O número de homens e mulheres atirados ao mar era tão alto que até fez com que peixes mudassem suas rotas migratórias, à espera dos corpos que serviam de comida
Laurentino Gomes Publicado em 09/04/2020, às 10h00 - Atualizado em 13/05/2022, às 10h00
Por volta de 1750, o horror dominava as serras e os vales próximos à Feira de Cassanje, interior de Angola, assim descrito pelo historiador norte-americano Joseph Miller: Ali as pessoas matavam e eram mortas como se a vida nada valesse. Não usavam roupas e consumiam carne humana e insetos vivos. Os cadáveres eram jogados nas estradas e devorados pelos famintos que por elas trafegavam.
Quando estranhos se aproximavam, os fugitivos se escondiam na copa das árvores e atacavam todos os forasteiros que julgassem capazes de dominar. As guerras, agravadas por secas arrasadoras, produziram uma devastação tão absoluta que os mais jovens sobreviviam apenas da captura, do consumo e da venda de outros. Cerca de 90% da população envolvida nos conflitos acabou dizimada. O território ficou quase completamente desabitado.
Nos dois séculos anteriores, o perímetro da escravidão tinha avançado continente adentro por cerca de 800 quilômetros, como um tsunami colossal que, partindo do litoral atlântico, tivesse devastado o interior africano. As razias tinham começado nas zonas mais próximas do litoral entre 1520 e 1570 e progrediram rapidamente – cerca de 30 quilômetros cada década –, à medida que aumentava a demanda por cativos
do outro lado do oceano.
Assim, a busca desenfreada por escravos chegou à região de Cassanje. E assim continuaria ainda por mais 100 anos. Na metade do século 19, às vésperas da abolição do tráfico negreiro no Brasil, já atingira o miolo do continente, a quase 2 mil quilômetros do litoral e a meio caminho entre Luanda, no Atlântico, e a Ilha de Moçambique, no Oceano Índico, de onde outra onda de devastação partira com igual força.
A fronteira de captura, sequestros, compra e venda de escravos tinha penetrado até o coração do continente, mas nem por isso haveria paz nas zonas pioneiras de fornecimento de mão de obra cativa. Ao contrário, por volta de 1830, cerca de 80% de todos os escravos que chegavam ao Brasil ainda tinham como origem regiões costeiras de Angola – prova de que a drenagem sistemática de moradores desses territórios se manteve inalterada ao longo de todo o período do tráfico negreiro. “A destruição constante de Angola se apresenta como a contrapartida da construção contínua do Brasil”, observou o historiador Luiz Felipe de Alencastro.
Na esteira da grande onda escravagista ficava um cenário de morte e ruína. No século 18, uma vasta região, de aproximadamente 2,5 milhões de quilômetros quadrados, o equivalente a quase um terço da área territorial brasileira, onde hoje se situam Angola e os dois Congos (a República do Congo e a República Democrática do Congo), estava dominada pela guerra e pelo medo.
Era um lugar altamente instável e perigoso devido ao regime de terror implantado pela ferocidade dos guerreiros e dos captores de escravos. Milhares de habitantes procuravam abrigo nas densas florestas e nas montanhas, todos fugindo dos conflitos e sequestros que alimentavam o tráfico atlântico.
Jan Vansina, historiador e antropólogo belga, reproduziu uma interessante descrição da chegada dos portugueses a Angola, a guerra contra o angola de Quiluanje (título do rei ou soberano local) e o início do tráfico de escravos. A narrativa faz parte da tradição oral do povo pende, que, no século 16, vivia próximo do litoral e, pressionado pelo tráfico negreiro, se transferiu para o interior do continente. A história se refere a navios alados – aos olhos dos africanos, as velas das naus portuguesas lembravam asas: Um dia, os homens brancos chegaram em navios com asas que brilhavam como facas ao sol.
Travaram duras batalhas com o angola e cuspiram- lhe fogo. Conquistaram as suas salinas e o angola fugiu para o interior [...]. Alguns dos seus súditos mais corajosos ficaram junto ao mar e, quando os homens brancos vieram, trocaram ovos e galinhas por tecidos e contas. Os homens brancos voltaram outra vez ainda. Trouxeram-nos milho e mandioca, facas e enxadas, amendoim e tabaco. Desde então e até os nossos dias, os brancos nada nos trouxeram senão guerras e misérias.
