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Cultura

Harry Potter: A inspiração por trás da magia

Neste dia, em 1965, nascia J.K. Rowling, a criadora de um dos mais fascinantes universos literários. Conheça os mitos, lendas e costumes que inspiraram esta história

Flávia Ribeiro Publicado em 31/07/2019, às 14h00

Misture crenças da Idade Média e da Idade Moderna, adicione mitologias da Antiguidade e tempere com boas pitadas de invenção: eis a receita do estrondoso sucesso de Harry Potter

Harry Potter é o bruxinho mais famoso do mundo, certo? Não exatamente. Suas características principais, na verdade, têm mais a ver com as dos magos da Idade Média, que ocupavam lugar de destaque ao lado de reis e rainhas (e nada têm a ver com bruxas que voam de vassoura).

Como o personagem criado pela inglesa J.K. Rowling, os magos medievais também tinham grandes conhecimentos sobre supostos encantos e feitiçarias. A diferença é que a mágica do jovem Harry funciona para valer - não só na ficção, mas no mercado literário e cinematográfico. Os cinco primeiros volumes criados pela escritora venderam 250 milhões de exemplares em todo o mundo, 2 milhões só no Brasil, e foram traduzidos para 62 idiomas.

J.K. Rowling com o último livro da saga / Crédito: Reprodução

 

Os fãs aguardaram ansiosamente durante sete livros para conferir o embate final entre Harry Potter e Lord Voldemort. Durante a saga, Harry usou as habilidades que aprendeu na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Essa instituição fictícia, aliás, nos dá as primeiras pistas de que J.K. Rowling se inspirou em fatos históricos para compor os cenários, personagens e situações de suas tramas.

A milenar Hogwarts ensina a seus alunos os segredos de alquimia, astrologia e cabala, além das artes da adivinhação e dos feitiços e poções. Exatamente como ocorria em Toledo, cidade espanhola que foi a capital moura na Europa e se tornou um centro em que magos aprendiam as chamadas ciências ocultas e buscavam a pedra filosofal, que transformaria qualquer metal em ouro e produziria o elixir da vida.

Um dos seus mais ilustres alunos foi o suíço Paracelso, que viveu entre o fim do século 15 e o início do 16. Ele afirmava ter aprendido muito com as feiticeiras e, por ter criado remédios e terapias curativas, é considerado um dos fundadores da química e da medicina modernas.

Paracelso é um exemplo de como, apesar de não fazerem mágica, os magos tinham uma grande relevância cultural e social, inclusive por cuidar da saúde das pessoas. "Os magos eram eruditos, estudavam para tentar conseguir intervir nas forças da natureza por meio de segredos e práticas ocultas", diz o historiador Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, professor da Universidade de São Paulo e autor de Bruxaria e História: as Práticas Mágicas no Ocidente Cristão.

Além dos magos, ligados à nobreza, havia também as feiticeiras. Personalidades importantes nas comunidades da Idade Média, eram mulheres que conheciam ervas, faziam poções, lançavam feitiços e divulgavam superstições.

Já as bruxas surgiram posteriormente, na Idade Moderna: eram mulheres consideradas participantes de uma seita que tinha pacto com o diabo.

"As bruxas representariam o mal e eram perseguidas e queimadas na fogueira, onde as feiticeiras também acabaram parando. Os magos não, eles continuaram a ser respeitados", diz Nogueira.

Admirador dos livros de J.K. Rowling, o professor Nogueira ressalva que, embora a escritora tenha feito um bocado de pesquisa, muitas vezes foi às fontes erradas. "Harry é um jovem mago, mas usa a vassoura das bruxas e aprende poções de feiticeiras. A autora fez uma colagem de elementos do universo mágico, mas usou coisas do esoterismo que surgiu no fim do século 19, quando apareceu muita fantasia sobre as origens da bruxaria."

Durante as aventuras do mago, J.K. Rowling menciona lendas antigas, como a do alquimista Nicolau Flamel, que no século 14 teria encontrado a tal pedra filosofal e o elixir da vida eterna - em A Pedra Filosofal ele aparece com mais de 600 anos.

Grandes personalidades da história da magia, aliás, são o tema do álbum de figurinhas que faz o maior sucesso entre os estudantes de Hogwarts. Alguns verdadeiros, como Paracelso e o germânico Cornélio Agrippa de Nettesheim (1486-1535) - médico da casa real de Savóia, na França, ele escreveu De Occulta Philosophia, livro que atraiu a atenção dos renascentistas para a cabala e a magia.

Entre as figurinhas, que vêm como brinde nas embalagens de um quitute chamado "sapo de chocolate", há também magos fictícios, como a grega Circe, que usa suas poções na Odisséia, de Homero. E na coleção não poderia faltar Merlin, poderoso conselheiro dos reis britânicos Uther Pendragon e Artur.

Abracadabra?!

O Lorde das Trevas lançando o feitiço avada kedavra / Crédito: Reprodução

 

O feitiço mais letal descrito nos livros de J.K. Rowling é o avada kedavra, usado por Lord Voldemort para matar os pais de Harry Potter (o jovem se torna famoso por ter sido o único a sobreviver a esse encanto, carregando apenas uma cicatriz em forma de raio na testa).

Segundo o escritor David Colbert, que em O Mundo Mágico de Harry Potter analisa mitos e lendas presentes na série, a expressão viria do aramaico abhadda kedhabra, que significava "desapareça deste mundo" e era usada por antigos feiticeiros para curar doenças.

