O ato de comer gente acompanha a humanidade desde sempre. Pode ter a ver com rituais e crenças. Mas, às vezes, é só questão de gosto mesmo
Lira Neto Publicado em 31/10/2019, às 18h28
Ao encontrar vestígios de corpos humanos nas cavernas do monte Longuu, na China, em 1920, os arqueólogos ficaram intrigados: alguns esqueletos do chamado Homem de Pequim, com idade estimada em cerca de 500 mil anos, mostravam que os cadáveres haviam sido esquartejados após a morte.
Exames mostraram que muitos ossos apresentavam marcas de que haviam sido descarnados com ferramentas de pedra lascada. Em vários deles, em especial os mais longos, como os fêmures, era possível identificar ainda que as extremidades encontravam-se cortadas ou esmagadas, como se quem houvesse feito o serviço estivesse com a clara intenção de extrair-lhes a medula óssea — popularmente conhecida como tutano.
Aqueles eram indícios mais que suficientes para que os especialistas chegassem à seguinte conclusão: o Homo erectus pekinensis era um voraz adepto do canibalismo. A descoberta coincidia com outros achados semelhantes, provenientes de escavações em sítios arqueológicos europeus que também continham vestígios de hominídeos.
Em todos eles, as pistas apontavam para a mesma direção: nossos mais remotos antepassados não hesitavam em se banquetear com um bom naco de carne retirado do cadáver de outro indivíduo da própria espécie. Por mais que hoje a ideia nos revire o estômago, os cientistas calculam que o hábito de comer carne humana é tão antigo quanto a própria aventura do homem sobre a Terra.
Mais impressionante ainda é a constatação de que a antropofagia, ao contrário do que se pensa, não seria um costume restrito a locais isolados ou tempos imemoriais. Estudos comprovam que, ao longo de toda a história, o canibalismo acompanhou a humanidade, em diversos momentos, em diferentes civilizações e pelos mais distintos motivos.
Dos indígenas anasazi, nos Estados Unidos — que assavam crânios humanos para depois saborear-lhes o cérebro suculento — aos moradores da ilha Bau, no Pacífico — que inseriam pedras aquecidas nos corpos para garantir um uniforme cozido —, a antropofagia se manifestou em todos os continentes.
É inegável que os exemplos mais conhecidos de canibalismo estão mesmo relacionados a celebrações e homenagem a deuses, mas muitos povos incluíram a carne humana em seu cardápio fora das ocasiões ritualísticas. No princípio, lançaram mão desse recurso como desesperada forma de sobrevivência, após serem submetidos a situações extremas de fome.
Depois de experimentar o gosto dos semelhantes, entretanto, alguns desses agrupamentos passaram a apreciar, verdadeiramente, a estranha iguaria no dia a dia. “Existiram sociedades em que se consumiu carne humana pelo sabor”, afirmam os historiadores americanos Daniel Diehl e Mark P. Donnelly.
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Entre as práticas de canibalismo relacionadas a rituais mágicos estão aquelas que foram observadas em grupos indígenas do Brasil. Um relato histórico a esse respeito é o de Hans Staden, o náufrago alemão que caiu nas mãos dos tupinambás em 1547. Quando, enfim, conseguiu escapar do caldeirão e retornar à Europa, Staden publicou um livro sobre os brasileiros devoradores de gente.
“Deram voltas em torno de mim e apalparam minha pele. Um deles disse que o couro de minha cabeça era dele; um outro, que minha coxa lhe pertencia”, escreveu o alemão em um dos capítulos de seu História Verídica e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos
Há notícias de que alguns povos desenvolveram uma nouvelle cuisine do canibalismo. Nativos das ilhas de Fiji, no Pacífico, cozinhavam corpos inteiros em panelões de cerâmica, devidamente temperados com ervas aromáticas selecionadas. Os índios paucuras, da Amazônia, tratavam de alimentar os prisioneiros com frutas frescas e vegetais, para dar mais sabor, textura e aroma à carne.
Mas foi por causa das então Pequenas Antilhas, hoje conhecidas como Caribe, que o termo canibal entrou definitivamente para os dicionários. Isso porque os guerreiros de uma tribo local, adepta da antropofagia, referiam-se a si próprios como caribas (corajosos). No século 16, a palavra soou para os ouvidos dos conquistadores espanhóis como caniba. O termo generalizou-se e, por extensão, canibal passou a definir todas os povos que praticavam a antropofagia, de forma indistinta.
A notícia de que alguns habitantes do Novo Mundo assavam, escaldavam e defumavam pessoas — ou simplesmente as comiam cruas — veio a calhar para os propósitos expansionistas dos colonizadores europeus. Era preciso, portanto, civilizar a terra recém-descoberta, ainda que, para tal, fosse necessário dizimar a população local.
Enquanto isso, para os nativos, a Eucaristia cristã é que parecia uma atroz barbaridade. Os astecas, por exemplo, que não hesitavam em se regalar do sangue que jorrava dos sacrifícios humanos, achavam repugnante o fato de o homem branco comer seu próprio Deus, na forma de uma hóstia sagrada.
Canibal de ocasião
Os ritos que envolvem a antropofagia baseiam-se em dois padrões básicos. O primeiro e mais conhecido deles, chamado de exocanibalismo, foi identificado tanto entre os tupinambás brasileiros quanto entre antigos celtas da Grã-Bretanha: ao se devorar a carne de alguém de outra tribo, os guerreiros acreditavam ingerir também a força, a coragem e a sabedoria de seu oponente.
Já o segundo padrão, o endocanibalismo, foi observado em menos ocasiões: ao retalhar e devorar o corpo de um ente querido durante o funeral, os membros de algumas civilizações, a exemplo de certos aborígenes australianos, consideravam estar prestando uma homenagem carinhosa à memória do falecido.
Mas também existem os canibais de ocasião, como explicam os historiadores Daniel Diehl e Mark P. Donnelly: “Quando não há outro alimento disponível, e a diferença entre a vida e a morte está na capacidade de superar as implicações morais contra o consumo de carne humana, em geral a moralidade é posta de lado”.
Um dos exemplos mais eloquentes ocorreu no Egito, por volta de 1200. Uma grande estiagem, seguida de um surto de epidemias, derrubou o tabu do canibalismo. Segundo o registro histórico do médico Abd Al-Latif, corpos de crianças eram vendidos em mercados públicos do Cairo.
Saiba mais sobre o tema através das obras abaixo
Devorando o Vizinho - Uma História do Canibalismo, Daniel Diehl e Mark P. Donnelly, Globo, 2007
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Hannibal (edição de bolso),
Hannibal: A origem do mal, Thomas Harris, 2015
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