nos trazer muitas outras informações do que apenas uma delimitação territorial.

Essa representação nos ajuda a compreender rotas comerciais, religiosas, culturais, redes de estradas e tudo o que é necessário para conhecermos a história do mundo e para nos adaptarmos às mudanças trazidas por novas rotas, que substituem as que já estão ultrapassadas.

É com esse preceito que Peter Frankopan, pesquisador da Universidade de Oxford e um dos maiores expoentes da historiografia contemporânea, publicou, em 2015, o livro The Silk Roads: A New History of the World — que no fim do ano passado ganhou uma versão nacional intitulada O coração do mundo – Uma nova história universal a partir da rota da seda: o encontro do Oriente com o Ocidente, pela Editora Planeta.

O pesquisador acredita que “o coração que mudou a história do mundo está nas terras da Eurásia por onde passava a Rota da Seda”, afinal, a região, composta pelos continentes europeu e asiático, é berço dos maiores impérios da antiguidade e das grandes religiões de alcance universal.

Visão geral da rota da seda, não incluindo a rota para o palácio de Caracórum, na Mongólia / Crédito: Wikimedia Commons

 

Justamente lá, onde se desenvolveram as maiores batalhas da história: das cruzadas às conquistas de Alexandre; da guerra da Criméia às duas guerras mundiais. Na região que, por mais de cem anos, está sendo travada a grande guerra pelo petróleo que sangra o Oriente Médio. Local que está no coração do mundo e era sonho de Adolf Hitler — e de tantos outros conquistadores.

Em entrevista exclusiva ao AH, Peter Frankopan discorre sobre essa visão eurocêntrica que temos do mundo moderno e de como isso nos faz ter uma perspectiva distorcida dessas culturas. “Tem um famoso ditado que diz: ‘a história é escrita por vencedores’. E nos últimos 400 anos, os vencedores foram a Europa, que conseguiram colonizar continentes e construir impérios à custa das populações existentes. Mas esse período do império europeu terminou há muito tempo”.

“No mundo de hoje, nós precisamos argumentar com outras pessoas que ocupam um assento na mesa. A China está ocupada investindo em muitas regiões e países do mundo, inclusive no Brasil. Por quê? Quais são as expectativas? Quais são os riscos? Quais são as alternativas?”, questiona.

O historiador alega que as pessoas que tem uma visão distorcida desses países, são as mesmas que permitem que seus vieses ou preconceitos determinem seus pontos de vista. “As distorções desempenham um papel na criação de tensões, causando mal-entendidos e até causando conflitos. Deveríamos ter aprendido até agora que esse preconceito, racismo e distorções são ruins — e têm sérias consequências”.

Representação do comércio na rota / Crédito: Wikimedia Commons

 

Atualmente, cerca de 65% da população do mundo vive na Ásia. O continente tem se mostrado uma peça essencial na demografia do globo, atraindo cada vez mais olhares para uma região muito importante economicamente, seja pela riqueza cada vez maior de países individuais, ou pelo poder econômico do bloco como um todo.

“Com 4 bilhões de pessoas, a Ásia será onde as mudanças climáticas serão corrigidas ou piorarão. Será onde as tensões que se espalham na guerra podem ter consequências globais. Será onde a escassez de água ou alimentos pode trazer problemas quase inimagináveis em sua escala. Então, é onde tudo importa”, explica Frankopan.

Encantado e surpreso pelo sucesso de seu livro — que foi nomeado um dos 25 mais importantes já traduzidos para o chinês — o britânico se enche de orgulho ao dizer que sua obra foi descrita na Alemanha como “não apenas o livro mais importante escrito em décadas, mas o mais importante escrito em gerações".

Desde que foi publicado originalmente, Peter foi convidado para inúmeras reuniões regulares com presidentes, chefes de estado, ministros de Relações Exteriores e os mais diferentes tipos dos chamados tomadores de decisões.

Ilustração de uma Caravana de camelos descansando durante trajeto na Rota da Seda / Crédito: Getty Images

 

“Eu acabei de voltar de um encontro com o ministro de Relações Exteriores da Irlanda, a quem ajudei com o lançamento de uma nova estratégia para a Ásia-Pacífico. Também me pedem muito para conversar com as grandes corporações globais sobre sua estratégia e como usar a história para entender o presente e o futuro”.