A semelhança com a mais famosa das palavras mágicas não é mera coincidência: essa seria a origem do termo "abracadabra", empregado desde a Antiguidade também para curar doenças e, principalmente, baixar a febre. Ela era usada, por exemplo, pelo médico e escritor romano Quinto Sereno Samônico, que, por volta do ano 200, acompanhava o imperador Sétimo Severo.

Como conta o inglês Daniel Defoe em Diário do Ano da Peste, escrito em 1722, a abracadabra chegou a ser usada contra a peste negra, já no século 17. Nascida como coisa séria, ela atravessou milênios para se transformar em parte do vocabulário de mágicos que animam festas infantis. A diferença é que, na realidade histórica, ela era usada para o bem. Já o Avada Kedavra dos livros de Harry Potter é um feitiço do mal, empregado para matar. J.K. Rowling, aliás, criou vários feitiços, a maioria com nomes baseados no latim (como o petrificus totalus, que paralisa suas vítimas).

As mulheres tidas como bruxas na vida real não usavam feitiços, mas parecem ter servido de inspiração para caracterizar os Comensais da Morte, o grupo de seguidores do terrível Voldemort. Todos eles têm uma tatuagem conhecida como Marca Negra, o que provavelmente é uma referência à chamada Marca do Diabo, que na Idade Moderna era atribuída às bruxas. Naqueles tempos, qualquer verruga ou pinta maior poderia ser vista como a tal marca e fazer uma mulher ir parar na fogueira.

A mandrágora, planta usada em poções de amor das feiticeiras da Idade Média, também faz sua aparição na série. Devido à forma de sua raiz, que lembraria o corpo humano, criou-se a crença de que ela berraria ao ser arrancada do solo, e que seu grito seria fatal para quem o ouvisse.

Em Harry Potter e a Câmara Secreta, segundo livro da saga, os alunos de Hogwarts aprendem com a professora Sprout que a mandrágora pode ser usada em tônicos que libertam pessoas de feitiços. O poder curativo da planta nos livros se justifica historicamente: ela foi mesmo usada em poções analgésicas e calmantes desde a Antiguidade.

Os alunos e a professora Sprout segurando uma mandrágora / Crédito: Reprodução

 

Além do famoso vegetal, a série conta com dezenas de animais fantásticos, especialmente em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban.

É nesse volume, o terceiro, que o grandalhão Hagrid se torna professor de Trato de Criaturas Mágicas em Hogwarts. Bichos míticos e lendários, na maioria das vezes perigosos, são tratados por ele como se fossem animais de estimação.

Alguns seres monstruosos descritos por J.K. Rowling não são domesticáveis. Já animais cercados de misticismo, como sapos, gatos, ratos e corujas, servem de mascote em Hogwarts. Hermione, a grande amiga de Harry, tem um gato. Rony Weasley, seu melhor amigo, tem um rato. O próprio Harry possui a coruja Edwiges, animal que na Idade Moderna era tido como o mensageiro das bruxas.

Já o professor Remo Lupin não tem um bicho, mas, contra sua vontade, transforma-se em um perigoso lobisomem nas noites de lua cheia. Ao contrário dele, os feiticeiros que J.K. Rowling chama de animagos viram bichos intencionalmente, sem perder seus poderes (é o caso de Perebas, o rato de Rony, que depois revela ser Pedro Pettigrew).

Entre os poucos que têm esse dom estão a professora McGonagall, que vira gato, Tiago Potter, pai de Harry, que sabia se transformar em cervo, e seu padrinho, Sirius Black, que se transforma em um cão.

Se o termo animago é novo e surgiu da inventividade da escritora inglesa, a capacidade de se tornar animal é antiga: na mitologia grega, por exemplo, Proteu se transformava em vários bichos.

De Ulisses a Luke

Por trás de tantas referências a fatos históricos e figuras míticas, a estrutura das aventuras de Harry Potter é semelhante à trajetória de vários heróis que o precederam.

O caminho percorrido por ele lembra, por exemplo, a vida de Édipo e Ulisses, inventados na Grécia antiga, e a do rei Arthur, personagem da Idade Média. Mais recentemente, podemos ver que Harry tem coisas em comum até com Luke Skywalker, da saga cinematográfica Guerra nas Estrelas.

Em O Herói de Mil Faces, o mitólogo Joseph Campbell estabelece um padrão para essas histórias, que ele chama de jornada do herói. Na "Partida", que é o primeiro passo, o personagem recebe um chamado para uma aventura, sai de seu mundo habitual e ganha um mentor. É o que acontece com Harry quando ele é chamado para estudar em Hogwarts e conhece o sábio mago Dumbledore (Luke, por exemplo, sai da casa dos tios para seguir o mestre Obi-Wan Kenobi).

Campbell descreve o segundo momento como as "Provas e Vitórias da Iniciação", em que o herói é posto à prova, reconcilia-se com o pai e recebe a graça última. É essa a trajetória de Harry depois de entrar em Hogwarts: ele enfrenta desafios maiores a cada ano e, em A Ordem da Fênix, aprende muito sobre a personalidade do pai.

A terceira etapa descrita por Campbell se chama "Regresso e Reintegração na Sociedade", em que o herói faz o árduo caminho de volta às origens e, vitorioso, ganha liberdade para viver sua vida. Harry alcança essa etapa após seu grande duelo com Voldemort no sétimo e último livro.

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