Joseph Miller faz um cálculo assustador a respeito da mortalidade no tráfico de cativos no Atlântico. Ainda na África, entre 40% e 45% dos negros escravizados morriam no trajeto entre as zonas de captura e o litoral. Dos restantes, entre 10% e 15% pereciam durante o mês que, em média, ficavam à espera do embarque nos portos africanos. Em Benguela, um dos principais portos negreiros de Angola, até o final do século 18, os traficantes simplesmente se livravam dos cadáveres jogando-os nas praias e nos rios.
Muitos eram depositados nos esgotos a céu aberto da cidade. Dos sobreviventes que embarcavam nos navios negreiros, outros 10%, em média, morreriam na travessia do oceano. Na etapa seguinte, a do desembarque na América, mais 5% perdiam a vida durante o processo de venda e transporte para os locais de trabalho – muitas vezes situados em minas ou lavouras no interior distante, o que exigia longas caminhadas a pé por trilhas perigosas e traiçoeiras.
Por fim, mais 15% faleceriam nos três primeiros anos de cativeiro em terras do Novo Mundo. As estimativas de Miller sugerem que, de cada grupo de 100 escravos capturados no interior da África, apenas 40 sobreviveriam ao final dessa extensa jornada entre os locais de captura e o destino final da viagem, do outro lado do Atlântico. Em torno de 60% do total perderiam a vida pelo caminho.
Traduzindo em números absolutos, ao longo de mais 350 anos, entre 23 milhões e 24 milhões de seres humanos teriam sido arrancados de suas famílias e comunidades em todo o continente africano e lançados nas engrenagens do tráfico negreiro. Quase a metade, entre 11 milhões e 12 milhões de pessoas, teria morrido antes mesmo de sair da África. Hoje estima-se com relativa segurança que aproximadamente 12,5 milhões de cativos foram despachados nos porões dos navios, mas só 10,7 milhões chegaram aos portos do continente americano.
O total de mortos na travessia do oceano seria de 1,8 milhão de pessoas (portanto, superior aos 10% citados por Miller para o caso de Angola). Dado o alto índice de mortalidade após o desembarque, apenas 9 milhões de africanos teriam sobrevivido aos tormentos dos três primeiros anos de escravidão no novo ambiente de trabalho. A história da escravidão africana no Brasil é repleta de dor e sofrimento.
Centenas de livros já foram escritos sobre o tema, mas, provavelmente, nenhum deles conseguirá jamais expressar as aflições de um único cativo dos milhões capturados na África, embarcados à força em um navio, arrematados como mercadoria qualquer num leilão do outro lado do oceano, numa terra que lhes era completamente estranha e hostil, onde trabalhariam pelo resto de suas vidas sob o chicote e o tacão de seu senhor.
Um detalhe, porém, talvez ajude os leitores de hoje a ter uma ideia, ainda que remota, do tamanho dessa tragédia: diz respeito ao comportamento dos tubarões que seguiam as rotas dos navios negreiros. Durante mais de três séculos e meio, o Atlântico foi um grande cemitério de escravos.
Era no mar, durante a travessia, que as cifras de mortalidade ficavam mais evidentes: como escravos representavam um “investimento”, uma mercadoria valiosa do ponto de vista dos traficantes, cada óbito tinha de ser registrado nos chamados Livros dos Mortos pelos capitães dos navios, ao lado de diversos outros itens que apareciam nas colunas de crédito e débito dos relatórios
de contabilidade.
Por isso, os números de mortos durante esse tipo de viagem são mais precisos do que os das demais travessias náuticas da época, geralmente baseados em estimativas. Isso permite fazer hoje um cálculo assustador. Se, entre o início e o final do tráfico negreiro, pelo menos 1,8 milhão de cativos morreram durante a travessia, isso significa que, sistematicamente, ao longo de 350 anos, em média, 14 cadáveres foram atirados ao mar todos os dias. Por essa razão, os navios que faziam a rota África-Brasil eram chamados de “tumbeiros”, ou seja, tumbas flutuantes.