Apesar da grande concorrência, o historiador garente que sua função na Universidade de Oxford permanece inalterada. “Meu trabalho principal como professor da melhor universidade do mundo permaneceu o mesmo. Minha cabeça não é facilmente virada por elogios e, embora seja adorável ser descrito como um 'historiador rock star' ou um dos 50 maiores pensadores do mundo, sou mais feliz quando estou na biblioteca ou tentando organizar meus próprios pensamentos. Portanto, tenho muita sorte de ter muito mais ofertas do que posso lidar — e isso significa que tenho o luxo de poder escolher as que são mais interessantes”.

Podemos dizer que o sucesso do britânico seja a realização de um sonho de criança, que foi amadurecendo assim com ele. Como o próprio Peter explica em seu livro, sua relação com a história começou muito cedo. Durante sua infância, uma de suas posses mais queridas era um grande mapa-múndi. “Ele ficava dependurado na parede ao lado da minha cama, e eu o observava toda noite antes de dormir. Em pouco tempo, sabia de cor os nomes e a localização de cada país, suas capitais, oceanos e mares, e os rios que corriam por eles”.

Entretanto, depois de um tempo, aquilo já não mais satisfazia todos seus anseios por descobrir o mundo. O pequeno Frankopan sentia um certo desconforto com o foco geográfico de suas aulas ser sempre muito estreito, se resumindo apenas à Europa Ocidental e aos Estados Unidos — deixando a maior parte do resto do mundo intocada.

“Quando completei catorze anos, meus pais me deram um livro do antropólogo Eric Wolf, que acendeu o estopim. A história preguiçosa e aceita da civilização, escreve Wolf, é aquela em que ‘a Grécia Antiga gerou Roma, Roma gerou a Europa cristã, a Europa cristã gerou o Renascimento, o Renascimento o Iluminismo, o Iluminismo a democracia política e a Revolução Industrial. A indústria, por sua vez, cruzou com a democracia e produziu os Estados Unidos, que incorporaram os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade’”.

Caravana na Rota da Seda / Crédito: Getty Images

 

“Reconheci de imediato que era exatamente essa a história que haviam me contado: o mantra do triunfo político, cultural e moral do Ocidente. Mas era um relato falho; havia maneiras alternativas de olhar para a história, que não envolviam tratar o passado sob o enfoque dos vencedores da história recente”.

E foi esse pensamento que fez, anos depois, Peter Frankopan propor uma nova visão da história, de apresentar as relações inesperadas entre os eventos do passado e de nos encorajar em ver os acontecimentos do presente com um olhar diferente. Tudo isso, com um toque original e provocativo, o que fez O Coração do Mundo alcançar o reconhecimento e uma relevância ímpar.


Confira nossa entrevista com Peter Frankopan:

AH: Por que precisamos ser menos eurocêntricos?

PF: Atualmente, cerca de 65% da população do mundo vive na Ásia. Isso tem um impacto direto nos preços que as pessoas pagam pela gasolina ou por alimentos em São Paulo ou Salvador, por exemplo. Assim como quem possui, administra ou trabalha em hotéis no Rio de Janeiro ou em Curitiba se acostumarão a encontrar pessoas que viajam de países dos quais não conhecem nada, mas de quem dependem dos negócios deles.

Portanto, essa nova realidade sobre o mundo exige que tenhamos uma mente mais aberta para que nos preparemos para o presente e o futuro. Mas isso, também exige perguntas de como vemos o passado: quem são as grandes figuras da história da China, Índia, Japão ou Irã? Como é possível que não conheçamos nenhum deles — a maioria das pessoas não pode sequer mencionar um único nome.

Com a mudança da economia global, e o surgimento de novas oportunidades — e ameaças — políticas, militares, econômicas e digitais, como podemos esperar entender outras pessoas no mundo se não soubermos nada sobre elas?!

Aliás, todos sabem muito sobre quem somos. Portanto, esse é um desequilíbrio real que devemos resolver rapidamente.


AH: Você acredita que Ocidente está enfraquecido?

