As atrizes Eva Todor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengell em protesto de 1968 - Reprodução/Câmara Municipal de Ipatinga
Ditadura Militar

A história por trás da foto da passeata de artistas conta a censura na ditadura

Imagem que mostra a atriz Leila Diniz, entre outras personalidades, foi usada fora do contexto político e gerou processo contra Regina Duarte

Fabio Previdelli Publicado em 20/07/2023, às 17h14

A filha da atriz Leila Diniz, Janaina Diniz Guerra, está processando a atriz Regina Duarte e o Partido Liberal (PL). A medida alegada foi pelo uso indevido de imagem e "violação à honra" de Leila, visto que os acusados usaram uma foto da atriz tirando-a de contexto.

Tal registro é referente a um protesto contra a ditadura militar que ocorreu em 1968. Na ocasião, além de Leila, as atrizes Eva Todor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Odete Lara e Norma Bengell também participaram do ato. Mas, afinal, o quê motivou o processo e qual o contexto da imagem?

Revisionismo histórico

Em dezembro de 2022, Regina Duarte usou a foto de maneira indevida em uma publicação que fez seu Instagram pessoal. Na ocasião, a atriz bolsonarista postou um vídeo defendendo a ditadura militar e também reproduzia um discurso do então presidente Jair Bolsonaro — aquela altura já derrotado democraticamente nas eleições — que defendia o Golpe de 1964.

Regina Duarte em entrevista/ Crédito: Reprodução/Video

 

"64 foi uma exigência da sociedade" e "as mulheres nas ruas pediam o restabelecimento da ordem" eram algumas das frases contidas no vídeo. Foi justamente na segunda delas que a foto com Leila Diniz foi mostrada.

Já em fevereiro deste ano, em comemoração à conquista do voto feminino, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro apareceu em um vídeo onde a fotografia é usada como plano de fundo.

Por conta disso, Janaina entrou com as medidas judiciais. "A memória de minha mãe é de total ruptura com todo o conservadorismo defendido pelo PL e por Michelle Bolsonaro que, em sua época, foi imposto pela ditadura militar, regime ao qual ela se opôs", diz uma nota divulgada por seus advogados.

O uso político, não autorizado, da imagem de minha mãe respaldando a pré-campanha de Michelle Bolsonaro é uma ofensa a tudo que minha mãe representou e representa", prossegue.

A filha de Leila Diniz também comenta sobre o uso da imagem por Regina Duarte. "Quanto à Regina Duarte, respeito suas posições políticas, embora discorde por completo, mas é inadmissível que ela inverta por completo a realidade utilizando a imagem de suas colegas como se tivessem ido às ruas pedir intervenção militar, quando o protesto era justamente contra a censura imposta pela ditadura. É uma mentira publicada em suas redes como forma de incitação aos tenebrosos atos de 8 de janeiro".

Sendo assim, em cada uma das medidas judiciais, a produtora Janaina Diniz Guerra pede um valor de R$ 52.800 — quantia que é o valor limite do juizado cível.

O contexto da foto

A foto em questão, que estampa a capa desta reportagem, remete ao dia 12 de fevereiro de 1968. Naquela segunda-feira ensolarada no Rio de Janeiro, artistas protestaram nas escadarias do Teatro Municipal contra a Censura Federal. O ato aconteceu um dia depois do começo da greve de atores, atrizes, diretores, empresários e produtores teatrais que fecharam os palcos da cidade.

Conforme recorda matéria do O Globo, a intenção da marcha era relatar indignação contra a falta de critério dos censores — considerados despreparados intelectualmente. Àquela altura, os agentes, que não possuíam formação cultural, proibiam produções pelo uso de termos de "baixo calão" ou de frases consideradas subversivas à ordem e aos "bons costumes".

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O grande motivo da revolta artística aconteceu devido ao veto do texto "Um bonde chamado desejo" escrito por Tennessee Williams, que seria adaptado em uma peça no brasiliense Teatro Martins Pena.