Alguns exemplos ajudam a dar uma noção mais precisa desses números. Em 1805, um brigue sob o comando do capitão Félix da Costa Ribeiro partiu da região de Biafra com 340 escravos, dos quais 230 morreram nos 40 dias de travessia até Salvador. Portanto, esse navio, sozinho, teria lançado ao mar entre cinco e seis cadáveres por dia, média semelhante à do Protector, que teve 151 mortos na viagem de 50 dias entre Luanda e o Rio de Janeiro. No caso do brigue Flor da Bahia, que perdeu 192 dos 557 cativos embarcados de Moçambique para Salvador, uma viagem de cerca de 70 dias, a média de corpos atirados da amurada do navio teria sido de quase três por dia.
Morria-se de doenças como disenteria, febre amarela, varíola e escorbuto. Morria-se de suicídio – escravos que, tomados pelo desespero, aproveitavam-se de um descuido dos tripulantes, subiam à amurada das embarcações e jogavam- se ao mar.
Por essa razão, os navios negreiros geralmente eram equipados com redes estendidas ao redor do deque superior, para prevenir esses atos. Morria- se, ainda, de banzo, nome dado pelos africanos para o surto de depressão muito frequente entre os cativos. Alguém acometido por banzo parava de comer, perdia o brilho no olhar e assumia uma postura inerte enquanto suas forças vitais se esvaíam no prazo de poucos dias.
“O banzo é um ressentimento entranhado por qualquer princípio, como a saudade dos seus ou de sua pátria”, descreveu, no final do século 18, Luís Antônio de Oliveira Mendes, advogado português nascido na Bahia. “É uma paixão da alma a que se entregam que só é extinta com a morte.” Os cadáveres eram então atirados por sobre as ondas, sem qualquer cerimônia, às vezes sem ao menos a proteção de um pano ou lençol, para serem imediatamente devorados por tubarões e outros predadores marinhos.
Segundo inúmeras testemunhas da época, mortes tão frequentes e em cifras tão grandes fizeram com que esses grandes peixes mudassem suas rotas migratórias, passando a acompanhar os navios negreiros na travessia do oceano, à espera dos corpos que seriam lançados sobre as ondas e lhes serviriam de alimento. Esses rituais eram parte da rotina a bordo.
“Os tubarões começavam a seguir os navios negreiros assim que as embarcações alcançavam a costa da Guiné”, escreveu o historiador Marcus Rediker. “Eram observados pelos marinheiros da Senegâmbia ao Congo e Angola, passando pela Costa do Ouro e dos Escravos (atuais Gana, Togo, República do Benim e Nigéria), sempre que os navios estavam ancorados ou se moviam lentamente.” Um corpo ou um homem vivo que caísse nas águas por acidente seria imediatamente destroçado. Alexander Falconbridge, médico britânico que participou de quatro viagens negreiras entre 1780 e 1787, testemunhou diversas cenas como essa enquanto observava o embarque de cativos na costa de Bonny (atual Nigéria).
Segundo ele, os tubarões cercavam os navios “em número inacreditável, devorando rapidamente os negros que eram arremessados da amurada”. Relato semelhante é o de John Atkins, também médico da Marinha Britânica na primeira metade do século 18: “Diversas vezes eu vi os tubarões se apoderarem de um cadáver, assim que era jogado ao mar, despedaçando- o e devorando-o com tal voracidade que não dava tempo sequer para que começasse a afundar nas águas”.
Do embarque na costa da África, cardumes de tubarões seguiam as embarcações por milhares de quilômetros na travessia do oceano, segundo os registros no diário do capitão Hugh Crow, que fez dez viagens nesse percurso. “Eles estão sempre ao redor do navio, à espera de que algum corpo seja jogado nas águas”, descreveu Crow. Comprovando suas observações, em 1785 diversos jornais de Kingston, capital da Jamaica, noticiaram que a chegada de novas cargas de escravos tinha trazido consigo uma tal quantidade de tubarões que “banhar-se nas águas do rio local se tornou algo extremamente perigoso”.
Laurentino Gomes é jornalista, escritor e seis vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura. O texto acima foi extraído do seu livro: Escravidão (Ed. Globo), com autorização.
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