PF: Depende o que o ‘Ocidente’ realmente significa. Os Estados Unidos têm uma série diferente de opções, oportunidades e desafios para o Brasil, por exemplo. Os EUA ainda são de longe a maior economia do mundo e têm a capacidade de continuar se reinventando com sucesso.

Peter Frankopan / Crédito: Getty images

 

No entanto, quando se trata da Europa, as coisas são muito mais complicadas. Trabalhamos aqui com a União Europeia no centro de assuntos comerciais, embora, é claro, o Reino Unido esteja saindo com o Brexit no final deste mês.

O problema para a União Europeia, porém, é exatamente onde isso ocorre em um mundo dominado pelos Estados Unidos, por um lado, e pela China, por outro e, é claro, em relação à Rússia, Irã, Oriente Médio e Índia.

Nesse sentido, o desafio no oeste europeu é que não há um plano que tenhamos de lidar com cada um desses problemas, individual ou coletivamente. A Europa pode ser politicamente unida, pensar e responder coletivamente quando se trata de questões digitais, de recursos ou militares? Meu palpite seria não. E isso é uma fraqueza.


AH: O governo Trump mudou o relacionamento dos EUA com o Oriente?

PF: Sim, embora Trump seja simplesmente o mais recente a tentar fazê-lo. Afinal, podemos pensar no "pivô" de Obama com a Ásia; ou nas intervenções de George W. Bush no Oriente Médio e no Afeganistão; ou até na adesão da China à OMC em 2001, que foi em grande parte obra do presidente Clinton.

Parece-me que Trump teve mais sucesso do que qualquer um de seus antecessores na mudança desse relacionamento. Antes de tudo, ele enfrentou a China em uma guerra comercial contundente que parece ter atingido alguma resolução menor recentemente.

Mas ele também está lidando com o Irã e a Rússia de uma maneira muito mais agressiva do que outros fizeram no passado recente. Ele também intensificou o relacionamento com a Coréia do Sul, o Japão e a Índia, todos importantes parceiros econômicos, mas também estratégicos, mas também concorrentes em alguns campos.

Portanto, o relacionamento de Trump com a Ásia tem sido uma parte extremamente importante de sua presidência, talvez até sua característica definidora. De fato, costuma-se dizer que Trump foi eleito presidente precisamente para ser capaz de assumir as economias asiáticas e, sobretudo, a China — então, a Ásia é o maior desafio que os Estados Unidos enfrentam hoje.


AH: Qual é o verdadeiro interesse dos Estados Unidos no conflito com o Irã?

FP: O interesse real é que os Estados Unidos reconheçam que o regime no Irã é extremamente fraco como resultado da maneira como o país administra há muitos anos, que claramente não é eficiente nem frequentemente competente.

Também reconhece que as sanções levaram a economia iraniana a chegar ao ponto de ruptura. Portanto, este é o momento em que o máximo de pressão pode ser aplicado ao Irã, e parece que a suposição do presidente Trump é que essa é uma boa maneira de obter um acordo muito bom do governo de uma maneira ou de outra.


AH: Você acha que os ataques dos dois países podem se estender?

FP: A resposta simples é que eu não sei e acho que ninguém sabe. Seria razoável pensar que o Irã tentaria retaliar após a morte de seu principal general, mas eles também sabem que tudo o que fizerem levará a uma resposta dos Estados Unidos. Isso significa que as regras do jogo são muito incertas e também altamente imprevisíveis.


AH: Trump usou a guerra para ser reeleito?

FP: É verdade que os países que entram em guerra estão em guerra para obter fortes resultados para o presidente em exercício. No entanto, no caso de Trump, não acredito que ele pense dessa maneira.

Trump não é um estrategista, mas ele é um político muito eficiente e um “streetfighter “ muito eficaz que acredita que pode lidar com as consequências como e quando elas chegarem. E ele pode estar certo, pelo menos no curto prazo.

Capa do livro O Coração do Mundo / Crédito: Divulgação Editora Planeta

 

O problema é que as ações de Trump instruem outras pessoas a aprender com seu exemplo e se comportam da mesma maneira, mas também podem unir outros estados. E isso pode ter um significado muito sério a longo prazo para os Estados Unidos.


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