Relembre alguns casos em que os militares utilizaram a tortura para fins políticos entre 1964 e 1985
André Nogueira Publicado em 10/09/2019, às 05h00
O Brasil viveu, entre 1964 e 1985, uma ditadura política e social. Uma das características mais fortes desse regime, capitaneado pelo alto escalão das Forças Armadas, foi o uso de tortura sistemática na repressão e no controle político das forças insurgentes que se opunham ao governo. Hoje em dia fica claro que a tortura no Brasil foi uma triste realidade, inclusive com a existência de diversas provas.
Os militares, em 1964, não inventaram o uso da tortura para fins políticos. Ao contrário, o principal órgão responsável por essa prática, o DOPS, é uma invenção do Estado Novo.
As torturas usadas pelos militares, próprias para insurgentes urbanos ou guerrilheiros, foram importadas e ensinadas pelos franceses, que desenvolveram essas técnicas para as guerras coloniais travadas na África, principalmente a Guerra da Argélia, em que a sistematização da tortura atingiu o seu ápice. Muitas são as formas, mas a tortura continua implicando a mesma questão: um atentado à vida.
Vala do Perus
Em 1971, o então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, dissidente da ARENA dos militares, criou a necrópole do Perus, inaugurando uma vala coletiva onde supostamente foram enterrados os indigentes e moradores de rua que não possuíam lápide na cidade.
Porém, durante o mandato de Luiza Erundina, em 1993, foi permitida finalmente a abertura e análise da vala em questão. Ao ser aberto, o local abrigava corpos onde se encontravam desde claras marcas de violência antes da morte até, em alguns casos, objetos como pingentes e dentes do ouro.
Os corpos foram encaminhados ao MP para análise. Ficou claro que não se tratavam de indigentes, mas sim de outras pessoas. Uma análise prospectiva e bio-arqueológica concluiu que se tratava de corpos mortos pela violência física com traços de tortura e que teriam sido despejados com aval da prefeitura de São Paulo com o intuito de encobrir a morte dessas vítimas.
Hoje, vinte corpos já foram identificados e se tratavam de opositores políticos do regime. Erundina deu autonomia para a Comissão de Familiares de Presos Políticos Desaparecidos, que transformou o espaço num memorial em homenagem aos desaparecidos.
Vladimir Herzog
Este caso é bastante famoso. Vladimir Herzog era um imigrante croata residente no Brasil e que trabalhava como jornalista. Defensor das liberdades democráticas, Herzog era claro em sua posição contra o regime militar. Por ser do Partido Comunista, Herzog também era vigiado pelo governo.
A partir dos anos 1970, quando Geisel assume, existe uma promessa de reabertura política e gradativo retorno à democracia. Com isso, nos momentos de real abertura (pois o governo foi e voltou nesse quesito várias vezes nos anos 1970 e 80), o comprometimento com o fim da censura fez com que os militares focassem novamente no combate ao PCB.
Em 1975, o DOI-CODI convoca Herzog para explicar as possíveis ligações com o Partido, ilegal na época. Vladimir se dirige espontaneamente à sede do DOI-CODI para prestar depoimento voluntário.
Ele ficou alojado na delegacia junto a George Benigno Jatahy Duque Estrada e Rodolfo Oswaldo Konder, jornalistas também. Segundo Konder, foi possível ouvir um delegado ordenando que trouxessem a máquina de eletrochoques para a sala de interrogatório em que Herzog foi prestar depoimento.
No dia seguinte, Vladimir Herzog apareceu morto. Segundo os militares, Herzog se suicidou. Porém, as imagens do jornalista pendurado mostram que ele está numa altura pequena demais para isso. Em 2012, o ex-governador Paulo Egydio Martins admitiu que o DOI-CODI tentou mascarar o assassinato de Herzog.
Ofício das Forças Armadas à CNV
Em 2014, as Forças Armadas, sob comando do Ministro da Defesa Celso Amorim, enviou um ofício redigido para a Comissão Nacional da Verdade em que, pela primeira vez, o órgão federal admite responsabilidade direta com a morte e a violação de direitos de opositores políticos, pela morte e desaparecimento de pessoas durante o regime militar, bem como pelos atos de exceção praticados no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988.
Segundo Amorin, os militares não negam e não têm como negar a participação no processo de tortura de opositores políticos. Exército e aeronáutica admitiram participação, mesmo que de modo supostamente passivo. A marinha declarou não haver provas para dizer se houve ou não envolvimento do órgão nos eventos.
O documento é um complemento em reposta ao questionamento da CNV sobre o assunto, após o porta-voz do exército declarar que nunca houve qualquer envolvimento de violações de direitos do cidadão em suas dependências, pois isto implicaria em desvio de função do órgão. Esta posição, a mesma do Cel. Carlos Brilhante Ustra, foi desmentida pelo ofício em questão.
Caderno pessoal do Medici
Em uma investigação da CNV no RJ, após acesso ao acervo pessoal do ex-ditador Emílio Garrastazu Médici (doado pela família à biblioteca do IHGB), foram encontradas diversas caixas com cadernos e documentos. Entre a papelada, foi achado (e confirmado pela perícia) um caderno de capa de couro preto com o nome do ex-presidente timbrado em dourado.
Dentro do caderno, havia três prontuários médicos do Hospital Central do Exército relatando procedimentos em pessoas identificadas como perseguidas políticas: Dalva Bonet, Francisca Abigail Paranhos e Vera Sílvia Magalhães. Os prontuários apontavam procedimentos médicos de recuperação de coisas como traumatismo craniano, entrada de projétil de armas de fogo, desnutrição, paralisia e outras consequências diretas das práticas de tortura.
Legistas concluem que um dos prontuários revela morte por pau-de-arara, por exemplo. Os documentos apontam não somente a existência da tortura nos quartéis, mas também o conhecimento direto do presidente em relação ao fato, ou seja, também é visível a permissibilidade do governo em relação à tortura sistemática, sendo impossível negar tanto a existência dela quanto a conivência do governo federal.
Equipamento de tortura
Até hoje membros do antigo DOI-CODI negam o envolvimento de militares na morte de opositores em dependências das Forças Armadas. Porém, existem registros materiais da prática não somente na Era Vargas, mas no regime militar de 1964 também. São poucos os materiais que se mantiveram nos porões das delegacias. Afinal, muitos militares se esforçaram em desovar as provas.
Mesmo assim, foram encontrados registros documentais, materiais inteiros e partes quebradas em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Brasília de paus-de-arara, máquinas de eletrochoque, seringas infectadas, camas com sangue, cadeiras com armação elétrica e até jacarés (DOI-CODI São Paulo) em dependências e arredores de quartéis ligados à repressão.
Memorando da CIA
Uma das bases do governo militar era o apoio recebido do governo dos EUA e de sua diplomacia. Foi aberto ao público um memorando de 1974 de William Egan Colby, ex-espião e agente da CIA para Henry Kissinger, mentor da Operação Condor e Secretário de Estado americano.
No documento, o espião relata as relações políticas dos governantes com a repressão e descreve os generais do Exército brasileiro, incluindo Geisel, recebendo informações claras sobre o assassinato de 104 membros da oposição na sociedade, assim como a decisão de concentrar no presidente a permissibilidade do assassinato em quartel e a autorização dada por Geisel da continuidade da prática de tortura, assassinato e desaparecimento como política governamental do regime.
O documento é complementado por outro, vazado pelo Wikileaks em 2016, sobre as operações de espionagem estadunidenses no Brasil.
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