Jornais da época repercutiram que os agentes da censura pediram para que várias cortes fossem feitos no texto, mas durante a estreia da peça, a atriz Maria Fernanda não acatou os 'conselhos' e seguiu a escrita na íntegra. Uma das reclamações dos censores era o termo "gorila", usado para descrever o personagem ex-militar Stanley Kowalski.

Maria Fernanda se revoltou ao ser chamada para dar explicações no gabinete do chefe da censura e chamou os agentes de "totalitários, ditatoriais e prepotentes". A atriz acabou impedida de atuar durante 30 dias e a peça foi proibida.

Assim, em 11 de fevereiro, artistas se reuniram no Teatro Princesa Isabel, no Leme. A data também marca a criação de uma comissão para liderar o movimento — que tinha como líderes personalidades como Cacilda Becker, Chico Buarque, Odete Lara e Marieta Severo.

Tônia Carreiro, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Benghel e Cacilda Becker em protesto contra a censura artística/ Crédito: Arquivo Nacional

 

Na mesma ocasião, os representantes se encontraram com Negrão de Lima, governador do Estado da Guanabara. Entretanto, o político também era uma força de oposição e não conseguiu ajudar as reivindicações exigidas.

Desta forma, no dia seguinte, as escadas do Teatro Municipal foram tomadas, onde os artistas recolheram assinaturas das pessoas para lutar contra a censura de produções. Importante ressaltar que, até aquele período, manifestações dessa natureza ainda aconteciam, mas todas foram silenciadas depois do brutal Ato Institucional n.º 5, AI-5, que passou a vigorar em 13 de dezembro.

Consequências do protesto

Nos protestos, os artistas criticavam a falta de critérios usadas pelos censores. Segundo a edição do jornal Globo daquele 12 de fevereiro, a peça "Um bonde chamado desejo" esteve em cartaz durante 13 anos antes de sofrer censuras. Já "Senhora na boca de lixo" havia sido proibida por aqui, enquanto em Portugal, que vivia um regime com a censura "mais rigorosa que a do Brasil", permitiu sua exibição.

Por esses motivos, os manifestantes exigiram a reformulação da Censura Federal e que lhes fossem garantidos a liberdade de criação. O ato culminou em uma audiência, em 13 de fevereiro, com o jurista Luís Antonio da Gama e Silva; então ministro da Justiça. O encontro contou com as participações de Chico Buarque, Djanira, Nelson Rodrigues, Tonia Carreiro e Carlos Scliar.

O grupo também apresentou uma petição assinada por mais de 10 mil pessoas. Em um primeiro momento, Gama e Silva mostrou certa receptividade com as reivindicações e confidenciou que também tinha ressalvas aos censores, recorda O Globo.

Após a reunião, centenas de artistas de dirigiram em uma passeata pelo Aterro do Flamengo em direção ao Monumento aos Mortos na Segunda Guerra Mundial. Eva Wilma recordou o momento em entrevista ao programa Encontro com Fátima Bernardes em 2018:

"A gente estava encerrando uma greve de três dias e três noites nas escadarias do Teatro Municipal. A gente ficava se revezando. Combinava quem ficava das 2h às 4h da madrugada e por aí vai".

Eu estava em cartaz no Rio [com a peça "Black out", no Teatro da Aliança Francesa]. O encerramento foi programado dessa maneira, as atrizes na linha de frente, levando flores para o monumento no Aterro. Foram momentos de luta, de batalha", descreveu.

A intenção do grupo era colocar coroas de flores no monumento que homenageia aqueles que lutaram pela "democracia e liberdade". Porém, o Exército impediu a ação, alegando que o espaço já estava fechado.

Embora um otimismo tenha sido aceso no encontro com o ministro, o governo não cessou suas práticas e reafirmou ainda mais a censura contra as artes. Um exemplo disso foi a invasão do Teatro Galpão, em São Paulo, pelo grupo para-militar Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que agrediu o elenco de Roda Viva.

Por conta disso, os artistas estreitaram ligações com o movimento estudantil, principalmente após o assassinato do secundarista Edson Luís, que culminou com a Passeata dos Cem Mil. Como já dito, porém, o ano terminou de forma sombria com a implementação do AI-5.

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